sábado, 14 de agosto de 2021

Aula de física, poema RCF





O pêndulo é suspenso pela dúvida
que transforma em dois o que é um.
O pêndulo e seus braços
que marcham sem sair do lugar.
Seguro à dúvida,
não sou dois nem um,
marcho parado,
sem conta que me dê jeito,
sem física que me conforme.




(do livro Eterno Passageiro, Ed. Varanda, Brasília, 2004)




imagem retirada da internet: chagall

terça-feira, 10 de agosto de 2021

Planalto em chamas, O difícil exercício das cinzas




 
O cerrado é fechado a quatro chaves.
A chave da seca, a chave do deserto,
a chave das queimadas, a chave das cinzas.
Os lábios racham, as palavras racham.
Mede-se a pressão alta dos incêndios
do cerrado hipertenso.


O cerrado vai comendo a si próprio,
na dieta incendiária.
A névoa seca engana os olhos
com seu véu de noiva incandescente
que se banha no rio de fogo.
O cerrado tem amor próprio,
aqui e ali brotoejam ipês
como mãozinhas amarelas
a acenar para olhos
também secos, também rudes,
também cerrados, também cardíacos.

(do livro O difícil exercício das cinzas. Rio, 7Letras, 2014)

segunda-feira, 9 de agosto de 2021

Café para dois, poema RCF









O café nos une.
Mas as palavras não se diluem
como quem adoça com pó de gesso.
É preciso degustar
o açúcar refinado das relações perigosas.

Sob a luz fria e fluorescente das negações,
a cegueira das mãos
que não sabem por onde andam.
O que nos separa não é uma mesa.
São a tabula rasa do medo,
a toalha dos bons comportamentos
e as quatro pernas do desejo.





(do livro Andarilho, Rio, 7Letras, 2000)