sábado, 20 de julho de 2024

As travesseiras, poema

 


Georg Grosz













As travesseiras alvoraçam 

mãos de pluma 

ou cabelo de penas: 

não costumo adormecer 

se minha cabeça 

está pousada na pena.

Nada dói mais que o dó próprio. 

Um dó em stacatto.

Meus cabelos 

dormem em pé como cavalos.


No sono, as cabeças 

são mais leves que o ar.

Por isso, levitam e baloneiam. 


As travesseiras os penteiam 

com seu algodão que curam feridas.

Transformam 

os cabelos em águas-vivas 

e os levam à correnteza das medusas.


As travesseiras 

são mulheres rendeiras 

que fiam o sono bordado 

das silhuetas e caligrafias.

Adormecem 

as iluminações sombrias, 

embora haja muito sol 

nas travesseiras 

que bordam a aurora dos tristes. 

A anatomia das travesseiras 

só comporta cabeças.


Ó incêndio marítimo 

feito de algodão 

das núpcias 

entre o céu e o inferno.


Elas não contam carneirinhos 

e tudo o que tosquiam

são os cabelos da noite, 

os labirintos das medinas do sonho.

São mulheres 

que fazem rendas dos pesadelos, 

ovelhas no cio da imaginação, 

bordando histórias, 

costurando os corpos.


As travesseiras 

são ouvidos de pano 

que ouvem minhas confissões masculinas.

As travesseiras não nos atravessam 

de uma margem à outra

– da razão ao sono. 

Não, não nos ouvem 

nas águas passageiras da vigília.


Tenho de tampar os ouvidos 

com cera para não ouvir 

o canto das travesseiras

que estão nuas em uma nave

– uma naufragata –

que a qualquer momento

me prende ao mastro da realidade.












quinta-feira, 18 de julho de 2024

Um homem é muito pouco 24


    
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            A casa tem mais habitantes. 
            Está cheia de percevejos, baratas e outros insetos. 
            Nunca vi um percevejo. Se percevejo é bicho redondo de várias patas, já vi percevejo. A impressão que tenho é que estão dentro de mim. De noite me coço e não sei que família de bicho me ataca. Passei muito tempo inerte, paralisado, alimentando-me do sangue das sopas ralas. Não tenho os nervos abalados, não, tenho poucos nervos. E meus nervos estão cheios de percevejos.

            Eu contratara uma empregada que vinha aqui duas vezes por semana. D. Etiópia. Eu dizia pra ela que o nome dela era nome de país, ela ficava me olhando e talvez pensando que eu era meio gira. D. Etiópia é uma branca gorda e forte e não tem nada a ver com a Etiópia. Como a Itália, na Segunda Guerra Mundial, invadiu a Etiópia, numa ópera bufa, d. Etiópia podia muito bem ser filha de emigrante pobre italiano que deu o nome atravessado para a filha. Mas Etiópia não tinha nada de italiana, a não ser a gordura napolitana e a força mafiosa de suas mãos capaz de suspender um homem em cada mão. Depois não tive como pagar d. Etiópia e a casa foi sendo tomada pelos bichos. Toda minha louça está suja e engordurada na pia. As baratas se equilibram sobre o copo, outras sobre o cabo das panelas, outras até fizeram ninho no interior de uma lata aberta. As formigas passam por mim indiferentes e sem medo. As formigas não têm medo. Não há na fisiologia da formiga nenhuma glândula que excrete o medo. Se pudesse arrancava a minha glândula que secreta medo. Iria até o dentista e pediria ao dr. Máximo que me tirasse a glândula do medo e ele responderia que não era cirurgião, o que fazia era extrair dente e, além do mais, não queria se meter em minha vida, mas nunca tinha ouvido falar em extrair a tal glândula do medo. Dr. Máximo é tão velho que a glândula do medo dele deve ter secado. A loucura e a velhice devem entupir a glândula do medo. Só um sujeito com a idade de dr. Máximo ia até o puteiro de d. Sereja sem medo. E a razão era que a glândula do medo dele não excretava mais líquido nenhum.


(do livro Um homem é muito pouco. São Paulo: Nankin, 2010.)

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quarta-feira, 17 de julho de 2024

Almoxarifado das almas, poema

 


 

 

Guido Viaro

 

 

O poeta é um almoxarife

que vai pegar nas prateleiras

de vozes

as resmas do presente,

os acumulados do tempo

e as dúzias de sentimento

para escrever

os versos na tinta dolorida

das ideias ainda em forma

de caixas atrás de uma porta invisível.

 

Depois virá a manhã,

que é outro almoxarifado

de vertigens,

onde estão armazenadas

as caixas de pandora

que são a vida de cada um.

 

E virá a noite

que mantém as luzes das perdas

acesas no quarto vazio

em que se transformou o coração vadio

e faz da imaginação

um almoxarifado

de rostos desfeitos

pela bruma do remorso

ou pela miséria da razão.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Réquiem do domingo, poema RCF










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Domingo se abrirá 
feito um féretro 
que cruza uma sala.
Meus pensamentos
começam a ter escamas
e salgam a palavra.
O único saber necessário
é viver.
O modo silencioso 
de os móveis morrerem.
As emoções desviantes 
pingam rumores no sofá.





( do livro Matadouro de vozes, 2018)

terça-feira, 16 de julho de 2024

Outra crítica sobre Vieira na ilha do Maranhão (Vera Lúcia de Oliveira)


                                              













 Um Imperador no Maranhão

Vera Lúcia de Oliveira

O imperador da língua portuguesa, como foi chamado o padre Antônio Vieira por Fernando Pessoa, viveu oito anos no Maranhão. De 1653 a 1661, realizou o seu trabalho missionário entre colonos, gentios, índios antropófagos, bichos e insetos demoníacos, doenças raras e bizarras, peste e todo tipo de perigo. Um horror. Mas cumpriu a missão que lhe foi designada pela Ordem dos Jesuítas, a que pertencia de corpo e alma. (Dizem as más línguas que Vieira não era português nem brasileiro: era jesuíta). Se lhe fosse perguntado, diria, com certeza, que preferiria atuar nas cortes europeias, onde desempenhou as mais altas funções, de embaixador a conselheiro de reis e rainhas, pois era homem político. Mas, além disso, ortodoxo que era, dedicou-se ao cargo de Visitador da Companhia de Jesus e à expansão da fé católica. Visitou indígenas, pregando a Palavra de Deus. E vociferou contra todos os desmandos da gente portuguesa. Não poupou ninguém. Nem aos sacerdotes seus pares.

Mais do que esse período no Maranhão, Vieira (1608-1697) é parte importante da nossa história porque viveu no Brasil dos seis até perto dos trinta anos de idade, na Bahia, onde foi criado, em Pernambuco, onde foi professor, para retornar outras vezes deixando sua marca profunda na história política, social, religiosa e cultural do país. A sua obra magistral é sem precedentes e sem continuadores. Talento ímpar. Escreveu as mais belas e inspiradas páginas de sermões, cartas e obra profética.

E não foi por outra razão que agora dá título e vem como personagem em Vieira na ilha do Maranhão, (Rio de Janeiro: 7 Letras, 2019), romance histórico do poeta e ficcionista Ronaldo Costa Fernandes, que, com poesia e muita imaginação, nos transporta para o século 17, para vivermos a aventura dos colonizadores na chamada ilha do Maranhão. É uma aventura e tanto. E também uma experiência antropológica. Na natureza selvagem, em meio a todo tipo de conflitos, busca insana de riquezas e posse da terra, escravização dos índios, as ordens religiosas exerceram papel dos mais relevantes. O principal deles – aí entra o trabalho do padre Vieira – foi a defesa dos índios, vítimas primeiras do processo de escravidão na colonização europeia, como nos conta Ronaldo em seu estilo admiravelmente culto, elegante e elevado. Como ensina Vieira.

Ronaldo debruçou-se sobre a história do Estado que o viu nascer e, com riqueza narrativa, expressou o ambiente cultural que o impregnou ainda na infância, ficando totalmente à vontade no trato do tema. O conhecimento do clima tropical, com o calor úmido, pegajoso e infernal, a indolência da gente, a beleza da paisagem oceânica, a cor local enfim é de um connaisseur que se sente em casa para contar a sua história.  A trama se passa, portanto, no Maranhão e é um verdadeiro cabo de guerra. De um lado, os colonizadores europeus ávidos por riqueza, valendo-se de crueldade sem precedentes na escravização dos índios, coitados, para o trabalho em suas fazendas; e, na outra ponta da corda, a arraia-miúda e os religiosos com seus próprios interesses, mas a favor do tratamento humanizado desses habitantes naturais da terra, sempre incompreendidos e aviltados, essa gente “que não tem Fé, nem Lei, nem Rei”, como a chamou Gândavo, cerca de um século antes, em 1573.

As personagens constituem o ponto alto da narrativa: religiosos dedicados, cultos; irmãs de caridade no trabalho de acolhimento em seus conventos; colonos sem escrúpulos, donos de terra e gente; trapaceiros de toda espécie; foragidos da lei; saqueadores; mulheres com fogo nas entranhas; índios barbados; doentes, loucos: todos - todos - seres humanos dignos de figurar no bestiário de Borges. Com quanta crueldade se faz uma nação colonizada? É o que Ronaldo parece perguntar. Uma gente movida por impulsos, pulsões sexuais, mais que isso, instintos primitivos de vida, algo semelhante a uma longa noite pré-histórica do nosso passado de gente explorada.

Mas essa profusão de viventes exige muita atenção do leitor, pois, por capricho talvez do narrador, essas personagens são chamadas ora pelo nome completo, ora pelo primeiro nome, ora pelo sobrenome, ora pelo seu ofício, dificultando de imediato a sua identificação.  Sem falar nos nomes duplicados e na mudança repentina de cena.

O narrador é um colono português, sabedor de todos os acontecimentos, que nos enreda na teia da história de uma gente que vive por milagre, uma vez que tudo conspira contra ela. Ele se diz amigo do “Paiaçú” (pai grande) padre Vieira, que, embora não seja o centro da narrativa, perpassa-a com sua forte e poderosa presença, dando luz e força ao texto. Faz toda a diferença. Surge aqui e ali, na casa de um e de outro, sempre nos momentos em que a sua presença e autoridade são requeridas, a exemplo do infame episódio da barca dos insensatos, na qual foram atirados os excluídos e indesejados pelos mandantes da ilha, para que fossem eliminados, e que é dos momentos mais pungentes do livro. E, como está sempre em movimento, Vieira parte nas entradas por terras rudes e igarapés tortuosos e traiçoeiros, em meio à selva, para levar a Palavra de Deus aos índios dos mais remotos ermos. E, principalmente, para afugentar o perigo calvinista, hereges, em sua opinião, que disputavam a alma dos índios.

Pois esse imperador do nosso “rude e doloroso idioma”, na melancólica expressão de Bilac, com sua roupeta surrada e sandálias gastas, que dormia num catre duro de madeira, que acreditava nas profecias que diziam do advento do V Império de Portugal, que fez sermões duríssimos de emudecer até os santos nos nichos da igreja, que disse: “Não há verdade no Maranhão”, ele, sim, engrandece o livro do Ronaldo e nos enche de orgulho, não patriótico, mas humanitário.


(Correio Braziliense, 7.09.2019)








segunda-feira, 15 de julho de 2024

O viúvo, 2º capítulo



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    Não sou dos que pensam que a noite apazigua. Mesmo protegido, a sensação é de que há um furto qualquer e que a noite está cheia de roubos que se perpetuam sem que se saiba o quê exatamente foi roubado. Sonhei com ela de forma diminuta. É a vontade que tenho de diminuí-la, digo logo, ela que é tão gigantesca para mim. Então no sonho ela tem o tamanho e a espessura de um cartão de telefone. Coloco-a no bolso da camisa.
     Ando com ela pela cidade. Entro num armarinho que em vez de ilhoses, zíperes, botões e colchetes, vende apenas pernas, mãos, braços e pés mecânicos. O senhor deseja algo, posso ajudá-lo? pergunta o senhor careca com forte sotaque alemão. É o gerente da loja. Enquanto fala comigo esfrega ansioso as mãos. Os lábios são constantemente umedecidos pela língua. Encaro aquilo como licenciosidade. Recuo dois passos, olho para trás, não existe mais a porta por onde entrei.
    O armarinho se transforma em imenso galpão e as pernas, pés, mãos e braços mecânicos passam a ser de carne. Estão pendurados como num açougue. Toda a movimentação é de matadouro. Esteiras, ganchos, operários de jaleco e barrete cortam, examinam, selecionam pedaços de gente. Ela, como está no meu bolso, sente meu coração bater mais rápido e pergunta se estou nervoso.
    – Você está nervoso, meu bem.
    – E não era para estar?
    – Eu, ao teu lado, não te dou paz.
    – Esta é a maneira de estar ao meu lado?
    –Fica calmo.
    – Este homem é um maluco.
    – Que homem?
    – O alemão.
    – E por quê?
    – Não está vendo?
    – Sei, pelos membros expostos.
    – São restos de pessoas, é carne humana, e você acha tudo natural. Estou num matadouro, açougue, frigorífico ou coisa que o valha e tudo aqui é perna, coxa, pedaços de gente e você acha tudo isso natural?
    – Você se escandaliza com tudo.
    – E não é para me horrorizar?
    – O horror está aqui.
    – Aqui onde?
    – Em casa.
    – Em casa?
    – Olha as frestas.
    – Que tem as frestas?
    – É uma forma de corte.
    – As rachaduras na parede então são cortes como um corte na pele, é isso que você quer dizer?
    – Os cortes...
    – Você diz as rachaduras.
    – As rachaduras são daninhas e nervosas.
    – É um apodrecimento das paredes.
    – Não, é uma forma das paredes respirarem.
    – Se você meter a mão vai esfarelar tudo. A umidade estragou a parede.
    – Não é umidade. A parede sua. 
    – Ah, a parede sua.
    – E outra coisa.
    – Diga.
    – A casa é um grande intestino.
    – Ora, me deixe.
    – Quando acontecem as rachaduras é um pouco do intestino também das paredes que quer sair pra fora.
    – Me deixe em paz.
    – Você já está em paz.
    – Desde que você se foi que não tenho mais paz.
    – Não seja sentimental.
    – E você sabe disso.
    A sujeira está sempre em carne viva. Os lençóis são redundantes. Eles têm o meu cheiro. Então me sinto em mim, deito sobre mim, cheiro-me, empapo-me do que sou, do suor do bicho gosmento que à noite rumina. O que em mim rumina não é coisa aproveitável, é o bolo gástrico do pensamento que não me deixa dormir, faz insones as paredes, dá voz à pia. Quando D. Benedita não está aí não entro na cozinha porque posso ser tragado pela fedentina da casa. Todo meu lixo é orgânico. Não existe casca de laranja ou a laranja mesmo. O que está ali é um pouco da boca que a chupou. Do estômago embrulhado que a deglutiu. Sou um animal gorduroso e fescenino, por isso não gosto do bicho cozinha que pode me engolir e não me vomitar mais.

domingo, 14 de julho de 2024

Um homem é muito pouco 19








Queria também era anestesiar o pensamento. O álcool não anestesia o pensamento. A maconha e a cocaína também não anestesiam o pensamento. Em mim as drogas fazem o pensamento ficar com o nervo exposto, em carne viva. Em mim as drogas e a bebida fazem é mutilar meu pensamento. E meu pensamento mutilado pensa medo. Meu pensamento com droga não sobe nem desce. Meu pensamento com droga fica como elevador parado entre dois andares e um homem não pode viver com o pensamento parado entre dois andares. Não desgosto do dr. Máximo. Máximo é um homem minúsculo. Gosto das coisas minúsculas que não assustam a existência do mundo. E parecem sugerir que a delicadeza e o detalhe são como uma unha tão nobre e importante como as coisas grandes e que deblateram o tempo todo.

            Ainda há abandono e ruína no mesmo andar. Ou andar acima ou andar abaixo. Uma miséria vertical. Andei muito pelo mundo e conheci a desgraça horizontal. Aqui existe tudo em forma de risco. Um risco de cima abaixo. Há um monte de família. Uma delas: o garçom. O garçom é o tronco. A árvore do garçom só tem galho vadio. É um tronco que trabalha num restaurante perto. Os outros garçons trocam de roupa no trabalho.

            O garçom meu vizinho sai vestido de trabalho. A gente abre o elevador e o elevador está black-tie. Cada dia mais o terno cresce. É que ele murcha na sua função de tronco. A família pouco se dá, hum, hum, se ele adoece. As olheiras piores são as olheiras dos pulmões. Ele também não tem os pulmões vadios. O pulmão dele é operoso e um pulmão operoso que não descansa talvez logo adoeça.




(do livro Um homem é muito pouco. São Paulo: Nankin, 2010)