Não sou dos que pensam que a noite apazigua. Mesmo protegido, a sensação é de que há um furto qualquer e que a noite está cheia de roubos que se perpetuam sem que se saiba o quê exatamente foi roubado. Sonhei com ela de forma diminuta. É a vontade que tenho de diminuí-la, digo logo, ela que é tão gigantesca para mim. Então no sonho ela tem o tamanho e a espessura de um cartão de telefone. Coloco-a no bolso da camisa.Ando com ela pela cidade. Entro num armarinho que em vez de ilhoses, zíperes, botões e colchetes, vende apenas pernas, mãos, braços e pés mecânicos. O senhor deseja algo, posso ajudá-lo? pergunta o senhor careca com forte sotaque alemão. É o gerente da loja. Enquanto fala comigo esfrega ansioso as mãos. Os lábios são constantemente umedecidos pela língua. Encaro aquilo como licenciosidade. Recuo dois passos, olho para trás, não existe mais a porta por onde entrei.O armarinho se transforma em imenso galpão e as pernas, pés, mãos e braços mecânicos passam a ser de carne. Estão pendurados como num açougue. Toda a movimentação é de matadouro. Esteiras, ganchos, operários de jaleco e barrete cortam, examinam, selecionam pedaços de gente. Ela, como está no meu bolso, sente meu coração bater mais rápido e pergunta se estou nervoso.– Você está nervoso, meu bem.– E não era para estar?– Eu, ao teu lado, não te dou paz.– Esta é a maneira de estar ao meu lado?–Fica calmo.– Este homem é um maluco.– Que homem?– O alemão.– E por quê?– Não está vendo?– Sei, pelos membros expostos.– São restos de pessoas, é carne humana, e você acha tudo natural. Estou num matadouro, açougue, frigorífico ou coisa que o valha e tudo aqui é perna, coxa, pedaços de gente e você acha tudo isso natural?– Você se escandaliza com tudo.– E não é para me horrorizar?– O horror está aqui.– Aqui onde?– Em casa.– Em casa?– Olha as frestas.– Que tem as frestas?– É uma forma de corte.– As rachaduras na parede então são cortes como um corte na pele, é isso que você quer dizer?– Os cortes...– Você diz as rachaduras.– As rachaduras são daninhas e nervosas.– É um apodrecimento das paredes.– Não, é uma forma das paredes respirarem.– Se você meter a mão vai esfarelar tudo. A umidade estragou a parede.– Não é umidade. A parede sua.– Ah, a parede sua.– E outra coisa.– Diga.– A casa é um grande intestino.– Ora, me deixe.– Quando acontecem as rachaduras é um pouco do intestino também das paredes que quer sair pra fora.– Me deixe em paz.– Você já está em paz.– Desde que você se foi que não tenho mais paz.– Não seja sentimental.– E você sabe disso.A sujeira está sempre em carne viva. Os lençóis são redundantes. Eles têm o meu cheiro. Então me sinto em mim, deito sobre mim, cheiro-me, empapo-me do que sou, do suor do bicho gosmento que à noite rumina. O que em mim rumina não é coisa aproveitável, é o bolo gástrico do pensamento que não me deixa dormir, faz insones as paredes, dá voz à pia. Quando D. Benedita não está aí não entro na cozinha porque posso ser tragado pela fedentina da casa. Todo meu lixo é orgânico. Não existe casca de laranja ou a laranja mesmo. O que está ali é um pouco da boca que a chupou. Do estômago embrulhado que a deglutiu. Sou um animal gorduroso e fescenino, por isso não gosto do bicho cozinha que pode me engolir e não me vomitar mais.
segunda-feira, 15 de julho de 2024
O viúvo, 2º capítulo
ganhou, entre outros, os prêmios de Revelação de Autor da APCA, o Casa de las Américas e o Guimarães Rosa. No ano de 1998, edita Terratreme, poesia, livro que recebeu o Prêmio Bolsa de Literatura, pela Fundação Cultural do DF. Durante nove anos dirigiu o Centro de Estudos Brasileiros da Embaixada do Brasil em Caracas. É Doutor em Literatura pela UnB. Em 2000, publica o livro de poemas Andarilho, da ed. 7Letras. Em 2004, sai Eterno Passageiro (Ed. Varanda). Em 2005, pela Ed. LGE, lança o romance O viúvo, que o crítico Adelto Gonçalves chamou “de uma das primeiras obras primas da literatura brasileira do séc. XXI”. Em 2007 lançou dois livros: Manual de Tortura (Esquina da Palavra, contos, 2007) e A Ideologia do personagem brasileiro (Editora da UnB, ensaio, 2007). Em 2009, sai A máquina das mãos, poemas, publicado pela 7Letras, que ganhou o Prêmio de Poesia 2010, da Academia Brasileira de Letras. Em dezembro de 2010 lança o romance Um homem é muito pouco. Memória dos Porcos é publicado em 2012. O difícil exercício das cinzas, de 2014, é seguido pelo livro de ensaios A cidade na literatura (2016) e, mais recente, Matadouro de Vozes (2018)
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