O último caso lhe deixou rombo formidável e uma bala encravada entre os
pulmões que os médicos não quiseram retirar. Menuhim sempre pensava na bala
quando abria as portas. A bala dentro do peito, entre os pulmões, esfriava e
dor úmida, arfante, gelada, vinha de dentro dele como presságio ou mau agouro.
Quando a bala se fazia sentir, ele recusava o cliente sem dar explicações e as
portas se fechavam para quem ele sempre as abriu.
Mateus e Clemente viram a primeira porta se abrir. Os dois entraram, a
porta de ferro fechou-se atrás deles e a porta da frente não se moveu.
Não se moveu porque o
velho armênio passou mal, não alcançou o botão que abria a segunda porta de
ferro. A intenção de Menuhim era destrancar a segunda porta, agora não apenas
por confiar na visita, mas porque sabia que estava prestes a sofrer ataque do
coração ou outro de igual potência e queria que a porta se descerrasse não para
atender o cliente, mas para que fosse salvo pelos visitantes.
Mas antes que alcançasse o botão, o relojoeiro dobrou as pernas, o olho
fixo e arregalado na tela da televisão que mostrava os dois, Clemente e Mateus,
ali postos entre ferros de porta e ele, Menuhim, à beira da morte. Quanto a Clemente
e Mateus os dois não se moviam, olhavam-se, batiam na porta como se a porta
fosse porta de se abrir no trinco e não de forma eletrônica. As batidas na
porta não chegavam ao ouvido de Menuhim, mesmo que os ouvidos de Menuhim
estivessem prontos para ouvir, mesmo que os ouvidos pudessem ouvir o que não se
podia ouvir porque os murros na porta de ferro não ultrapassam a mesma porta de
ferro.
Os dois, Clemente e Mateus, por sua parte, desconheciam o que acontecia
com o velho armênio que estava estirado e desmaiado no chão. Acreditavam que o
relojoeiro não queria abrir e os deixava ali naquele purgatório de ferro.
A luz ficava mais amarela, os tons marrons sobressaíam. Nenhum dos dois
tinha claustrofobia, embora Clemente fosse dado a imaginar a cama do camarote
como ataúde sempre que ali deitava e o sono não vinha. Os murros de Clemente e
Mateus ressoavam apenas dentro da pequena cela. Não gritavam, os gritos
doíam-lhe nos ouvidos.
Menuhim perdia o fôlego,
também ia ficando sem a vista das coisas, os mostruários, as ferramentas e as
joias todas rodando na sua cabeça. Vinha-lhe um ladrão que chegava perto dele e
dizia: Vim buscar o roubo final. As peças estão todas aí, leve-as todas,
respondia Menuhim. Mas o ladrão que estava diante do joalheiro não era ladrão
de joias. O ladrão que estava diante do velho viera buscar outro objeto do
armênio que não esperava tão cedo encontrar a tal porta e muito menos ser
assaltado por um bandido de outra espécie que não queria coisas materiais, ou
melhor, a única matéria que satisfazia o ladrão era a matéria corrompida do
corpo de Menuhim.
O porteiro tentou arrombar
a porta principal, a que dava para o corredor, mas logo percebeu que não
conseguiria, mesmo com instrumentos de arrombamento. Se o porteiro tivesse
conseguido teria ruído por terra toda a segurança de anos. Clemente e Mateus
perceberam que havia movimentação no corredor e agora gritavam para quem estava
no corredor e não mais para o joalheiro. Que diabo Menuhim havia feito com
eles, que brincadeira era aquela de deixá-los prisioneiros. Menuhim era homem
sem humor. Eles não acreditavam que aquela prisão entre portas de ferro fosse
mera brincadeira do velho armênio. Era essa certeza, a falta de humor, mesmo
que fosse humor rude, inexperto, camponês como o espírito de Menuhim que nunca
deixou a velha aldeia onde nascera e fora criado antes de vir para o Brasil,
mesmo que fosse esse tipo de humor, o velho armênio era incapaz de cometer.
Logo o que viviam era o inferno. Do purgatório ao inferno. Clemente olhou para o
companheiro que havia mostrado a vida inteira coragem inteiriça e agora só via
um sujeito vítima do próprio horror.
(Um homem é muio pouco. São Paulo: Nankin, 2010)