sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

Hipótese de tudo o mais, poema RCF


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Na escuridão, tudo vira hipótese.
E não há inferno pior que uma hipótese.
Um fogo brando, lento, escuro, corrosivo.
Não sei o tamanho da hipótese,
nem quando começa, nem quando termina.
O homem deveria ser senhor de suas hipóteses.
Não posso viver num mundo
em que tudo se transforma em hipótese.

(do livro Memória dos porcos. Rio: 7Letras, 2012)



quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

Samuel Rawet, poema RCF




A angústia judia e imigrante de Rawet,
que vivia apenas em seu gueto de Sobradinho.
Rawet morreu lendo, em sua cadeira de balanço,
e lá ficou três putrefatos dias.
O gueto de Rawet era sua cadeira de balanço,
o menor gueto do mundo.



(do livro A máquina das mãos, 2009)

quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

Labirinto, poema RCF



O médico sentencia:
problema de labirinto.
Mal sabe o médico
que meu labirinto ciência alguma alcança,
nem lente, instrumento de precisão
– principalmente instrumento de precisão –,
não chegam a encontrá-lo.
Embora tonto, sei que não perdi
nem o labirinto nem a razão
e que estou – como sempre estive –
nele antes que ele em mim.
Melhor seria o médico tirar-me
o labirinto, mas essa ciência
ele não domina, desconhece,
não é matéria de sua faculdade,
mas faculdade da minha matéria.
E, assim, com o labirinto inflamado
– deve ser mais complexo
um labirinto inflamado
que um labirinto que se esconde –
tateio em vão dentro de mim,
pelas paredes ensurdecidas,
sem rumo, tontas, becos sem saída,
corredores tortuosos, chão mole,
e doce tormento de trazer um segredo
– o labirinto em meus ouvidos –
que nem a medicina estuda
nem a ciência cataloga.


(do livro Memória dos porcos.  Rio: 7Letras, 2012)







terça-feira, 4 de dezembro de 2018

O caranguejo, O difícil exercício das cinzas



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A cidade não é uma estrela jogada no deserto,
e, sim, um caranguejo imóvel,
com inúteis garras que se ficam na areia.
A cidade murmureja a vontade quente,
há no mormaço a esquivança dos desejos,
move-se a máquina pouco mercante,
a máquina sem barra e lenta,
aqui não entram navios, embora tenhamos
porto e amarras – o porto é singular,
está em cada porta migrante.
A cidade se recompõe a cada manhã,
mulher sem desjejum, rosto dormido
de pesadelos, cabelos
em desalinho de uma névoa estrangeira.

Ó rotas, ó fugas, todas as saídas são entradas
e não há porta ou círculo que se feche,
a imensidão de árvores deformadas
pela sede voraz das megalópoles
à beira-mar, à beira-vida,
a vida em córrego da infância,
porque cada um traz seu rio da infância
dentro de si, mesmo que nunca tenha
se banhado em rio, mesmo que sua infância
seja negada e seca.

A cidade não se contorce, circense,
no picadeiro dos grandes espetáculos,
é ainda uma província de poderes,
embora seus poderes não sejam provincianos,
o Planalto é um risco de vidro
que insiste em sua pose de guarda britânico.
As esculturas é que me encantam:
Esta é a nossa Pompeia particular
e cada escultura é um candango
petrificado pela larva
da construção desta Atenas armada de cimento.

Os viadutos, que são pontes para o mesmo lugar,
gostam do regime russo da montanha,
e não se esgotam em levantar-se e baixar-se
no exercício de asfalto, geometria e urbanismo,
três poderes sem praça de exercidos
para diminuir o homem e sua estatura de carro.

Ah, Brasília, ao mesmo tempo veneza e andes,
com tuas três pontes sobre a placenta de água doce,
paralisada e muda como um espanto de amantes.
A do Gilberto Salomão é apenas uma ponte vecchia,
plana e regular, como uma rua:
a Costa e Silva é graça e garça, voo flagrado,
asa cortada de pássaro e em mármore branco fixada;
por fim a terceira do Sul, a que um dia se pensou
em chamar de a do Mosteiro,
cobra gigantesca, suspensa por si mesma,
zepellin de ferro, contorcionismo de estruturas,
me liga à vida urbana,
traga-me ordinariamente
quando me sinto atravessando
dois tempos: a vida doméstica
e a vida urbana, dois extremos
que não se ligam,
quanto mais cruzo mais me afasto
os dois polos.
Ó vida futura, que ponte me levará
a  teu útero virtual?

(O difícil exercício das cinzas. 2014)

domingo, 2 de dezembro de 2018

A poesia de Ronaldo por Eudson e José Neres

RONALDO COSTA FERNANDES, POETA DE IMAGENS


by Igor Marques

Eudson Sousa Menezes
Pesquisador, graduado em História e graduando em Letras
José Neres
Coordenador do projeto O Sistema Literário Maranhense: Hipermídia e Hipertextos






A literatura maranhense vive em constante processo de renovação. Novos poetas, contistas, romancistas e dramaturgos buscam, apesar dos entraves do mercado editorial, manter a tradição do Maranhão como celeiro de grandes homens (e mulheres) de letras. Nessa vereda que procura manter essa tradição, o nome de Ronaldo Costa Fernandes merece destaque no campo da poética maranhense.
Ronaldo Costa Fernandes nasceu em São Luís do Maranhão a 29 de agosto de 1952. Graduou-se em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde concluiu também o mestrado em Literatura Hispano–Americana. Doutorou-se pela UnB com a apresentação da tese A ideologia do personagem brasileiro, que foi publicada em livro pela Editora da UnB em 2007. Residiu por nove anos em Caracas, na Venezuela, onde dirigiu o Centro de Estudos Brasileiro da Embaixada do Brasil. Foi também Coordenador da Funarte de Brasília de 1995 a 2003.
A produção literária de desse escritor transita entre romance, conto, poesia e ensaio. Seus dois primeiros romances são “João Rama” de 1979 e “Retratos falados” de 1984. Em 1998, com o romance “O Morto Solidário”, que foi traduzido e publicado para o espanhol, recebeu o Prêmio Casa de Las Américas. Em 1997, lançou o romance ”Concerto para flauta e martelo”, que foi finalista do Prêmio Jabuti de 1998. E em 2005 publicou o romance “O viúvo” e, em 2010, trouxe à tona “Um homem é muito pouco”, seu mais recente romance.. No campo do ensaio, publicou, em 1996, O “Narrador do Romance”, laureado como Prêmio Austregésilo de Athayde, da UBE-RJ. Como poeta publicou “Estrangeiro” de 1997, “Terratreme” de 1998, “Andarilho” de 2000, “Eterno Passageiro”, de 2004 e “A Máquina das Mãos”, de 2009, livro com o qual recebeu o prêmio de Poesia da Academia de Letras em 2010. Como contista, publicou “Manual de Tortura”, 2007.
Mesmo sendo um estudioso de elevada cultura, o escritor não deixa de ser também um “refém” da imaginação. Em seu poema “Imaginações Violadas”, toda tensão entre o racional e o irracional é fermentada pela imaginação. É necessário então externar essa tensão por meio do “pão poético”. Dessa maneira, poeta funde, em seus versos, ateísmo e religiosidade. Crer na não existência de deus, não é um princípio de religiosidade? Para o eu-lírico há, sim, esse princípio. A imaginação, o “padeiro”, a cada manhã fermenta no poeta essa pulsão entre negar e aceitar a imanência do divino. Então diante da manhã, a filosofia se esvai em migalhas, pois a filosofia não consegue explicar essa tensão entre o racional e o transcendente. Portanto, toda imaginação se tornar um ato transcendente. É isso que intriga o poeta: como as suas “imaginações são violadas” pelo transcendental?
O poeta maranhense Ronaldo Costa Fernandes representa, por meio de seus versos, a tensão maior da pós-modernidade: a descrença nos valores morais. A crítica poética não é apenas sobre a religiosidade, mas é também contra as ideologias totalizantes. No poema Potemkim-Kursk, o eu lírico põe em xeque a eficiência dos modelos sociais baseados na doutrinação ideológica. Não é apenas o socialismo que é posto em descrédito, mas todas as ideologias que pretendam uniformizar as relações humanas, tirando-lhes a vitalidade das mesmas.
O poeta também analisa os sentimentos do eu lírico ante o mundo pós-moderno. A pós-modernidade que tudo relativiza é o lugar de pulsão entre a moral que tudo permite e a religiosidade que põe restrições a ação. É, portanto, através da poesia que o poeta consegue da “forma ao informe”. A poesia, consequentemente, torna-se a catarse do eu lírico a esse estado de tensão entre o racional e o íntimo.
A poesia de Ronaldo Costa Fernandes demonstra claramente que é possível fazer versos que unam plasticidade textual, jogos imagéticos e extrema incursão pela logopeia, ressaltando o dito e suscitando o não-dito. É uma poesia a ser consumida sem pressa, com olhos atentos nos detalhes e nas armadilhas poéticas que espreitam o leitor a cada virar de página.


Publicado em O Estado do Maranhão, 15.06.2011

Poema sobre cheiro, poema RCF




Teu cheiro holográfico
põe corpo onde não estás
e faz que apareças
de cheiro inteiro
no ar que respiro.
Esse cheiro de jasmim
que jaz em ti
é o cheiro de fêmea
enjaulada em teu vestido,
domada pelo tecido
apertado da tua pele em flor
no baile de máscaras
dos nossos encontros eletrônicos.
Se persiste o cheiro
é porque não cheira mais
nas narinas, entra pela memória
e lá exala o perfume do verbo
que te floresce a cada palavra.
Tens o cheiro primevo
da fêmea inaugural,
tens o cheiro, sim, de fruta
que os poetas já cantaram,
tanta que se come lambuzado.
Tens o cheiro dos sete pecados capitais.
Tens o cheiro do vício
que é o cheiro do quero mais.


(foto:vivian maier)