BIOGRAFIA LAPIDAR, BIOGRAFADO GENIAL,
BIÓGRAFA EXEMPLAR
Fabio de Sousa Coutinho
(Titular do PEN Clube do Brasil
e da Academia Brasiliense de Letras.
Presidente da Associação Nacional
de Escritores – ANE)
A
paixão e o amor por Octavio Tarquínio de Sousa, intensamente correspondidos,
coincidiram, na vida de Lucia Miguel Pereira, naqueles primeiros anos da década
de 1930, com uma verdadeira explosão cultural. Assim é que, após período de um
lustro dedicado a incansável pesquisa de fontes, saiu, em setembro de 1936, pela Companhia Editora Nacional, Machado de Assis (Estudo Crítico e Biográfico). Sua autora tinha, então, precoces,
juveníssimos e incompletos trinta e cinco anos, a mesma idade de Machado quando
compôs A mão e a luva, um de seus
primeiros romances (1874). Tornava-se Lucia, com o livro seminal, uma estrela
na constelação das letras nacionais. Um mês antes, em agosto de 1936, viera a
lume Angústia, o romance que
consagrou o alagoano Graciliano Ramos como o mais completo ficcionista brasileiro
depois de Machado de Assis.
Haviam
decorrido, então, exatos vinte e oito anos da morte de Machado, e o inigualável
escritor, o maior de todos, ainda não tinha merecido uma obra como a que Lucia Miguel
Pereira produziu com mão de refinada esteta, admiração de leitora encantada e
perspectiva crítica de superior conhecedora da vida e da obra de seu luminoso personagem.
Antes
do livro pioneiro de Lucia, surgiram diversas manifestações de apologia e louvação
machadiana, mas nenhuma que pudesse ostentar a condição de biografia
intelectual do gênio literário brasileiro. Em 1899, numa contundente resposta a
críticas injustas e preconceituosas a Machado de Assis, Lafayette Rodrigues
Pereira, sob o pseudônimo de Labieno, produziu e publicou, nas páginas do Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro, Vindiciae – o Sr. Sylvio Romero. O impacto da contradita (em português,
Vinganças) foi arrasador, a ponto de, morto o Presidente e fundador da Academia
Brasileira de Letras, em 1908, Lafayette ser eleito, no ano seguinte, para sucedê-lo
na Cadeira n° 23 da gloriosa instituição. Mas Vindiciae é apenas uma pronta
e firme contestação a um ataque motivado pela importância que Sylvio
Romero, em livro de 1897, desejava que tivessem Tobias Barreto e a chamada
Escola do Recife em face de Machado. Labieno, com verve e erudição, provou que
a pretensão de Romero era infundada,
descabida e parcial.
Poucos
anos após o falecimento de Machado de Assis, em 1912, para ser preciso, seu
amigo Alcides Maya, fino escritor gaúcho, dedicou-lhe um precioso ensaio,
focado na forte influência inglesa que marcou as principais obras machadianas,
mais especificamente o ciclo virtuoso que se iniciou em 1880, com a publicação,
inicialmente na Revista Brasileira,
das Memórias Póstumas de Brás Cubas.
Intitulado Machado de Assis –algumas
notas sobre o humour, o livro de Maya nasceu com o destino selado: seria,
para sempre, um clássico dos estudos machadianos, um rigoroso apanhado das
decisivas influências que William Shakespeare, Jonathan Swift, Laurence Sterne (mormente
este), Charles Dickens e William Thackeray exerceram sobre Machado,
diferenciando sua obra de tudo o que existia até então em nossa literatura,
precisamente pela força do humor, da ironia, do sarcasmo, do riso castigando os
costumes, da observação psicológica, da corrosividade, da ausência de qualquer
ilusão sobre os homens. Em 2015, com apresentação do acadêmico e professor
Alfredo Bosi, o Machado de Assis de
Alcydes Maia foi relançado, em terceira edição (a segunda saíra em 1942), pela
ABL, na Coleção Afrânio Peixoto.
Entretanto,
Alcides Maya não escreveu uma biografia. Seu livro é de extração ensaística, de
qualidade rara, mas um ensaio. Na mesma categoria se inserem os ensaios
críticos de Araripe Júnior, cobrindo o período de 1895 a 1900, em que o
cearense analisa e interpreta, com visão de expert,
o alcance da obra machadiana, que, naquele momento, já abarcava os três
romances que dela fizeram conjunto insuperável de criação romanesca: o
mencionado Memórias Póstumas de Brás
Cubas, que saiu em livro em 1881, Quincas
Borba, de 1891, e Dom Casmurro, de
1899. Mas Araripe, a exemplo de Alcides Maya, não foi biógrafo de Machado de
Assis. Interpretou sua obra de modo impecável, teve a nítida percepção de que
se estava diante de uma nova estética na Literatura Brasileira, porém não
biografou, na medida clássica da expressão, o imenso vulto que marcou nossas
letras de modo tão avassalador.
Quem
mais se aproximou de fazê-lo, quem ficou mais próximo de uma biografia de
Machado, antes de Lucia Miguel Pereira, foi Alfredo Pujol, numa série de sete
conferências, proferidas ao longo de quase três anos, de novembro de 1915, a
primeira, a março de 1917, a sétima, na Sociedade de Cultura Artística de São
Paulo. Alguns meses após a última, editou-se o volume reunindo todas elas, com
o título de Machado de Assis –
Conferências, sob a égide da Typographia Levi. Recentemente, em 2007, o
livro de Pujol foi republicado em caprichada coedição da Academia Brasileira de
Letras e da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo.
Advogado
e bibliófilo, dono de estupenda biblioteca, Alfredo Pujol se tornara, pela
leitura incessante, admirador incondicional da obra machadiana. Suas
conferências têm, portanto, as características da paixão, do culto à memória de
Machado de Assis, do amor de um autêntico precursor dos biógrafos machadianos.
Paciente, determinado e dedicado, Pujol percorreu nas suas célebres sete
conferências, livro após livro, toda a produção de Machado, num trabalho sem
descanso de divulgação e afirmação, iniciado quando eram decorridos apenas sete
anos da morte de Machado de Assis e ainda sob o impacto da crítica destrutiva e
negativa de Sylvio Romero, não obstante já ter sido contraditada por Lafayette
Rodrigues Pereira, Araripe Júnior e José Veríssimo. Aqui, de novo, não se
tratou de uma biografia no sentido técnico, e sim de um preito de reverência,
da palavra pronunciada com riqueza de informações concretas e incontida veneração,
enfim, das impressões descritivas de um leitor genuinamente apaixonado.
Por
volta de 1932, surgiram os livros de
Fernando Nery, Vianna Moog, Mário Casasanta e a reedição, em Minas Gerais, do Vindiciae, de Lafayette Rodrigues
Pereira. Em 1935, outro gaúcho, Augusto Meyer, publicou seu revolucionário
ensaio machadiano, livro de alto quilate, reeditado algumas vezes em décadas
posteriores. Meyer pôs em relevo o lado demoníaco, subterrâneo, de Machado,
traduzido em amargor e ódio à vida, toda uma filosofia niilista e trágica a
envolver seus contos e romances de uma atmosfera densa de pessimismo e
derrotismo.
Biografia
mesmo, na acepção mais estrita e corrente do termo, foi Lucia quem primeiro
fez. Com o subtítulo Estudo Crítico e
Biográfico, ela soube mostrar Machado de Assis como um complexo e
humaníssimo personagem brasileiro e deu à sua obra uma interpretação de cunho
psicológico, social e cultural que até hoje, dezenas de biógrafos, dúzias de
biografias e centenas de interpretações depois, permanece como referência
inafastável nos estudos machadianos.
Em
uma antológica sucessão de capítulos (vinte e um, no total) e passagens
memoráveis, lastreada em longo período investigativo e produzida com absoluto
domínio de recursos estilísticos, Lucia Miguel Pereira evidenciou, no seu
primeiro grande livro, que não haverá, em nossa literatura, uma biografia dessa
natureza – biografia e estudo crítico de um puro homem de letras.
Lucia
fixou, para a eternidade, a vida de um mestiço de origem humilde – filho de um
mulato carioca, pintor de paredes, e de uma imigrante lusitana da Ilha dos
Açores – que, tendo frequentado apenas a escola primária e sido obrigado a
trabalhar desde a infância, alcançou alta posição na burocracia e obteve a
consideração social numa época em que o Brasil era ainda uma monarquia
escravocrata. É certo, e justo frisar, que, graças às tendências literárias do
Imperador Pedro II, o valor intelectual era então mais acatado, em comparação
com o econômico e, até mesmo, com os valores hereditários.
Autodidata,
Machado se formou na Biblioteca do Real Gabinete Português de Leitura (localizada
na Rua Luís de Camões, n° 30, no centro da cidade do Rio de Janeiro), valendo
notar que, na presidência de Machado de Assis (1897-1908), a ABL veio a
realizar várias sessões solenes, de posse e de saudade, no Real Gabinete
Português de Leitura. Foi a volta triunfal de Machado às suas mais caras
origens culturais, ao berço de sua prodigiosa ascensão intelectual e social.
Aprendiz de tipógrafo e,
depois, revisor, tudo Machado de Assis aprendeu por si. E pelo esforço próprio
foi erguendo o espírito e depurando o gosto de tal modo que aos 42 anos, ao
publicar em livro as Memórias Póstumas de
Brás Cubas, se apresentou perfeito na forma, sem vestígios do autodidatismo
e da falta eventual de um ambiente familiar socialmente elevado. Foi precoce -
seu primeiro poema data dos 16 anos –,
triunfou cedo, viu-se consagrado, como poeta, aos 25 anos, com Crisálidas, fez a sua evolução dentro de uma época literariamente
convencional, viveu sempre no Brasil, longe dos grandes centros da civilização
literária, prodigalizou-se em colaborações jornalísticas, obteve um êxito
prematuro em contos ainda balbuciantes e romances sem originalidade, julgou-se,
talvez, principalmente poeta – e nenhum desses fatores negativos o prejudicou e
nada impediu a eclosão, quase súbita, da obra novelesca de língua portuguesa
mais reveladora de genial poder de análise psicológica.
Como demonstra Lucia
Miguel Pereira, o poeta parnasiano das Ocidentais
não é, sem dúvida, desvalioso, e quem escreve o soneto A Carolina – a mulher de Machado, a portuguesa Carolina Augusta
Xavier de Novais, que tão beneficamente influiu na sua vida – merece figurar em
qualquer antologia da lírica em nosso idioma. Mas é tão excepcional o valor do
contista e do romancista que o brilho de sua estrela poética empalidece, aos
olhos de sua primeira e mais importante biógrafa. Também o seu teatro ficou na
sombra.
Nunca se deu, aliás, é
também Lucia quem registra, na Literatura Brasileira, e muito raramente em
qualquer literatura, um fenômeno como o de Machado de Assis, que, quase de
repente, já na maturidade, se pôs a fulgurar com brilho próprio e tão intenso
que passou a ser, e ainda hoje o é, o mais original escritor do Brasil. Antes
dos 50 anos, pôde ser celebrado pelos contemporâneos como “o primeiro de
todos”, “o único” – e, se não é o único, numa literatura que conta alguns
valores absolutos, é, pelo menos, o maior escritor brasileiro de todos os
tempos, o mais extraordinário contista da língua portuguesa e um dos raros
romancistas de interesse universal, como o atestam as traduções das suas obras
mais representativas para os principais idiomas cultos, sem que haja influído
nessa referência a atualidade dos seus livros, mas, sim, a perenidade de sua
quase ferina análise da alma humana.
Para Lucia Miguel Pereira, as Memórias Póstumas de Brás Cubas e o Dom Casmurro, sem a menor dúvida, mas
também Quincas Borba, Esaú e Jacó, de
1904, Memorial de Aires, de 1908, e
muitos dos contos de Machado, incluídos em Papéis
Avulsos (1882), Histórias Sem Data (1884),
Várias Histórias (1896) e Páginas Recolhidas (1899), dão-lhe o
direito de ocupar o topo da literatura brasileira, pela originalidade da
concepção, pela agudeza dos conceitos, pela penetrante análise dos sentimentos
e pela perfeição do estilo sóbrio e conciso numa literatura derramada. Mas,
segundo Lucia, só a capacidade criadora, que permitiu a Machado de Assis subtrair
as personagens dos seus melhores romances e contos às contingências de tempo e
de lugar, tornando-as emblemáticas das paixões humanas, consideradas em absoluto, poderia fazer
dele o escritor colossal que é.
Machado
teve em Lucia Miguel Pereira uma biógrafa que o honrou sobejamente, produzindo uma
obra notável, uma “pesquisa biográfica e crítica da melhor qualidade”, no dizer
abalizado e culto de Astrojildo Pereira, ele mesmo autor de primoroso livro de
ensaios machadianos, sob o enfoque próprio de sua visão materialista das
relações sociais, saído do prelo em 1959, ano da morte de Lucia.
Em
dezembro de 1936, ao completar 35 anos de idade, Lucia Miguel Pereira acabava
de ser consagrada como escritora, circunstância que premiou seu monumental
esforço de leitura, interpretação e divulgação da obra machadiana. Exercia,
também, em caráter regular, a crítica literária nas páginas do Boletim de Ariel, posição que manteve
até 1937.
No
plano pessoal, celebrava o delicioso início de uma relação amorosa e conjugal
com Octavio Tarquínio de Sousa, naquilo
que seria o ponto mais alto da existência de dois seres de exceção: vida de
paz, de mansidão, de estudo, de recolhimento, “vida de reciprocidade no amor
pelos esponsais do sangue”, nas palavras irretocáveis de Alceu Amoroso Lima.
O
reconhecimento público de Lucia, já tratada como ensaísta das mais vigorosas de
uma geração de expoentes, veio com a atribuição, à sua formidável biografia
machadiana, do maior prêmio literário da época, concedido pela Sociedade Felipe
d’Oliveira, fundada em 1933 e composta por quinze intelectuais brasileiros de
primeira grandeza, naqueles idos. A última edição revista por Lucia Miguel
Pereira foi a quinta, de 1955. Nela, a exemplo das quatro que lhe antecederam,
o parágrafo final se manteve intacto, contemplando a síntese das sínteses,
jamais superada, sobre o magnífico biografado:
“À
medida que vai recuando para o passado, sentimos melhor o que representa para o
Brasil esse mestiço que tanto elevou a sua gente e o seu país, a pureza dessa
personalidade que paira sobre a literatura brasileira como um símbolo da
nobreza do pensamento e do poder do espírito.”
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