Para Bebel e Rodrigo
Com intervalo de exatos 300 anos,
duas das maiores construções literárias da humanidade foram trazidas a lume: em
1599, a grande tragédia Hamlet, do inglês William Shakespeare; em 1899, o
romance realista Dom Casmurro, do brasileiro Machado de Assis.
A separá-las, além da distância
temporal de três séculos, os idiomas em que foram escritas, os gêneros
característicos de sua elaboração. A uní-las, a indisputada genialidade de seus
autores, a certa e justa consagração para a eternidade, o enfrentamento, no
mais alto grau de indagação filosófica, do problema existencial traduzido na
dúvida.
No Hamlet, Shakespeare
manifestou, pelas palavras de seu fascinante e fascinado Príncipe da
Dinamarca, o enigma que perpassa a própria essência de nossas vidas: ser ou não
ser, eis a questão (“To be or not to be,
that is the question”). No Dom Casmurro, o bruxo do Cosme Velho, a cuja
obra, se faltam pujança e paixão, sobram estilo e viva observação psicológica,
pôs sua personagem Capitu no centro de dilema que consiste em haver
ocorrido, ou não, traição conjugal ao marido Bento Santiago, o Bentinho.
Inventor do humano, “deus mortal”, na
expressão-síntese de Harold Bloom, William Shakespeare conquistou, na história
da civilização ocidental, o lugar mais marcante a que pode almejar um homem de
letras. Trabalhador incansável, a produção do bardo, em 1599, não se limitou à
construção do visceral Hamlet. São, também, daquele ano outras três de suas
mais famosas peças: o drama histórico Henrique V, a tragédia de aprendizado
Júlio César e a alta comédia Como gostais (“As
you like it”). Tinha Shakespeare, então, precoces e impressionantes 35 anos
de idade. Nascido em 1564, viria a falecer em 1616, aos 52, numa faixa etária
que não discrepava dos padrões estatísticos de mortalidade, na era elisabetana.
O carioca Joaquim Maria Machado
de Assis era um provecto cidadão de 60 anos, Presidente da mais importante
instituição cultural do País (que fundara em 1897), quando concluiu seu célebre
romance, hoje rigidamente incorporado ao imaginário brasileiro e respeitado, à
unanimidade, pela crítica internacional. Num livro precioso, A Biblioteca de
Machado de Assis (ABL/Topbooks, Rio de Janeiro, 2001), organizado por José
Luís Jobim, é possível comprovar, sem esforço, a sólida presença de William
Shakespeare na inspiração e na fatura machadianas. Leitor ávido, nosso maior
escritor recorria aos textos poéticos e teatrais do incomparável
dramaturgo em sucessivas traduções francesas, editadas em dez volumes pela
Librairie Hachette, entre 1867 e 1873.
Dono de fino humor e agudo senso
de investigação anímica, Machado, a partir da influência shakespeariana,
antecipou muitas conquistas modernistas, além de plantar sementes conceituais
que Sigmund Freud mais tarde formalizaria em tratados magistrais.
Os emblemáticos Hamlet e Capitu,
criações raras vezes igualadas na literatura universal, são frutos, com 300
anos de diferença, da mesma árvore esplendorosa que enseja a continuidade da
arte literária, per omnia saecula
saeculorum. As dúvidas que encerram obras como Hamlet e Dom Casmurro são o
que de mais denso se imaginou sobre as circunstâncias que movem e atormentam as
criaturas humanas. Shakespeare e Machado de Assis, ao plantá-las com estética
indelével, nos ensejam a capacidade de lidar, de modo consciente e maduro, com
a falta de sentido do mundo, a inexorabilidade de nosso destino, a
ideia de quem somos e de que, na vida, não há coincidências.