sábado, 20 de abril de 2019

Vida de cão, poema RCF


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Meu cachorro tem pesadelos
em que deve sonhar que é humano.
Sonhar que tem uma vida de cão,
vai ao trabalho num trânsito de matilha.
Sofre com um chefe em cio
– só pode ser cio as alterações de humor.
Cansa de ser bípede
e ver o mundo a um metro e oitenta.
Apavora-se de viver trancado
na caixa-trabalho, na caixa-carro,
na caixa-banco, na caixa-restaurante.
Deve se perguntar por que não vivo no quintal.
E lamenta-se que tenho rotina
que faz parte do repertório do homem,
mas não do enxoval de coisas
de Deus, que vive solto no mundo,
não tem hora para dormir,
não tem hora para acordar.
Por fim, o cão desperta e suspira:
não é a fera do homem.



(Memória dos Porcos, 2012)

quarta-feira, 17 de abril de 2019

O quarto inútil, O difícil exercício das cinzas


 


Havia um muro urdido
na renda de bilro
em que o tempo fiava
a juventude e, ainda nova,
luzia um lugar nítido.
Aos poucos as luzes,
que antes eram nulas e frias
acalantam cantigas
que se perderam entre colunas e becos.
Não voltaremos o rosto
ao frio das manhãs
nem aos acordes sinfônicos
de uníssonos pios
que, como a luz e sua sombra,
ecoavam pelo quarto inútil.
(do livro O difícil exercício das cinzas. Rio 7Letras, 2014)

terça-feira, 16 de abril de 2019

HOPPER, poema RCF












Em Hopper, não há a solidão que todos dizem.

Aquele casal na lanchonete,
as moças no quarto
ou no vagão de trem
estão imobilizados de vida
– de vida tão grave
que nada escapa (como nos buracos negros)
de seu campo de gravidade.

Ali estão os autômatos de Hopper
em sua fantástica viagem em torno de si mesmo.

Não é a vida americana
que é criticada.
O que nos desnorteia em Hopper
– e nos fascina –
é que nos vemos na lanchonete,
na parada de ônibus ou no vagão de trem.
Estamos imobilizados – hopperianos –
em têmpera e colorido,
fixos na tela do tempo,
e, irremediavelmente, presos a nós mesmos,
a vida como um quadro americano
do qual não podemos escapar.     

(do livro A máquina das mãos, 7Letras, 2009)

(imagem retirada da internet: Hopper)

segunda-feira, 15 de abril de 2019

Um homem é muito pouco 35


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            Pensei em matar Vicentino. Não iria entrar em confronto direto, medir forças. Iria usar a mesma funda de David nele: a traição. Viria por trás com cordão de náilon e enforcaria o bicho. Vicentino deveria ser um bicho desses difíceis de morrer. Ele mesmo contou que durante a guerra viu um vizinho ser crivado de balas, mais de dez, entrar em coma, depois delirar, costurar todas as vísceras e voltar à vida, andando e falando como se não carregasse com ele metade das balas que não puderam ser retiradas. Homens vazados e secos como Vicentino que tinha músculos nas vísceras eram difícil de matar. De súbito me dei conta de que não poderia me converter num Vicentino. Não poderia sair pela vida enterrando corpos, resolvendo diferenças enterrando mortos sob o ladrilho, haveria um momento em que tudo subiria à tona. Não era igual Vicentino e não queria ser igual a Vicentino. Não era angolano, não passara por nenhuma guerra civil, a não ser minha própria guerra.

Alice me contou que eu estava fora, ela estava dormindo. Vicentino abriu a porta para conversar comigo. Pensou que poderia me fazer ouvir suas queixas contra Ariana, o capitão Vaz, o gerente manco, o dinheiro que mais desfazia do que fazia, quando me chamou uma e duas vezes. Não respondi. Não podia ouvir Vicentino me chamar em Copacabana. Eu estava na Rua México. Ele abriu a porta do quarto. A luz pouca acabou mostrando a carne dormida e seminua de Alice. A carne de Alice com pouca roupa era carne cheia de desvios. Vicentino parou diante da estupefação da beleza substancial dela. O problema era que Alice não era mucama, já disse, mucama branca, mucama de Vicentino. Ele tocou na pele branda de Alice. Alice despertou e despertou em mim o ódio que nunca nutri contra Vicentino.