(do livro A cidade e a literatura e outros ensaios. São Luís: Edições da Academia Maranhense de Letras, 2016)
Em Os tambores de São Luís, a ambientação épica se mescla com o drama individual de Damião. Ali está a saga do negro escravo no Maranhão e, por extensão, no Brasil Império. O horror da escravidão coloca a famosa frase do homem como lobo do homem num exemplo maior de degradação do homo sapiens. Josué Montello, assim como o Graciliano de São Bernardo, soube agregar o fator humano e psicológico ao grande drama coletivo. Ao mesmo tempo em que descreve o regime escravocrata em suas minúcias, com a lupa do historiador meticuloso, Josué também se adentra na psique de Damião, sua angústia individual, seu percurso cruel de negro foro que não encontra lugar na sociedade dos brancos. A saga individual de Damião é de grande força narrativa. Um personagem que supera o ambiente, impõe-se pela inteligência e cultura, mas definha e encurrala-se, escorraçado pelo meio mesquinho e amesquinhante. De certa forma, diria que Montello construiu uma fábula. Sua narrativa realista, que se aproxima dos grandes narradores do século XIX, é verdadeiramente verossímil e aposta tanto na realidade que, em certo sentido a supera, a narrativa passa a ser, inclusive porque está em outra época, uma narrativa de cunho quase mítico. Josué Montello, que com sua extensa obra, poderia ser classificado de o Balzac maranhense, também poderia levar outro título, com este Os tambores de São Luís. O do autor da Damiíada, ou seja, o poema homérico do negro brasileiro em sua epopéia de salvar um povo. Damião, assim como Ulisses, participa de uma verdadeira guerra dos quilombos. A partir da volta à fazenda onde era escravo, Damião empreende uma verdadeira viagem de retorno a sua casa. A casa de Ulisses era Ítaca. A casa de Damião é uma casa coletiva: o reencontro do negro com sua raça livre. Observe-se que durante todo o périplo de uma noite, Damião é perseguido por uma identidade sonora: os tambores de Mina que lhe dão a identidade afro-brasileira. Todo o livro é uma seqüência de lutas e de conquistas, de sereias que encantam e ilhas que na verdade são armadilhas como o clero e o magistério, de polifemos que o querem destruir. Dois tempos como na epopéia: o tempo do narrado e o tempo do narrador. Embora não haja o absurdo e o maravilhoso de Homero, existe aqui o homem em luta contra os elementos da natureza e das forças sociais que o fazem herói de sua raça. Para aqueles que estranham a comparação entre o romance de Josué Montello e a Odisséia, de Homero, lembremos que o Ulisses, de James Joyce, que se pretende uma narrativa homérica, valeu-se de apenas um dia do personagem Leopold Bloom para construir sua epopéia moderna.
O romance histórico não tem sua pertinência se não tocar em temas contemporâneos. Esta é a grande virtude e defeito do romance histórico. Se não for bem realizado, soa como coisa antiga, ultrapassada. Há de haver no bom romance histórico o diálogo com dois tempos: os problemas que afligem os de hoje com a trama e o tema de que trata a narrativa. Nesse sentido, Josué Montello realizou muito bem seu projeto estético ao construir Os tambores de São Luís. O problema social da discriminação racial ainda está presente na agenda das discussões do Brasil de hoje.
Quando criticaram Umberto Eco por colocar no romance O nome da rosa, ambientado na Idade Média problemas que não tinham sido aventados naquela época e que pertenciam às inquietações de hoje, Eco respondeu que não entendia o romance histórico de outra maneira, já que a reconstrução de uma época pura e simples de nada valia se não contivesse o germe do permanente e da inquietação do leitor moderno. Eterno e moderno parecem ser as duas palavras chaves do romance histórico.
Em Noite sobre Alcântara, Josué faz do romance um retrato de uma decadência de uma cidade. Na verdade, Natalino, o Major Natalino, herói da Guerra do Paraguai, que retorna à cidade natal é uma metonímia da cidade e a cidade, por sua vez, é a grande personagem da história. Natalino e Alcântara tanto se imiscuem que a infertilidade de um é a improdutividade de outra. Aqui está a cidade abandonada, entregue às suas ruínas e a seu passado faustuoso, às lembranças de tempo de bonança. Na figura balzaquiana do personagem comprador de antiguidades, o judeu Davi Cohen, Josué caracteriza a avidez dos que vivem da decadência alheia. Cohen não é apenas um comerciante, mas um personagem ávido por bens materiais que para seus antigos proprietários representavam valores afetivos e toda uma cultura doméstica que a ganância de Cohen, símbolo quem sabe do capital despersonalizado, desconhece. Junto com Os tambores de São Luís, neste livro Josué mapeia o imaginário maranhense de determinada fase da nossa cultura. Mostra o estágio da economia agrária que levaria a uma industrialização que tarda a chegar. Mostra um Maranhão, por outro lado, rico e majestoso em sua história e nos caminhos e descaminhos de sua cultura. O incêndio final na casa de Cohen vem fechar definitivamente um ciclo. O incêndio na casa do judeu não apenas acaba com suas peças valiosas ou de arte, mas também coloca cinza e ponto final, na passagem do século XIX para o XX, em sua festa de Ano Novo, quando os velhos habitantes retornam para a festividade, o incêndio na casa de Cohen, dizia eu, queima as últimas quimeras de um retorno a uma cidade que há muito deixou de existir.
É também simbólico o fato de Natalino, que se considerava estéril, descobrir, ao final da vida, que tinha gerado um filho. É simbólico porque o filho de Natalino também sugere o renascimento de Alcântara. Não mais com o fausto anterior, mas como promessa de outra vida, da continuidade da existência, da passagem do Natalino velho ao filho novo, ou ainda no plano simbólico, da velha e aristocrática Alcântara a uma promessa de uma vida que não se encerrou com a improdutividade da cidade que vivia da atividade agrária e da escravatura.
imagem retirada da internet
Em Os tambores de São Luís, a ambientação épica se mescla com o drama individual de Damião. Ali está a saga do negro escravo no Maranhão e, por extensão, no Brasil Império. O horror da escravidão coloca a famosa frase do homem como lobo do homem num exemplo maior de degradação do homo sapiens. Josué Montello, assim como o Graciliano de São Bernardo, soube agregar o fator humano e psicológico ao grande drama coletivo. Ao mesmo tempo em que descreve o regime escravocrata em suas minúcias, com a lupa do historiador meticuloso, Josué também se adentra na psique de Damião, sua angústia individual, seu percurso cruel de negro foro que não encontra lugar na sociedade dos brancos. A saga individual de Damião é de grande força narrativa. Um personagem que supera o ambiente, impõe-se pela inteligência e cultura, mas definha e encurrala-se, escorraçado pelo meio mesquinho e amesquinhante. De certa forma, diria que Montello construiu uma fábula. Sua narrativa realista, que se aproxima dos grandes narradores do século XIX, é verdadeiramente verossímil e aposta tanto na realidade que, em certo sentido a supera, a narrativa passa a ser, inclusive porque está em outra época, uma narrativa de cunho quase mítico. Josué Montello, que com sua extensa obra, poderia ser classificado de o Balzac maranhense, também poderia levar outro título, com este Os tambores de São Luís. O do autor da Damiíada, ou seja, o poema homérico do negro brasileiro em sua epopéia de salvar um povo. Damião, assim como Ulisses, participa de uma verdadeira guerra dos quilombos. A partir da volta à fazenda onde era escravo, Damião empreende uma verdadeira viagem de retorno a sua casa. A casa de Ulisses era Ítaca. A casa de Damião é uma casa coletiva: o reencontro do negro com sua raça livre. Observe-se que durante todo o périplo de uma noite, Damião é perseguido por uma identidade sonora: os tambores de Mina que lhe dão a identidade afro-brasileira. Todo o livro é uma seqüência de lutas e de conquistas, de sereias que encantam e ilhas que na verdade são armadilhas como o clero e o magistério, de polifemos que o querem destruir. Dois tempos como na epopéia: o tempo do narrado e o tempo do narrador. Embora não haja o absurdo e o maravilhoso de Homero, existe aqui o homem em luta contra os elementos da natureza e das forças sociais que o fazem herói de sua raça. Para aqueles que estranham a comparação entre o romance de Josué Montello e a Odisséia, de Homero, lembremos que o Ulisses, de James Joyce, que se pretende uma narrativa homérica, valeu-se de apenas um dia do personagem Leopold Bloom para construir sua epopéia moderna.
O romance histórico não tem sua pertinência se não tocar em temas contemporâneos. Esta é a grande virtude e defeito do romance histórico. Se não for bem realizado, soa como coisa antiga, ultrapassada. Há de haver no bom romance histórico o diálogo com dois tempos: os problemas que afligem os de hoje com a trama e o tema de que trata a narrativa. Nesse sentido, Josué Montello realizou muito bem seu projeto estético ao construir Os tambores de São Luís. O problema social da discriminação racial ainda está presente na agenda das discussões do Brasil de hoje.
Quando criticaram Umberto Eco por colocar no romance O nome da rosa, ambientado na Idade Média problemas que não tinham sido aventados naquela época e que pertenciam às inquietações de hoje, Eco respondeu que não entendia o romance histórico de outra maneira, já que a reconstrução de uma época pura e simples de nada valia se não contivesse o germe do permanente e da inquietação do leitor moderno. Eterno e moderno parecem ser as duas palavras chaves do romance histórico.
Em Noite sobre Alcântara, Josué faz do romance um retrato de uma decadência de uma cidade. Na verdade, Natalino, o Major Natalino, herói da Guerra do Paraguai, que retorna à cidade natal é uma metonímia da cidade e a cidade, por sua vez, é a grande personagem da história. Natalino e Alcântara tanto se imiscuem que a infertilidade de um é a improdutividade de outra. Aqui está a cidade abandonada, entregue às suas ruínas e a seu passado faustuoso, às lembranças de tempo de bonança. Na figura balzaquiana do personagem comprador de antiguidades, o judeu Davi Cohen, Josué caracteriza a avidez dos que vivem da decadência alheia. Cohen não é apenas um comerciante, mas um personagem ávido por bens materiais que para seus antigos proprietários representavam valores afetivos e toda uma cultura doméstica que a ganância de Cohen, símbolo quem sabe do capital despersonalizado, desconhece. Junto com Os tambores de São Luís, neste livro Josué mapeia o imaginário maranhense de determinada fase da nossa cultura. Mostra o estágio da economia agrária que levaria a uma industrialização que tarda a chegar. Mostra um Maranhão, por outro lado, rico e majestoso em sua história e nos caminhos e descaminhos de sua cultura. O incêndio final na casa de Cohen vem fechar definitivamente um ciclo. O incêndio na casa do judeu não apenas acaba com suas peças valiosas ou de arte, mas também coloca cinza e ponto final, na passagem do século XIX para o XX, em sua festa de Ano Novo, quando os velhos habitantes retornam para a festividade, o incêndio na casa de Cohen, dizia eu, queima as últimas quimeras de um retorno a uma cidade que há muito deixou de existir.
É também simbólico o fato de Natalino, que se considerava estéril, descobrir, ao final da vida, que tinha gerado um filho. É simbólico porque o filho de Natalino também sugere o renascimento de Alcântara. Não mais com o fausto anterior, mas como promessa de outra vida, da continuidade da existência, da passagem do Natalino velho ao filho novo, ou ainda no plano simbólico, da velha e aristocrática Alcântara a uma promessa de uma vida que não se encerrou com a improdutividade da cidade que vivia da atividade agrária e da escravatura.
imagem retirada da internet