terça-feira, 6 de agosto de 2019

JAZZ, Toni Morrison


A afinidade entre Faulkner e Toni Morrison do romance Jazz é por demais evidente. Em Faulkner a relação entre negro e branco do sul dos EUA percorre várias de suas obras. Jazz se afina com Absalão, Absalão, quando trata de sangue mestiço entre negro e branco, paternidade, filho rejeitado, ambiente sulista e sufocante de calor e de conflitos amorosos e doloridos dentro de um círculo bem restrito de personagens. Além do mais, Morrison gosta de situar a ação dos seus personagens num tempo histórico passado. No caso de Jazz, a ação transcorre nos anos 20 quando o casal Joe e Violet Trace migra para a cidade grande e se fascinam pela modernidade e anonimato dos grandes centros urbanos. Durante várias páginas do romance há referência à cidade grande e seus aspectos urbanísticos, sociológicos e psicológicos. Já é a grande cidade que traga os personagens vindos do interior agrário e atrasado, sem perspectiva de emprego e, no caso de Jazz, fugindo também do racismo. Morrison volta a se aproxima de Faulkner – ou usa de seus artifícios artesanais para construir sua narrativa – de vozes que constroem o painel romancesco.
Belo e trágico romance, Jazz se inicia pelo clímax. Joe, o marido de Violet, cinquentão, se enamora da jovem Dorcas e a mata ao ver-se abandonado por ela. Violet vai ao enterro e tenta retalhar o rosto da morta. O resto do romance mostra como vive e vivia o casal, as razões do ato de Violet e de Joe, tudo narrado, a princípio pela voz anônima de uma amiga da falecida Dorcas. Lembrei-me do romance de Paul Auster, Levitã, que se inicia com uma grande explosão, que poderia estar no final do romance. Da mesma maneira, a morte de Dorcas poderia vir precedida de um longo trajeto narrativo em que culminaria com o desfecho trágico. Ao começar pelo fim e desfazer o clímax, Morrison mostra habilidade ao narrar sua história e, mesmo que saibamos o fim, ficamos presos aos detalhes das vidas perdidas de um casal de negros provinciano sobrevivendo na cidade grande nos anos iniciais do jazz, música pecaminosa (ressalta a tia de Dorcas), cheia de luxúria e que leva ao pecado.

Ganhadora do primeiro prêmio Nobel para uma escritora negra, Toni Morrison tem em sua bibliografia o já filmado Beloved (Amada), recém-reeditado pela Companhia das Letras, numa bela edição em capa dura. E também de Compaixão, ambos romances históricos não no sentido de que se apropriam de fatos e personagens da História, mas é em séculos anteriores em que se passa o relato da vida simples e conflituosa dos seus personagens que não estão nas páginas dos livros escolares, mas constituem a grande massa que com sangue, suor e drama escrevem seus nomes no anonimato do espaço romanesco das paixões humanas.
Em Jazz, pode-se estabelecer um tipo de comportamento que diz respeito às relações ou intercursos entre personagens. Chamaríamos de círculos concêntricos aqueles romances que a partir de um dado ou uma ação se desenvolve toda a trama. É mais ou menos como se jogamos uma pedra n’água e os diversos círculos se ampliam, inclusive com espaços diversos. Em Jazz, a primeira ação desencadeadora (embora na verdade cronológica seja uma das últimas) é a morte da jovem Dorcas pelo amante cinquentão Joe. Também faz parte da narrativa um comportamento muito curioso que já foi utilizado antes na história da literatura e, no caso do Brasil, no século XIX, por Raul Pompeia no seu O Ateneu: o eu onisciente. Este paradoxo refere-se ao fato de o narrador em primeira pessoa falar sobre os outros personagens dominando a psicologia alheia e até mesmo narrando fatos em que não esteve presente. Lêdo Ivo e Silviano Santiago observaram e estudaram bem este tipo de narrador em O Ateneu. Aqui também em Jazz temos a amiga de Dorcas, Felice, que nos narra com a desenvoltura de um narrador onisciente.

Ronaldo Costa Fernandes

domingo, 4 de agosto de 2019

O incêndio, conto RCF


As crianças nasceram grandes. Ficam na sala, olhares fixos, braços pendidos. As crianças falam dentro da minha cabeça. Às vezes ouço elas mesmo no trabalho.

Não podia ter um trabalho mais ordinário. Fui gari, com emprego garantido por concurso, mas fui expulso por roubo. Não, não fui eu quem roubou. Sumiram do depósito algumas peças, principalmente vassouras. Havia um desgraçado qualquer que roubava vassouras para revender. Não sei como me envolveram no caso, de repente estava no olho da rua.

Agora estou nessa firma de limpeza. Me mandaram para cá. Não reclamo, pobre não pode reclamar, se tivessem mandado pro inferno, ia deixar o inferno limpinho. Aqui não é o inferno, mas bem que tem ligação com ele. Meu trabalho aqui é limpar o necrotério. A parte de cima, que tem escritório e recepção, é moleza. O duro mesmo é limpar as salas de autópsia. Varrer do chão o resto dos cadáveres. É ver os bichos lá estendidos. Recolher os sacos de lixo com bando de fígado, vesícula, pedaço de coração, linha pra costurar defunto, o diabo a quatro num lixo que vai ser queimado. A gente usa luva. Mas mesmo usando luva a impressão que tenho é que toco naquelas partes mortas e que aquelas partes mortas me infeccionam. Tem gente que morre de tiro, mas tem morto que está ali porque desconfiam de doença contagiosa. Um dos médicos já morreu porque tocou no cadáver sem luva, adoeceu, quando a gente deu conta quem estava na mesa era o médico que não fazia uma semana estava em pé, diante de outro cadáver, na mesma mesa em que agora estava estendido.

A gente já se acostumou a ver defunto. A gente se acostuma com tudo. Moro na periferia, num bairro que não pode ser chamado de bairro, é uma invasão. Tem um bando de malandro por lá. Eu quase virava malandro. A vida te leva a ser bandido. Não tenho raiva de bandido, eu até que entendo eles. Pois bem, agora não há mais surpresa e medo. Mas a primeira vez que vi um bandido lá da invasão em cima da mesa do necrotério, meu coração disparou. Era como se eu estivesse ali. A gente mora vizinho ao crime. O crime está na nossa porta. Às vezes até dentro de casa. Se você pegar as famílias da invasão você vai ver que em cada família você encontra um bandido. Aqui em casa não há bandido, mas podia haver.

Deus meu, nunca mais me esquecerei da cena. O Magro deitado lá na mesa, o rosto estraçalhado, não precisa nem de autópsia nem ser médico para dizer a causa mortis do malandro. Com o tempo, a gente aprende umas palavras com os médicos e com os assistentes. Eu não gosto de falar palavras que aprendo no necrotério lá onde moro, porque não quero parecer pernóstico. O pessoal fala presunto, nós falamos o falecido, o melhor é quando algum advogado fala o de cujo, aí é de doer. Os evangélicos também dizem o falecido. Os evangélicos são mais espertos porque lêem a Bíblia. Eu não acho fácil ler a Bíblia, porque tem um monte de palavras difíceis. Acho até mesmo que muito evangélico lá da invasão fala as palavras, mas não sabe o que significam. Pobre mora em outro país, com outras leis, outro povo, outra língua. O diabo é a gente trabalhar de dia no país dos outros e de noite ir dormir no país da gente.

Não tenho memória do meu tato. Só percebo que tenho mãos quando elas seguram o cabo da vassoura, agarram o pano úmido e cáustico. Meu suor é cáustico. Os cadáveres não só cheiram à morte, também exalam outros vapores – soda cáustica, raticida, álcool, cloro.

Por isso eu grito: Sai daí, Maria. Sai daí. Ela não me ouve. Uma mulher inerte, gigantesca, peitos imensos. Nada em Maria é resto. Seca, dura, olhar de pedra. Não me acaricia. A carícia tem um nome desajeitado. O modo de ser de Maria é de silêncio das coisas mecânicas. Uma vitrola quebrada, um rádio sem pilha. Agora o fogo deve ter outras manias, embora a única função dele seja desinventar. O fogo também é memória que se apaga. O fogo tem mania de negar o mundo. O fogo não é morte, o sol é um fogo, logo, se pode inventar o dia, o fogo não pode ser a noite dos homens. E ninguém dentro da casa ruge, ninguém dentro da casa geme. Só gemem a madeira, os vidros – o olho vidro de Maria podia gemer –, os vidros se quebram, só o fogo reclama com ruído, raiva, dor e chiado de quem morde o ar.

Tudo pega fogo, o inferno é brutal. O inferno não tem nome. Meu medo é de que eu pegue fogo por dentro. Aí minha memória vira cinza e permanecerei eternamente com o cheiro de fumaça. Há muito que tudo era cinza. Posso fazer outra Maria e outras duas crianças. O pior fogo queima sem se ver e não há água que apague. As chamas estão no chão do necrotério, as chamas estão nos ônibus, meus olhos estão cansados – incendiados – de pânico e perversão.

Maria agora é apenas um resto. Ou menos que um resto. As crianças não sentiram nada. As crianças nunca sentiram nada. Dois bonecos de pano não sentem nada, além de uma existência de algodão, mudez e imobilidade. Não pense que há morbidez na companhia de bonecos. Fiz eles para me dar companhia. Um homem precisa de família.