sábado, 11 de julho de 2015

Mulheres que fizeram História, Adelto Gonçalves


 
                                                                                               

 

                                                           I

 

A História do Brasil, como a de tantos países, até hoje tem sido escrita sob uma ótica masculina. Neste país, quando se lê livros da época colonial, é como se as mulheres sempre tivessem vivido numa penumbra social, limitando-se a reproduzir. Até mesmo nesta função sua presença tem sido relativizada. Basta ver que os chamados bandeirantes até hoje são idealizados em gravuras e estátuas como se fossem brancos, bem vestidos, embora nos séculos XVII e XVIII a presença de mulheres brancas na América portuguesa fosse insignificante. Na imensa maioria, os bandeirantes seriam filhos de indígenas, de africanas ou de miscigenadas, pois poucas mulheres brancas enfrentaram o desafio de atravessar o Atlântico.

Foi preciso que o historiador Luciano Figueiredo, doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), escrevesse dois livros basilares sobre o assunto – O avesso da memória: cotidiano e trabalho da mulher em Minas Gerais no século XVIII (Rio de Janeiro, José Olympio, 1993) e Barrocas famílias: vida familiar em Minas Gerais no século XVIII (São Paulo, Hucitec, 1997) para que se descobrisse que, no século XVIII em Minas Gerais, parte significativa das mulheres negras e mestiças atuou no comércio, contribuindo decisivamente para o crescimento da economia da capitania.

Muitas dessas mulheres eram conhecidas como as negras de tabuleiro, enquanto outras eram proprietárias de vendas, as vendeiras.  Neste caso, sua importância foi inegável para o abastecimento das zonas mineradoras. Outras se envolveram com ofícios mecânicos, sozinhas ou, às vezes, lado a lado com seus maridos ou concubinos em padarias, tecelagens ou alfaiatarias. Se assim foi em Minas Gerais, com predominância de mulheres negras, em outras regiões, como em Goiás, a presença maior teria sido das indígenas e miscigenadas.

Nenhuma delas, porém, ao que se saiba, chegou a se afirmar em patamar de igualdade no jogo do poder, embora muitas tenham tido papel relevante nas questiúnculas palacianas, valendo-se provavelmente da atração física para barganhar favores junto a governadores e outras autoridades.  Na Antiguidade, porém, há alguns exemplos de mulheres que se celebrizaram em épocas, espaços e sociedades distintas, exibindo em comum a força e a ousadia do enfrentamento com os homens e o poder instituído, de que a Rainha de Sabá talvez seja o exemplo mais clássico, até porque aparece na Bíblia (I Reis, 10:1-13). Mas há também os casos de Elisa, Cleópatra e Zenóbia, que se destacaram na História por sua sagacidade e inteligência, personagens do livro Rainhas da Antiguidade: sedução e majestade, ensaio de História do mundo antigo da professora Dirce Lorimier Fernandes, doutora em História Social pela USP, que acaba de ser lançado pela editora Letra Selvagem, de Taubaté-SP.

                                      II

A princesa fenícia Elisa é a Dido, a imortal musa de Virgílio (70ª.C-19a.C), aquele que foi escolhido por Dante Alighieri (1265-1321) para descer ao Inferno em A divina comédia. No livro II da Eneida, Dido acolhe Eneias em Cartago e lhe pede que conte a tragédia da derrocada de Troia. Tornam-se amantes e o idílio vai até o livro V, quando o destino obriga Eneias a seguir viagem para fundar o reino da Itália. Amargurada, a rainha africana atira-se a uma pira funerária.

A segunda personagem deste livro é a rainha egípcia Cleópatra (69a.-30a.C), aquela que subjugou pela paixão os imperadores romanos César (62a.C-14d.C) e Marco Antônio (82a.C-30a.C). Era descendente de Ptolomeu (366-283a.C), general de Alexandre, o Grande (356a.C-323a.C), que depois da morte do comandante macedônio, resolveu criar um império no Egito. Cleópatra não desempenhou apenas o papel de princesa romântica, lasciva e pérfida que as lendas e o cinema lhe impuseram, mas foi uma militante política, obcecada pela restauração do reinado ptolomaico.

Já Zenóbia (século III d.C), a Rainha do Deserto, três séculos adiante das duas personagens anteriores, tornou-se soberana absoluta na pequena Síria, então reino de Palmira. Apoiou o judaísmo, patrocinou poetas e pesquisadores e lançou-se a uma aventura expansionista, desafiando o poder de Roma. Proclamando-se parente de Cleópatra, conquistou o Egito, mas sucumbiu diante do exército de Aureliano (214-275).

                                                          

                                                           III

            A escolha dessas três mulheres incomuns pela historiadora Dirce Lorimier Fernandes para personagens de seu livro mostra, segundo Joaquim Maria Botelho, autor do texto de apresentação publicado nas “orelhas”, a admiração da autora “pelas mulheres fortes – mesmo as que pereceram, vitimadas pelas próprias fraquezas”. Para Botelho, “este livro é uma composição narrativa de verdades e mitos, descortinando informações que ultrapassam a frieza histórica”.

            Na introdução, a historiadora explica que o enfoque do trabalho é “o papel dessas mulheres na História, especialmente na vida pública, fora da oika (casa), ambiente que as mulheres do entorno da nobreza continuavam dirigindo, ao mesmo tempo em que algumas privilegiadas atuavam em vários setores do saber”. Ela lembra que foram raras as civilizações antigas, com exceção do Egito, em que a mulher alcançou postos sociais importantes.

Fora do círculo de Elisa e de Cleópatra, diz, na Grécia a situação feminina era ainda mais degradante, pois, não tendo personalidade jurídica nem política, sempre estava à sombra da figura masculina que se encarregava de tratá-la como uma possessão em todos os sentidos. “Esta dependência gerava o analfabetismo e, em muitos casos, as mulheres deviam se conformar com a educação recebida de sua mãe”, acrescenta.

            Segundo a professora, quanto ao matrimônio, a mulher era objeto de troca, não somente do possuidor senão que geralmente se dotava com propriedades por parte do pai ao prometido para assegurar o acordo matrimonial, mais parecido a uma transação econômica. Aliás, um comportamento que ainda valia para o século XVIII em Portugal e suas possessões ultramarinas, pois foi só com o Romantismo que o casamento passou a ganhar outro foro com a valorização do amor, da fé, do sonho, da paixão e da intuição.

           

                                                           IV

            Dirce Lorimier Fernandes é professora universitária, licenciada e pós-graduada em Letras pela Universidade São Judas Tadeu (USJT) e doutora em História Social pela USP, além de crítica literária e ensaísta, além de membro da diretoria da União Brasileira de Escritores (UBE) e da Associação Paulista de Críticos de Artes (APCA). É, ainda, coautora dos livros: Meu Nome é Zé (São Paulo, Ideograma Técnica e Cultura), contos, Antologia de Contos da UBE (São Paulo, Editora Global, 2009) e Inquisição Portuguesa - Tempo, Razão e Circunstância (Lisboa, Prefácio, 2007). É organizadora e coautora do livro Religiões e Religiosidades - Leituras e abordagens (Arké 2008).

É também autora de A literatura infantil (Edições Loyola, 2003), A Inquisição na América Latina (Editora Arké, 2004) e Rainhas da Antiguidade: entre a realidade e a imagem do poder – Teodora, a imperatriz de Constantinopla, Urraca e Teresa, duas rainhas obstinadas (São Paulo, Clube dos Autores, 2012), entre outros.

 

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Rainhas da Antiguidade: sedução e majestade (Elisa, Cleópatra e Zenóbia), de Dirce Lorimier Fernandes. Taubaté-SP: Letra Selvagem, 160 págs., R$ 25,00, 2014. Site: www.letraselvagem.com.br

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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Os vira-latas da madrugada (Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1981), Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o perfil perdido (Lisboa, Caminho, 2003) e Tomás Antônio Gonzaga (Academia Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2012), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br

domingo, 5 de julho de 2015

Correspondência de Machado de Assis, Adelto Gonçalves

Cartas a um jovem escritor


Carlos Magalhães de Azeredo



Adelto Gonçalves (*)


I

Quem procurar saber quem foi Carlos Magalhães de Azeredo (1872-1963) na história da Literatura Brasileira, dificilmente, haverá de encontrar referências mais aprofundadas. Afrânio Coutinho em Brasil e brasileiros de hoje (Rio de Janeiro, Sul-Americana, 1961) e Raimundo de Menezes em Dicionário Literário Brasileiro (Rio de Janeiro, Livros Técnicos e Científicos, 1978) citam-no e no portal digital da Academia Brasileira de Letras pode-se encontrar uma breve biografia. Foi um dos fundadores da Casa e o acadêmico que mais tempo ocupou sua cadeira: 66 anos.

Ainda que tenha tido vida longa e publicado uma série de livros – pelo menos 17, de poemas, ensaios, contos e estudos – e imaginado tantos outros que, ao que parece, não vieram à luz, esteve, nos últimos 50 anos, completamente esquecido. A última vez que seu nome foi citado com destaque nos jornais foi em 2003, quando o ex-presidente Itamar Franco, então ocupando o cargo de embaixador do Brasil em Roma, entregou à Academia Brasileira de Letras originais do autor que encontrara entre os papeis da Embaixada.

De família abastada, nascido no Rio de Janeiro, Azeredo fizera os primeiros estudos no Porto, antes de retornar ao Brasil, morando em Itu, onde fez os estudos complementares, antes de ingressar na Faculdade do Largo de São Francisco, em São Paulo, pela qual se formou em Direito, em 1893. Dois anos depois, ingressou na vida diplomática, tendo ocupado vários cargos no exterior – no Uruguai, na Itália, em Cuba e na Grécia –, até que encerrou a carreira como representante do Brasil no Vaticano em 1934. Por um tempo, exilou-se em Paris, voltando a Roma, cidade de sua predileção.

De estilo caudaloso, para abrir caminho nos meios literários, valeu-se principalmente da amizade com Machado de Assis (1839-1908), com quem trocou cartas desde a precoce idade de 17 anos, embora o destinatário das epístolas já tivesse a essa altura mais de 50 anos e fosse nome consagrado nas letras. É provável que relações familiares os tenham aproximado, pois Machado conhecera bem os pais de Azeredo, como se percebe a partir da leitura das cartas que trocaram por 19 anos, até a morte do autor de Dom Casmurro.

Ao contrário do que vaticinava Machado de Assis, Azeredo, embora tenha tido também intensa atuação da imprensa brasileira, foi sendo pouco a pouco esquecido e, praticamente, não exerceu influência nos meios literários brasileiros, ainda que nunca tenha deixado de praticar a política literária, já que a sua morada em Roma transformou-se em ponto de encontro de intelectuais em visita ao Velho Mundo. Mesmo depois de se aposentar, continuou morando em Roma, até a sua morte. Sua poesia manteve-se fincada nos ideais do parnasianismo, o que deve ter contribuído para o seu esquecimento.

De valioso, o que deixou mesmo foram as cartas que não só trocou com Machado de Assis como com outros literatos, como Mário de Alencar (1872-1925), filho de José de Alencar (1829-1877), outro amigo íntimo do bruxo do Cosme Velho, que hoje fazem parte do acervo da Academia Brasileira de Letras. Por essas cartas, o pesquisador tem acesso à boa parte da história literária e mesmo do País, em razão das impressões que os missivistas trocavam. Nas cartas que dirigiu a Azeredo, Machado de Assis, tal a intimidade entre ambos, fez confidências nunca registradas em crônicas.


II



Grande parte dessas cartas já havia sido reunida pelo pesquisador norte-americano Carmelo Virgilio e publicada em 1969 pelo Instituto Nacional do Livro, mas, agora, é possível encontrá-las nos três tomos de Correspondência de Machado de Assis, especialmente no III, que abrange o período de 1890 a 1900 (Rio de Janeiro, Academia Brasileira de Letras, 2011). A correspondência entre os dois neste volume reúne 90 cartas e constitui um testemunho precioso de uma época conturbada bem como do ambiente cultural no Brasil e na Europa. E são as que oferecem maiores detalhes da vida privada de ambos e do ambiente cultural em que viviam.

No total, são 292 missivas, entre cartas, bilhetes e cartões, quantidade superior a toda a correspondência publicada nos tomos anteriores (1860-1869 e 1870-1889), abrangendo 291 documentos. Como observa o acadêmico Sergio Paulo Rouanet na apresentação, há no tomo III uma participação desproporcional de Magalhães de Azeredo, nome que já aparecera como responsável por três cartas no tomo II. A partir de 1892, as cartas de e para Azeredo predominam de modo avassalador, assinala Rouanet. De fato, até o final de 1900, são 58 cartas de Azeredo para Machado e 32 deste para Azeredo, ou seja, 30% do total das cartas reunidas neste volume.

Pouco antes de morrer, Machado de Assis pediu a José Veríssimo (1857-1916) que devolvesse ao autor os originais das cartas dele recebidas. Mais tarde, Azeredo doou esse acervo epistolar à Academia, o que explica a sua preservação, enquanto centenas de outras acabaram por se perder ou talvez resistam no arquivo de um ou outro colecionador ou alfarrabista. “E eis como um escritor pouco valorizado hoje em dia chegou à posteridade pelo mero fato de ter tido o dom de relacionar-se com o maior escritor do Brasil”, observa Rouanet.

III
Não se pode dizer que o estilo e o vocabulário de Azeredo ficassem muito aquém das qualidades do mestre, mas, como diz Rouanet, o que ressalta é a alta conta em que o jovem escritor se tinha, o que contrasta com a “sábia e calculada modéstia” de Machado. Sem contar que o jovem Azeredo fazia incontáveis exigências e reclamações, encarregando Machado de Assis de negociar condições com editores do Rio de Janeiro para a publicação de suas obras. É verdade que Machado, em suas respostas, também estimulava o ego do jovem poeta, augurando-lhe um futuro brilhante no olimpo das letras nacionais que, aliás, nunca se deu. Além disso, está claro que a entrada de Azeredo na Academia deu-se apenas pela força política do padrinho.

Se as cartas de Machado de Assis são mais sóbrias e mais burocráticas, as de Azeredo compõem um painel variado da época, pois ele fala de tudo o que o cerca, da política brasileira e dos países pelos quais passa ou vive temporariamente, descendo a detalhes mundanos, talvez para dar ao mestre uma visão mais próxima daquilo que ele conheceria apenas por ler ou ouvir falar – até porque o mestre, quando saiu do Rio de Janeiro, o foi por poucos dias e para passeios por lugares próximos.

Das cartas de Machado de Assis, entre muitas confidências, ressalta a avaliação que faz de Eça Queirós (1845-1900) em carta a Azeredo no começo de 1898, ao dizer que começara a ler A Ilustre Casa de Ramires seguido de um comentário elogioso, o que significa uma alteração substancial na apreciação que fizera da obra de Eça em 1878, a propósito da publicação de O Primo Basílio, como assinala Sílvia Eleutério numa nota de rodapé.

Aliás, além da exaustiva apresentação de Rouanet, que ocupa 27 páginas, vale destacar não só o trabalho de edição e organização de Sílvia Eleutério e Irene Moutinho como as notas explicativas que apuseram às cartas, trabalho minucioso de pesquisa e contextualização que facilita sobremaneira a vida do leitor deste século XXI, já tão distante de fatos que ocorreram há mais de um século.

Não se pode dizer que só as cartas a Azeredo tenham importância neste volume, mas são as que merecem mais destaque, como aquelas em que Machado de Assis reclama das vicissitudes por que passava como funcionário público ou ainda se defende um ataque despropositado que Sílvio Romero (1851-1914) fizera num estudo publicado em livro cujo título era o próprio nome do romancista seguido de um subtítulo – Estudo Comparativo de Literatura.

Machado sentiu o golpe, mas logo se consideraria refeito, com algumas respostas que sairiam na imprensa, especialmente quatro artigos publicados no Jornal do Commercio no começo de 1898 pela pena de um tal de Libieno, pseudônimo que escondia o nome do advogado e político Lafaiete Rodrigues Pereira (1934-1917), o conselheiro Lafaiete, a quem no passado o próprio Machado havia feito alguns ataques. Foi o que motivou uma carta de agradecimento a Lafaiete, embora a ação do advogado não fosse tão altruísta assim, pois aproveitara a ocasião para desancar Sílvio Romero, um velho desafeto. Para quem gosta destas questiúnculas perdidas no tempo, este livro é especialmente saboroso.

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CORRESPONDÊNCIA DE MACHADO DE ASSIS, tomo III – 1890-1900. Coordenação e orientação: Sergio Paulo Rouanet, reunida, organizada e comentada por Irene Moutinho e Sílvia Eleutério. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2011, 658 págs., R$ 50,00.

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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003), entre outros.