sábado, 8 de janeiro de 2022

Uma câmara na cabeça, conto RCF


Esta é a história de Vladimir, o cineasta. (Sempre quis começar um conto com: Esta é a história de. Que prazer me dá escrever Esta é a história de. Um dia começarei um conto com Era uma vez. Mas o que tem Vladimir?) Vladimir era contratado por uma empresa pública para filmar os eventos oficiais do governo. O celulóide lá dele vinha com sigla estatal. Ele havia colocado num quadradinho Vargas e Juscelino. E não só Vargas e Juscelino, como também políticos, o chefe de polícia Felinto Muller, senadores, ministros (entre eles, Jango e Tancredo) e um bando de outros com terno e lenço no bolso do paletó. O olho de Vladimir, estatal ou privado, era olho inteligente. Algumas imagens que vemos até hoje do enterro de Getúlio traziam o dedo de Vladimir. Ou melhor, o olho estatal de Vladimir.
A mulher de Vladimir, D. Isaurinha, era desleixada. Eu visitava muito o quarto do casal.
– Bom dia, D. Isaurinha, seu Vladimir está?
– Acordou cedo, se banhou, fez a barba, nem tocou no café e foi trabalhar.
D. Isaurinha vivia de robe. Era proibido cozinhar no quarto. Mas D. Isaurinha sempre arrumava um jeito. Eu entrava no quarto de Vladimir e sentia logo o cheiro de fritura. Mas não era sempre que cozinhava, porque D. Isaurinha era preguiçosa pra caramba. Ela esquentava chá para o marido num fogareiro e, para ela, um leite encapotado. O gerente do hotel, de gravata borboleta, que vivia de olho para que ninguém cozinhasse nos quartos, fazia vista grossa (para quem fala de olho, de lente, a expressão vista grossa é no mínimo um desleixo de linguagem) para a mulher de Vladimir. Por Vladimir ter olho de governo, o gerente, de gravatinha de seda, era solícito. Quem sabe seu Vladimir, com sua influência no Catete, não arrumava a vida de um sobrinho que não queria nada com o batente?
D. Isaurinha já fora muito bonita. Chegou a trabalhar de aeromoça da Real.
– Você não conheceu essa mulher antes – dizia Vladimir. – Era um broto. Um corpaço.
O que Vladimir não contou é que, quando se conheceram, Isaurinha era amante de um comandante casado. Eles faziam o vôo para Miami, que levava vinte e quatro horas para chegar, e depois iam namorar no hotel de South Beach. O comandante ainda chegou a andar atrás de Isaurinha, mesmo depois que ela andava já de cacho com Vladimir. O maior trunfo do comandante era ser comandante não apenas de vôo internacional, mas comandante nada mais nada menos que do Constellation.
– Ele é comandante lá pras máquinas dele do Constellation, mas não aqui no Hotel Flórida. Aqui, o comandante sou eu.
Vladimir chegou a flagrar Isaurinha no vestíbulo do hotel, conversando em voz baixa com o comandante. Ah, foi uma confusão aeronáutica: voou alto o quepe, os gritos subiram a alturas, dois ou três sopapos aterrissaram no rosto do comandante.
O rádio Telefunken de Vladimir era feito de um só ouvido: a emissão em português da rádio de Moscou. Eu ia para o quarto de Vladimir escutar em clandestino a vida lá fora. Dziga Vertov era o nome que Vladimir queria ter na sua certidão de nascimento. O pai de Vladimir também fora comunista. Por isso Vladimir se chamava Vladimir. Em homenagem a Vladimir Ilich Ulianov (dito Lênin).
Mas um dia, tudo começou a degringolar. E não foi por causa do comandante, não. Começou no café da manhã.
– Por que você não come?
– Não está vendo?
– O quê? Era pra ver alguma coisa?
– Meu Deus, por que tinha que casar com uma mulher burra?
Isaurinha já conhecia o gênio irascível. Resolveu não dar continuidade à conversa. Comeu sozinha, mas desconfiada. De que o marido estaria falando?
A revolta de Vladimir não era culinária, a revolta de Vladimir era cinematográfica. Vladimir não podia comer o bolo, porque um visor não é boca, um visor é um visor. Não se abre, não mastiga – sim, um visor não deglute porque não tem entrada nem ducto que leve o alimento –, não podia comer, tragar, comer o bolo.
A insensibilidade de Isaurinha também era dura como o visor. Mas a culpa era dele. Casara com uma mulher que fora modelo de O Cruzeiro, andara pelo mundo afora pela Real, agora queria que a cabeça comissária de Isaurinha tivesse pensamentos cinematográficos. Era demais.
No espelho do banheiro, Vladimir confirmou a monstruosidade plástica.
– Toque aqui – disse Vladimir.
Toquei. O contato com o lábio mole me deu asco. Limpei os dedos, com disfarce, na perna da calça.
– Só penso em cinema, Aurélio – me confessou. – Só penso em cinema. Antes pensava em cinema e em Isaurinha, mas agora só penso em cinema. Casei com o cinema, os padres não casam com a igreja, as freiras com Jesus Cristo? Eu casei com o cinema.
E Vladimir espichou o lábio – desculpe, espichou o visor.
– Me vi no espelho, Aurélio, e não é só a boca que virou visor. A cabeça.
– O que tem a cabeça?
– Não vê?
Eu não via coisa alguma.
– Desculpe, estou sem óculos.
– A cabeça toda é uma máquina de filmar.
Antes que eu ou Isaurinha disséssemos alguma coisa, Vladimir saiu do quarto como se fosse chupado pela porta.
Vladimir levou o visor-boca ou boca-visor para o trabalho. O olho de Vladimir sempre fora uma lente. Engana-se quem via os óculos de Vladimir como óculos. Mas, literalmente considerar o olho lente, a boca visor, era exagero. Vladimir não falava comigo, grunhia. Claro, máquina não fala, máquina roda sua engrenagem. Grunhia como um filme passado muito rápido.
A cabeça-câmara ou a cabeça de câmara não afetava os relacionamentos comerciais.
Araújo era empresário do ramo têxtil. Encomendara a Vladimir um curta sobre a família e a indústria que herdara do pai. Queria ver a fábrica em celulóide – um celulóide centenário, chaminés misturadas com bigodes, engrenagens junto com quadros nobiliárquicos na parede, operários saindo da fábrica e discurso do patriarca.
Uma boca de visor não toma líquido, por que o garçom lhe oferecia bebida? Vladimir olhou com raiva o garçom com o único olho da máquina em que se transformara a cabeça. Trouxe as estimativas de custo? perguntou Araújo. Boca de visor, as orelhas de cravelha.
– O senhor vai me falir, seu Vladimir – brincou Araújo.
Por fim não agüentou: O senhor me desculpe, seu Araújo, mas estou com a pulga atrás da orelha (e pensou consigo mesmo, talvez fosse melhor dizer, com a pulga atrás da cravelha). O senhor não nota nada estranho em mim, seu Araújo?
– Está mais magro – disse Araújo que aperta os olhos e deita a cabeça como quem avalia. – Deixa eu ver mais. Pintou o cabelo. Por que o senhor pintou o cabelo, seu Vladimir?
– Eu lá pintei cabelo algum, seu Araújo.
E inflamado e ofendido:
– Eu tenho é uma máquina na cabeça. Está olhando aqui, e apontou para os olhos. Isso aqui é uma lente.
Araújo interpretou aquilo de forma simbólica. Os artistas usam símbolos. Ou não usam?
– Ah, disse Araújo. Uma lente, é claro, uma lente.
Um mês depois o cineasta Vladimir – apaixonado por Lênin, discípulo de Dziga Vertov –, um mês depois do encontro com o industrial Araújo, o cineasta Vladimir morreu.
Os últimos dias de Vladimir foram melancólicos. Fechou-se no quarto, não se alimentava, não queria visitas. O que poderia alimentá-lo era película. Mas película não engorda, não dá tutano, não faz o camarada levantar da cama. Boca de visor, orelha de cravelha, os olhos-lente. O pensamento era o mesmo filme, desconexo, mal montado, imagens aleatórias, algumas fora de foco. O foco da infância. O foco da infância tem medo de quarto escuro. O foco tem castigos.
Fui ao enterro, no Caju. Poucas pessoas. Fumei lá fora, não pude ver Vladimir no caixão. Aliás, nem podia ver Vladimir. Isaurinha pediu para lacrar o caixão. Teve medo. Um ruído estranho, de máquina rodando, saída da cabeça do defunto. Melhor lacrar.


(Manual de Tortura, 2007)

imagem retirada da internet: cine retrô

quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

Um homem é muito pouco, Euler Belém


Resultado de imagem para um homem é muito pouco ronaldo costa fernandes nankim


Intercalando com outras leituras, como livros de John Gray e “O Sonho do Celta”, de Mario Vargas Llosa, leio, com imenso prazer, o romance “Um Homem É Muito Pouco” (Nankin Editorial), de Ronaldo Costa Fernandes. Fico a pensar: por que um romance tão bem escrito, tão bem arquitetado, com linguagem e história bem conectadas, sem arestas visíveis, o que indica o prosador maduro (o uso da linguagem modernista é tranquilo, sem pedanteria, sem as pegadas de praxe, para gradar o leitor que procura o óbvio, as firulas elaboradas), em alta forma, não merece resenhas críticas nos principais jornais do país?
Não que Costa Fernandes seja desconhecido, mas a crítica de jornal parece voltada para qualquer lançamento de escritor de outro país — não importa a qualidade. (E não estou propondo nenhuma xenofobia.) Há pouco tempo, fiz um levantamento preliminar (estou terminando as anotações) sobre as resenhas da “Veja” durante todo o ano de 2010 e fiquei impressionado: parece que não há uma literatura brasileira. Livros de baixa qualidade, mas publicados no exterior, sobretudo nos Estados Unidos, merecem páginas e páginas na revista. Para disfarçar, sobretudo porque ampliou o espaço para reportagens e comentários sobre novelas — a TV Globo se tornou anunciante nas páginas da publicação de Roberto Civita —, a “Veja” publica notas sobre livros numa coluna de lançamentos. O último romance de Orhan Pamuk, pelo qual não nutro entusiasmo, exceto como crítico literário (talvez sua verdadeira vocação), mereceu uma nota na “Veja” e uma resenha adequada na “Época”, assinada por Luís Antônio Giron.
Sugiro aos leitores: leiam o romance de Ronaldo Costa Fernandes e, depois, me digam o que acharam. A história pode parecer intrincada, à primeira vista, mas a narrativa cadenciada é um esplendor e, aos poucos, as luzes vão aparecendo, desde que o leitor dê sua contribuição.


(Jornal Opção)


imagem retirada da internet: julien freud

quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

Estudo das chuvas, poema RCF










A primeira chuva é da natureza
que do céu provém
e cai em voo livre
cada gota um pássaro de água. 

A segunda chuva
pode  ser a ducha
que desaba artificial
torrente e fabricada
um chuva particular.

A terceira não é chuva
são pingos que dos olhos despencam,
em vez de escalar montanha
escorregam pelas encostas do rosto,
são poucas, sem asas,
gotas de chuva do choro,
uma chuva íntima,
tempestade miúda
a devastar o campo
de outro rosto:
a outra face do homem
o céu nebuloso que dentro traz.


(do livro O difícil exercício das cinzas. Rio: 7Letras, 2014)

segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

Os mortos, poema Memória dos Porcos


Resultado de imagem para otto dix                                                          

   A Júlia, in memoriam





Todos os mortos são um único morto,
todo morto são todos os mortos.
Cada morto é uma metonímia enterrada.
O esplendor de ouro das igrejas
me diz que Deus mandou
fazer o paraíso de ouro,
ele que tanto gosta de fazer
as coisas terrenas iguais às divinas.
Ou somente o homem é imagem e semelhança Dele?
E o inferno é que é à imagem e semelhança da terra?
Lá, no esplendor de ouro,
estão meus mortos,
silentes e atônitos,
sem entender que dor
foi essa chamada vida.








Coimbra, 16.10.2009