sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

O difícil exercício das cinzas, novo livro RCF

O difícil exercício das cinzas



"Ronaldo Costa Fernandes – autor premiado e com uma obra já reconhecida pelos críticos entre as mais criativas e significativas de sua geração – tem o dom de encantar o leitor com uma poesia com a fluência da prosa, construindo uma intimidade imediata que passa pelos cenários internos (da cartografia humana, como em “Anatomia das dores”) ou externos (da geografia urbana, como nos “riscos ariscos no céu de Brasília”, cidade que ganha nova cor em seus versos) para desvendar as paisagens mais inesperadas. Estão presentes neste seu novo livro alguns dos temas marcantes em sua obra, como a passagem do tempo– seja nos ecos proustianos de “O quarto inútil” ou às vezes metaforizada de modo surpreendente, como em “Anatomia do ciclista” – e a instável condição humana. Aliando rigor, precisão, pleno domínio da língua a algumas pitadas de humor e ironia – e principalmente com altas doses de originalidade na construção poética –, Ronaldo Costa Fernandes atinge com este difícil exercício das cinzas um novo degrau de uma obra que vai muito além de seu tempo: pois é daquelas que ganham um novo sabor a cada releitura."
                                                                                           Jorge Viveiros de Castro











quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

A prosa e o verso maranhenses em quatro autores, por Lourival Serejo



Praça Gonçalves Dias

                                                                                                         

Sem a pretensão de fazer crítica literária, venho falar de quatro livros e quatro autores maranhenses. Refiro-me a lançamentos recentes, que confirmaram o talento desses escritores na prosa e na poesia.

O que antes era raridade – a sequência de lançamentos de livros –, nos últimos anos, em São Luís, tornou-se motivo para comemorar. São muitas edições aprimoradas, graças ao avanço técnico de novas gráficas instaladas e o destaque de profissionais que trabalham nesse desafiante artesanato de fazer livros. A Academia Maranhense de Letras tem feito o seu papel, nesse momento de expressividade, promovendo vários lançamentos, muitos deles com o selo da Casa.

Inicio esta digressão banhando-me n´O rio, de Arlete Nogueira da Cruz. A prosa da autora de Litania da velha flui como a correnteza do seu rio: tranquila, leve e envolvente. A magia que emerge da prosa de Arlete tem raízes no sentimento da terra que ela cultiva ainda hoje, mesmo tendo deixado sua aldeia há muito tempo.

A história de Pedro, que Arlete nos conta, em O rio, com muita habilidade, é a angústia que domina todo jovem, principalmente os jovens daqueles tempos, sem a facilidade de comunicação que temos hoje. É a busca de si mesmo e o desejo de conquistar o mundo. De certo modo, Pedro é Arlete, no que ela tinha de jovem inquieta e sonhadora, desejando navegar por outras águas em busca da sua afirmação.

As ilustrações de Péricles embelezam ainda mais o livro da musa do poeta Nauro Machado.

Do rio de Arlete, contemplo o Último sol nascente, de Alex Brasil.  Depois de consagrar-se como poeta, Alex atirou-se ao conto, esse gênero que cativa todos os escritores, tão fácil e tão difícil ao mesmo tempo. No meio dessa incerteza é que veio a famosa e muito citada frase de Mário de Andrade, dita em tom de desafogo diante de tantos originais para opinar: Conto é tudo aquilo que chamamos de conto.

Propositadamente, o autor deixou o conto cujo título dá nome ao livro, para o final, com o propósito de nocautear o leitor com uma história bem elaborada e bem concluída.

Por coincidência, o prefaciador do livro de Alex é o próximo autor de quem pretendo dizer alguma coisa. Já tive oportunidade de falar sobre a prosa de Ronaldo Costa Fernandes, ao comentar seu romance Um homem é muito pouco. Agora, ele volta à poesia, com a mesma competência que lida com a prosa, apresentando-nos Memórias dos porcos. O denominador comum dessa habilidade, não há dúvida, é a sensibilidade do escritor em sintonizar-se com a matéria-prima dos seus trabalhos.

Chamou-me a atenção o poema “Minha fraqueza é meu único talento”, quando o poeta diz: “Sou apenas um homem/ e um homem é muito pouco”. Nesse excerto, encontrei a chave para explicar o título do seu romance já referido: Um homem é muito pouco.

Para falar dos poemas de Ronaldo, teria que usar todo este espaço, o que ofenderia a isonomia que pretendo dedicar aos quatro escritores aqui mencionados. Destaco, só por ênfase, estes poemas que mais me cativaram: Verso e reverso, Código penal, Prescrição médica, Testamento, Carga pesada e Meu pai tem um calendário. Impossível deixar de me solidarizar com o poeta, quando ele clama: “Não posso viver num mundo/em que tudo se transforma em hipótese”.

Por fim, apraz-me falar do último romance de Waldemiro Viana: O pulha fictício. Usufruindo de sua gentileza, já havia lido os originais desse livro, muito antes de sua publicação.

Waldemiro não é mais calouro no romance. Anteriormente, já nos brindou com outros títulos: Graúna em roça de arroz (1978); A questionável amoralidade de Apolônio Proeza (1990); O mau samaritano (1999); e A toga e a tara (2010).

A receptividade que O pulha fictício está merecendo dos leitores é proporcional à naturalidade como o autor articula o enredo dos seus romances, motivando o leitor a chegar até ao fim para, então, ser compensado com o término da leitura.

Como se vê, essas quatros amostras que acabo de expor dão o toque da qualidade das nossas letras, atualmente, com novas publicações e a demonstração da capacidade desses já conhecidos escritores.


                           (Publicada no jornal O Estado do Maranhão, em 13 de abril de 2013).

terça-feira, 12 de dezembro de 2017

Machado de Assis, de Lucia Miguel Pereira



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BIOGRAFIA LAPIDAR, BIOGRAFADO GENIAL,
BIÓGRAFA EXEMPLAR

Fabio de Sousa Coutinho
(Titular  do PEN Clube do Brasil
e da Academia Brasiliense de Letras.
Presidente da Associação Nacional
de Escritores – ANE)

            A paixão e o amor por Octavio Tarquínio de Sousa, intensamente correspondidos, coincidiram, na vida de Lucia Miguel Pereira, naqueles primeiros anos da década de 1930, com uma verdadeira explosão cultural. Assim é que, após período de um lustro dedicado a incansável pesquisa de fontes, saiu, em setembro de 1936,  pela  Companhia Editora Nacional, Machado de Assis (Estudo Crítico e Biográfico). Sua autora tinha, então, precoces, juveníssimos e incompletos trinta e cinco anos, a mesma idade de Machado quando compôs A mão e a luva, um de seus primeiros romances (1874). Tornava-se Lucia, com o livro seminal, uma estrela na constelação das letras nacionais. Um mês antes, em agosto de 1936, viera a lume Angústia, o romance que consagrou o alagoano Graciliano Ramos como o mais completo ficcionista brasileiro depois de Machado de Assis.
            Haviam decorrido, então, exatos vinte e oito anos da morte de Machado, e o inigualável escritor, o maior de todos, ainda não tinha merecido uma obra como a que Lucia Miguel Pereira produziu com mão de refinada esteta, admiração de leitora encantada e perspectiva crítica de superior conhecedora da vida e da obra de seu luminoso personagem.
            Antes do livro pioneiro de Lucia, surgiram diversas manifestações de apologia e louvação machadiana, mas nenhuma que pudesse ostentar a condição de biografia intelectual do gênio literário brasileiro. Em 1899, numa contundente resposta a críticas injustas e preconceituosas a Machado de Assis, Lafayette Rodrigues Pereira, sob o pseudônimo de Labieno, produziu e publicou, nas páginas do Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro, Vindiciae – o Sr. Sylvio Romero. O impacto da contradita (em português, Vinganças) foi arrasador, a ponto de, morto o Presidente e fundador da Academia Brasileira de Letras, em 1908, Lafayette ser eleito, no ano seguinte, para sucedê-lo na Cadeira n° 23 da gloriosa instituição. Mas Vindiciae é apenas uma pronta  e firme contestação a um ataque motivado pela importância que Sylvio Romero, em livro de 1897, desejava que tivessem Tobias Barreto e a chamada Escola do Recife em face de Machado. Labieno, com verve e erudição, provou que a pretensão de Romero era infundada,  descabida e parcial.
            Poucos anos após o falecimento de Machado de Assis, em 1912, para ser preciso, seu amigo Alcides Maya, fino escritor gaúcho, dedicou-lhe um precioso ensaio, focado na forte influência inglesa que marcou as principais obras machadianas, mais especificamente o ciclo virtuoso que se iniciou em 1880, com a publicação, inicialmente na Revista Brasileira, das Memórias Póstumas de Brás Cubas. Intitulado Machado de Assis –algumas notas sobre o humour, o livro de Maya nasceu com o destino selado: seria, para sempre, um clássico dos estudos machadianos, um rigoroso apanhado das decisivas influências que William Shakespeare, Jonathan Swift, Laurence Sterne (mormente este), Charles Dickens e William Thackeray exerceram sobre Machado, diferenciando sua obra de tudo o que existia até então em nossa literatura, precisamente pela força do humor, da ironia, do sarcasmo, do riso castigando os costumes, da observação psicológica, da corrosividade, da ausência de qualquer ilusão sobre os homens. Em 2015, com apresentação do acadêmico e professor Alfredo Bosi, o Machado de Assis de Alcydes Maia foi relançado, em terceira edição (a segunda saíra em 1942), pela ABL, na Coleção Afrânio Peixoto.
            Entretanto, Alcides Maya não escreveu uma biografia. Seu livro é de extração ensaística, de qualidade rara, mas um ensaio. Na mesma categoria se inserem os ensaios críticos de Araripe Júnior, cobrindo o período de 1895 a 1900, em que o cearense analisa e interpreta, com visão de expert, o alcance da obra machadiana, que, naquele momento, já abarcava os três romances que dela fizeram conjunto insuperável de criação romanesca: o mencionado Memórias Póstumas de Brás Cubas, que saiu em livro em 1881, Quincas Borba, de 1891, e Dom Casmurro, de 1899. Mas Araripe, a exemplo de Alcides Maya, não foi biógrafo de Machado de Assis. Interpretou sua obra de modo impecável, teve a nítida percepção de que se estava diante de uma nova estética na Literatura Brasileira, porém não biografou, na medida clássica da expressão, o imenso vulto que marcou nossas letras de modo tão avassalador.
            Quem mais se aproximou de fazê-lo, quem ficou mais próximo de uma biografia de Machado, antes de Lucia Miguel Pereira, foi Alfredo Pujol, numa série de sete conferências, proferidas ao longo de quase três anos, de novembro de 1915, a primeira, a março de 1917, a sétima, na Sociedade de Cultura Artística de São Paulo. Alguns meses após a última, editou-se o volume reunindo todas elas, com o título de Machado de Assis – Conferências, sob a égide da Typographia Levi. Recentemente, em 2007, o livro de Pujol foi republicado em caprichada coedição da Academia Brasileira de Letras e da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo.
            Advogado e bibliófilo, dono de estupenda biblioteca, Alfredo Pujol se tornara, pela leitura incessante, admirador incondicional da obra machadiana. Suas conferências têm, portanto, as características da paixão, do culto à memória de Machado de Assis, do amor de um autêntico precursor dos biógrafos machadianos. Paciente, determinado e dedicado, Pujol percorreu nas suas célebres sete conferências, livro após livro, toda a produção de Machado, num trabalho sem descanso de divulgação e afirmação, iniciado quando eram decorridos apenas sete anos da morte de Machado de Assis e ainda sob o impacto da crítica destrutiva e negativa de Sylvio Romero, não obstante já ter sido contraditada por Lafayette Rodrigues Pereira, Araripe Júnior e José Veríssimo. Aqui, de novo, não se tratou de uma biografia no sentido técnico, e sim de um preito de reverência, da palavra pronunciada com riqueza de informações concretas e incontida veneração, enfim, das impressões descritivas de um leitor genuinamente apaixonado.
            Por volta  de 1932, surgiram os livros de Fernando Nery, Vianna Moog, Mário Casasanta e a reedição, em Minas Gerais, do Vindiciae, de Lafayette Rodrigues Pereira. Em 1935, outro gaúcho, Augusto Meyer, publicou seu revolucionário ensaio machadiano, livro de alto quilate, reeditado algumas vezes em décadas posteriores. Meyer pôs em relevo o lado demoníaco, subterrâneo, de Machado, traduzido em amargor e ódio à vida, toda uma filosofia niilista e trágica a envolver seus contos e romances de uma atmosfera densa de pessimismo e derrotismo.
            Biografia mesmo, na acepção mais estrita e corrente do termo, foi Lucia quem primeiro fez. Com o subtítulo Estudo Crítico e Biográfico, ela soube mostrar Machado de Assis como um complexo e humaníssimo personagem brasileiro e deu à sua obra uma interpretação de cunho psicológico, social e cultural que até hoje, dezenas de biógrafos, dúzias de biografias e centenas de interpretações depois, permanece como referência inafastável nos estudos machadianos.
            Em uma antológica sucessão de capítulos (vinte e um, no total) e passagens memoráveis, lastreada em longo período investigativo e produzida com absoluto domínio de recursos estilísticos, Lucia Miguel Pereira evidenciou, no seu primeiro grande livro, que não haverá, em nossa literatura, uma biografia dessa natureza – biografia e estudo crítico de um puro homem de letras.
            Lucia fixou, para a eternidade, a vida de um mestiço de origem humilde – filho de um mulato carioca, pintor de paredes, e de uma imigrante lusitana da Ilha dos Açores – que, tendo frequentado apenas a escola primária e sido obrigado a trabalhar desde a infância, alcançou alta posição na burocracia e obteve a consideração social numa época em que o Brasil era ainda uma monarquia escravocrata. É certo, e justo frisar, que, graças às tendências literárias do Imperador Pedro II, o valor intelectual era então mais acatado, em comparação com o econômico e, até mesmo, com os valores hereditários.
            Autodidata, Machado se formou na Biblioteca do Real Gabinete Português de Leitura (localizada na Rua Luís de Camões, n° 30, no centro da cidade do Rio de Janeiro), valendo notar que, na presidência de Machado de Assis (1897-1908), a ABL veio a realizar várias sessões solenes, de posse e de saudade, no Real Gabinete Português de Leitura. Foi a volta triunfal de Machado às suas mais caras origens culturais, ao berço de sua prodigiosa ascensão intelectual e social.
Aprendiz de tipógrafo e, depois, revisor, tudo Machado de Assis aprendeu por si. E pelo esforço próprio foi erguendo o espírito e depurando o gosto de tal modo que aos 42 anos, ao publicar em livro as Memórias Póstumas de Brás Cubas, se apresentou perfeito na forma, sem vestígios do autodidatismo e da falta eventual de um ambiente familiar socialmente elevado. Foi precoce - seu primeiro poema data dos 16 anos  –, triunfou cedo, viu-se consagrado, como poeta, aos 25 anos, com Crisálidas, fez a sua evolução dentro de uma época literariamente convencional, viveu sempre no Brasil, longe dos grandes centros da civilização literária, prodigalizou-se em colaborações jornalísticas, obteve um êxito prematuro em contos ainda balbuciantes e romances sem originalidade, julgou-se, talvez, principalmente poeta – e nenhum desses fatores negativos o prejudicou e nada impediu a eclosão, quase súbita, da obra novelesca de língua portuguesa mais reveladora de genial poder de análise psicológica.
Como demonstra Lucia Miguel Pereira, o poeta parnasiano das Ocidentais não é, sem dúvida, desvalioso, e quem escreve o soneto A Carolina ­– a mulher de Machado, a portuguesa Carolina Augusta Xavier de Novais, que tão beneficamente influiu na sua vida – merece figurar em qualquer antologia da lírica em nosso idioma. Mas é tão excepcional o valor do contista e do romancista que o brilho de sua estrela poética empalidece, aos olhos de sua primeira e mais importante biógrafa. Também o seu teatro ficou na sombra.
Nunca se deu, aliás, é também Lucia quem registra, na Literatura Brasileira, e muito raramente em qualquer literatura, um fenômeno como o de Machado de Assis, que, quase de repente, já na maturidade, se pôs a fulgurar com brilho próprio e tão intenso que passou a ser, e ainda hoje o é, o mais original escritor do Brasil. Antes dos 50 anos, pôde ser celebrado pelos contemporâneos como “o primeiro de todos”, “o único” – e, se não é o único, numa literatura que conta alguns valores absolutos, é, pelo menos, o maior escritor brasileiro de todos os tempos, o mais extraordinário contista da língua portuguesa e um dos raros romancistas de interesse universal, como o atestam as traduções das suas obras mais representativas para os principais idiomas cultos, sem que haja influído nessa referência a atualidade dos seus livros, mas, sim, a perenidade de sua quase ferina análise da alma humana.
 Para Lucia Miguel Pereira, as Memórias Póstumas de Brás Cubas e o Dom Casmurro, sem a menor dúvida, mas também Quincas Borba, Esaú e Jacó, de 1904, Memorial de Aires, de 1908, e muitos dos contos de Machado, incluídos em Papéis Avulsos (1882), Histórias Sem Data (1884), Várias Histórias (1896) e Páginas Recolhidas (1899), dão-lhe o direito de ocupar o topo da literatura brasileira, pela originalidade da concepção, pela agudeza dos conceitos, pela penetrante análise dos sentimentos e pela perfeição do estilo sóbrio e conciso numa literatura derramada. Mas, segundo Lucia, só a capacidade criadora, que permitiu a Machado de Assis subtrair as personagens dos seus melhores romances e contos às contingências de tempo e de lugar, tornando-as emblemáticas das paixões humanas, consideradas em absoluto, poderia fazer dele o escritor colossal que é.
            Machado teve em Lucia Miguel Pereira uma biógrafa que o honrou sobejamente, produzindo uma obra notável, uma “pesquisa biográfica e crítica da melhor qualidade”, no dizer abalizado e culto de Astrojildo Pereira, ele mesmo autor de primoroso livro de ensaios machadianos, sob o enfoque próprio de sua visão materialista das relações sociais, saído do prelo em 1959, ano da morte de Lucia.
            Em dezembro de 1936, ao completar 35 anos de idade, Lucia Miguel Pereira acabava de ser consagrada como escritora, circunstância que premiou seu monumental esforço de leitura, interpretação e divulgação da obra machadiana. Exercia, também, em caráter regular, a crítica literária nas páginas do Boletim de Ariel, posição que manteve até 1937.
            No plano pessoal, celebrava o delicioso início de uma relação amorosa e conjugal com Octavio  Tarquínio de Sousa, naquilo que seria o ponto mais alto da existência de dois seres de exceção: vida de paz, de mansidão, de estudo, de recolhimento, “vida de reciprocidade no amor pelos esponsais do sangue”, nas palavras irretocáveis de Alceu Amoroso Lima.
            O reconhecimento público de Lucia, já tratada como ensaísta das mais vigorosas de uma geração de expoentes, veio com a atribuição, à sua formidável biografia machadiana, do maior prêmio literário da época, concedido pela Sociedade Felipe d’Oliveira, fundada em 1933 e composta por quinze intelectuais brasileiros de primeira grandeza, naqueles idos. A última edição revista por Lucia Miguel Pereira foi a quinta, de 1955. Nela, a exemplo das quatro que lhe antecederam, o parágrafo final se manteve intacto, contemplando a síntese das sínteses, jamais superada, sobre o magnífico biografado:
            “À medida que vai recuando para o passado, sentimos melhor o que representa para o Brasil esse mestiço que tanto elevou a sua gente e o seu país, a pureza dessa personalidade que paira sobre a literatura brasileira como um símbolo da nobreza do pensamento e do poder do espírito.”


Para fazer um soneto, poema Carlos Penna Filho


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Tome um pouco de azul, se a tarde é clara,
e espere pelo instante ocasional.
Nesse curto intervalo Deus prepara
e lhe oferta a palavra inicial.

Aí, adote uma atitude avara:
se você preferir a cor local,
não use mais que o sol de sua cara
e um pedaço de fundo de quintal.

Se não, procure a cinza e essa vagueza
das lembranças da infância, e não se apresse,
antes, deixe levá-lo a correnteza.

Mas ao chegar ao ponto em que se tece
dentro da escuridão a vã certeza,
ponha tudo de lado e então comece.