Esta é a história de Vladimir, o cineasta. (Sempre quis começar um conto com: Esta é a história de. Que prazer me dá escrever Esta é a história de. Um dia começarei um conto com Era uma vez. Mas o que tem Vladimir?) Vladimir era contratado por uma empresa pública para filmar os eventos oficiais do governo. O celulóide lá dele vinha com sigla estatal. Ele havia colocado num quadradinho Vargas e Juscelino. E não só Vargas e Juscelino, como também políticos, o chefe de polícia Felinto Muller, senadores, ministros (entre eles, Jango e Tancredo) e um bando de outros com terno e lenço no bolso do paletó. O olho de Vladimir, estatal ou privado, era olho inteligente. Algumas imagens que vemos até hoje do enterro de Getúlio traziam o dedo de Vladimir. Ou melhor, o olho estatal de Vladimir.
A mulher de Vladimir, D. Isaurinha, era desleixada. Eu visitava muito o quarto do casal.
– Bom dia, D. Isaurinha, seu Vladimir está?
– Acordou cedo, se banhou, fez a barba, nem tocou no café e foi trabalhar.
D. Isaurinha vivia de robe. Era proibido cozinhar no quarto. Mas D. Isaurinha sempre arrumava um jeito. Eu entrava no quarto de Vladimir e sentia logo o cheiro de fritura. Mas não era sempre que cozinhava, porque D. Isaurinha era preguiçosa pra caramba. Ela esquentava chá para o marido num fogareiro e, para ela, um leite encapotado. O gerente do hotel, de gravata borboleta, que vivia de olho para que ninguém cozinhasse nos quartos, fazia vista grossa (para quem fala de olho, de lente, a expressão vista grossa é no mínimo um desleixo de linguagem) para a mulher de Vladimir. Por Vladimir ter olho de governo, o gerente, de gravatinha de seda, era solícito. Quem sabe seu Vladimir, com sua influência no Catete, não arrumava a vida de um sobrinho que não queria nada com o batente?
D. Isaurinha já fora muito bonita. Chegou a trabalhar de aeromoça da Real.
– Você não conheceu essa mulher antes – dizia Vladimir. – Era um broto. Um corpaço.
O que Vladimir não contou é que, quando se conheceram, Isaurinha era amante de um comandante casado. Eles faziam o vôo para Miami, que levava vinte e quatro horas para chegar, e depois iam namorar no hotel de South Beach. O comandante ainda chegou a andar atrás de Isaurinha, mesmo depois que ela andava já de cacho com Vladimir. O maior trunfo do comandante era ser comandante não apenas de vôo internacional, mas comandante nada mais nada menos que do Constellation.
– Ele é comandante lá pras máquinas dele do Constellation, mas não aqui no Hotel Flórida. Aqui, o comandante sou eu.
Vladimir chegou a flagrar Isaurinha no vestíbulo do hotel, conversando em voz baixa com o comandante. Ah, foi uma confusão aeronáutica: voou alto o quepe, os gritos subiram a alturas, dois ou três sopapos aterrissaram no rosto do comandante.
O rádio Telefunken de Vladimir era feito de um só ouvido: a emissão em português da rádio de Moscou. Eu ia para o quarto de Vladimir escutar em clandestino a vida lá fora. Dziga Vertov era o nome que Vladimir queria ter na sua certidão de nascimento. O pai de Vladimir também fora comunista. Por isso Vladimir se chamava Vladimir. Em homenagem a Vladimir Ilich Ulianov (dito Lênin).
Mas um dia, tudo começou a degringolar. E não foi por causa do comandante, não. Começou no café da manhã.
– Por que você não come?
– Não está vendo?
– O quê? Era pra ver alguma coisa?
– Meu Deus, por que tinha que casar com uma mulher burra?
Isaurinha já conhecia o gênio irascível. Resolveu não dar continuidade à conversa. Comeu sozinha, mas desconfiada. De que o marido estaria falando?
A revolta de Vladimir não era culinária, a revolta de Vladimir era cinematográfica. Vladimir não podia comer o bolo, porque um visor não é boca, um visor é um visor. Não se abre, não mastiga – sim, um visor não deglute porque não tem entrada nem ducto que leve o alimento –, não podia comer, tragar, comer o bolo.
A insensibilidade de Isaurinha também era dura como o visor. Mas a culpa era dele. Casara com uma mulher que fora modelo de O Cruzeiro, andara pelo mundo afora pela Real, agora queria que a cabeça comissária de Isaurinha tivesse pensamentos cinematográficos. Era demais.
No espelho do banheiro, Vladimir confirmou a monstruosidade plástica.
– Toque aqui – disse Vladimir.
Toquei. O contato com o lábio mole me deu asco. Limpei os dedos, com disfarce, na perna da calça.
– Só penso em cinema, Aurélio – me confessou. – Só penso em cinema. Antes pensava em cinema e em Isaurinha, mas agora só penso em cinema. Casei com o cinema, os padres não casam com a igreja, as freiras com Jesus Cristo? Eu casei com o cinema.
E Vladimir espichou o lábio – desculpe, espichou o visor.
– Me vi no espelho, Aurélio, e não é só a boca que virou visor. A cabeça.
– O que tem a cabeça?
– Não vê?
Eu não via coisa alguma.
– Desculpe, estou sem óculos.
– A cabeça toda é uma máquina de filmar.
Antes que eu ou Isaurinha disséssemos alguma coisa, Vladimir saiu do quarto como se fosse chupado pela porta.
Vladimir levou o visor-boca ou boca-visor para o trabalho. O olho de Vladimir sempre fora uma lente. Engana-se quem via os óculos de Vladimir como óculos. Mas, literalmente considerar o olho lente, a boca visor, era exagero. Vladimir não falava comigo, grunhia. Claro, máquina não fala, máquina roda sua engrenagem. Grunhia como um filme passado muito rápido.
A cabeça-câmara ou a cabeça de câmara não afetava os relacionamentos comerciais.
Araújo era empresário do ramo têxtil. Encomendara a Vladimir um curta sobre a família e a indústria que herdara do pai. Queria ver a fábrica em celulóide – um celulóide centenário, chaminés misturadas com bigodes, engrenagens junto com quadros nobiliárquicos na parede, operários saindo da fábrica e discurso do patriarca.
Uma boca de visor não toma líquido, por que o garçom lhe oferecia bebida? Vladimir olhou com raiva o garçom com o único olho da máquina em que se transformara a cabeça. Trouxe as estimativas de custo? perguntou Araújo. Boca de visor, as orelhas de cravelha.
– O senhor vai me falir, seu Vladimir – brincou Araújo.
Por fim não agüentou: O senhor me desculpe, seu Araújo, mas estou com a pulga atrás da orelha (e pensou consigo mesmo, talvez fosse melhor dizer, com a pulga atrás da cravelha). O senhor não nota nada estranho em mim, seu Araújo?
– Está mais magro – disse Araújo que aperta os olhos e deita a cabeça como quem avalia. – Deixa eu ver mais. Pintou o cabelo. Por que o senhor pintou o cabelo, seu Vladimir?
– Eu lá pintei cabelo algum, seu Araújo.
E inflamado e ofendido:
– Eu tenho é uma máquina na cabeça. Está olhando aqui, e apontou para os olhos. Isso aqui é uma lente.
Araújo interpretou aquilo de forma simbólica. Os artistas usam símbolos. Ou não usam?
– Ah, disse Araújo. Uma lente, é claro, uma lente.
Um mês depois o cineasta Vladimir – apaixonado por Lênin, discípulo de Dziga Vertov –, um mês depois do encontro com o industrial Araújo, o cineasta Vladimir morreu.
Os últimos dias de Vladimir foram melancólicos. Fechou-se no quarto, não se alimentava, não queria visitas. O que poderia alimentá-lo era película. Mas película não engorda, não dá tutano, não faz o camarada levantar da cama. Boca de visor, orelha de cravelha, os olhos-lente. O pensamento era o mesmo filme, desconexo, mal montado, imagens aleatórias, algumas fora de foco. O foco da infância. O foco da infância tem medo de quarto escuro. O foco tem castigos.
Fui ao enterro, no Caju. Poucas pessoas. Fumei lá fora, não pude ver Vladimir no caixão. Aliás, nem podia ver Vladimir. Isaurinha pediu para lacrar o caixão. Teve medo. Um ruído estranho, de máquina rodando, saída da cabeça do defunto. Melhor lacrar.
(Manual de Tortura, 2007)
imagem retirada da internet: cine retrô