segunda-feira, 15 de julho de 2024

O viúvo, 2º capítulo



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    Não sou dos que pensam que a noite apazigua. Mesmo protegido, a sensação é de que há um furto qualquer e que a noite está cheia de roubos que se perpetuam sem que se saiba o quê exatamente foi roubado. Sonhei com ela de forma diminuta. É a vontade que tenho de diminuí-la, digo logo, ela que é tão gigantesca para mim. Então no sonho ela tem o tamanho e a espessura de um cartão de telefone. Coloco-a no bolso da camisa.
     Ando com ela pela cidade. Entro num armarinho que em vez de ilhoses, zíperes, botões e colchetes, vende apenas pernas, mãos, braços e pés mecânicos. O senhor deseja algo, posso ajudá-lo? pergunta o senhor careca com forte sotaque alemão. É o gerente da loja. Enquanto fala comigo esfrega ansioso as mãos. Os lábios são constantemente umedecidos pela língua. Encaro aquilo como licenciosidade. Recuo dois passos, olho para trás, não existe mais a porta por onde entrei.
    O armarinho se transforma em imenso galpão e as pernas, pés, mãos e braços mecânicos passam a ser de carne. Estão pendurados como num açougue. Toda a movimentação é de matadouro. Esteiras, ganchos, operários de jaleco e barrete cortam, examinam, selecionam pedaços de gente. Ela, como está no meu bolso, sente meu coração bater mais rápido e pergunta se estou nervoso.
    – Você está nervoso, meu bem.
    – E não era para estar?
    – Eu, ao teu lado, não te dou paz.
    – Esta é a maneira de estar ao meu lado?
    –Fica calmo.
    – Este homem é um maluco.
    – Que homem?
    – O alemão.
    – E por quê?
    – Não está vendo?
    – Sei, pelos membros expostos.
    – São restos de pessoas, é carne humana, e você acha tudo natural. Estou num matadouro, açougue, frigorífico ou coisa que o valha e tudo aqui é perna, coxa, pedaços de gente e você acha tudo isso natural?
    – Você se escandaliza com tudo.
    – E não é para me horrorizar?
    – O horror está aqui.
    – Aqui onde?
    – Em casa.
    – Em casa?
    – Olha as frestas.
    – Que tem as frestas?
    – É uma forma de corte.
    – As rachaduras na parede então são cortes como um corte na pele, é isso que você quer dizer?
    – Os cortes...
    – Você diz as rachaduras.
    – As rachaduras são daninhas e nervosas.
    – É um apodrecimento das paredes.
    – Não, é uma forma das paredes respirarem.
    – Se você meter a mão vai esfarelar tudo. A umidade estragou a parede.
    – Não é umidade. A parede sua. 
    – Ah, a parede sua.
    – E outra coisa.
    – Diga.
    – A casa é um grande intestino.
    – Ora, me deixe.
    – Quando acontecem as rachaduras é um pouco do intestino também das paredes que quer sair pra fora.
    – Me deixe em paz.
    – Você já está em paz.
    – Desde que você se foi que não tenho mais paz.
    – Não seja sentimental.
    – E você sabe disso.
    A sujeira está sempre em carne viva. Os lençóis são redundantes. Eles têm o meu cheiro. Então me sinto em mim, deito sobre mim, cheiro-me, empapo-me do que sou, do suor do bicho gosmento que à noite rumina. O que em mim rumina não é coisa aproveitável, é o bolo gástrico do pensamento que não me deixa dormir, faz insones as paredes, dá voz à pia. Quando D. Benedita não está aí não entro na cozinha porque posso ser tragado pela fedentina da casa. Todo meu lixo é orgânico. Não existe casca de laranja ou a laranja mesmo. O que está ali é um pouco da boca que a chupou. Do estômago embrulhado que a deglutiu. Sou um animal gorduroso e fescenino, por isso não gosto do bicho cozinha que pode me engolir e não me vomitar mais.

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