sábado, 3 de novembro de 2018

Baudrillard numa visita a Brasília, poema RCF



O filósofo, baixote,
rude, de mãos calosas de camponês,
não tinha medo de Vertigem Woof.
A conversa circular como o lago.

Depois o filósofo fumou
a balada existencial dos Gauloises.
Um filósofo deve queimar ideias.
O lago não respondia à superioridade francesa,
envolvido com seu solilóquio
de algemas e algas.


imagem retirada da internet: baudrillard

Estranho mundo de Walser por Carlos Tavares


Suíço mostra com a novela Jakob Von Gunten — um diário , publicado em 1908, porque ensaístas de sua época afirmam que a obra influenciou Kafka, Robert Musil e Thomas Mann. Estilo mordaz e visionário antecipa a agonia do homem moderno diante da liberdade de viver em uma era de progresso





Ao fechar o livro Jakob Von Gunten — um diário, o leitor com alguma experiência em Kafka e em outros autores das primeiras décadas do século 20 percebe de saída porque alguns ensaístas do porte de Walter Benjamin logo associam a obra do desconhecido autor helvético à do tcheco, como se fosse aquela o protótipo de inspiração para o escritor de Na colônia penal. Mas Robert Walser (1878-1956) não sugeriu apenas a Franz Kafka que o mundo moderno era algo assustador, pois o revelou também – em uma das obras mais curtas e mais densas da literatura ocidental – a outros ficcionistas do quilate de Elias Canetti, Thomas Mann e Bohumil Hrabal.
O volume em questão, que a Companhia das Letras acaba de lançar, com tradução de Sergio Terallori, em magras 148 páginas – porém de uma riqueza singular em concisão e poesia – não explica o porquê deste autor ter ficado na sombra durante tanto tempo, em seu próprio país, na Europa e no mundo. Mas a frase “não consigo imaginar a fama simplesmente porque ela me apavora”, proferida por ele em raros momentos de confissão literária a amigos, talvez explique o mistério Walser. Do mesmo modo que a novela Jakob Von Gunten explica o fato de ter este autor atraído em torno de si um pequeno grupo de proseadores e filósofos muito especial, em tímida trajetória, formado, entre outros admiradores, por Thomas Mann, Kafka, Bohumil Hrabal, Walter Benjamin, Foucault, Camus, W . G. Sebald, Susan Sontag, mais recentemente o espanhol Enrique Vila-Matas, que o incluiu como personagem de seu romance Doutor Pasavento.
O caso Walser é semelhante ao de Hrabal, no Brasil (e no mundo), de quem poucos leitores só chegaram, até agora, a conhecer apenas dois títulos de cada um. Do primeiro, O ajudante (Arx, 2003) e este Jakob Von Gunten – que tanto desconcerta e fascina. Do escritor tcheco foram traduzidos Eu servi o rei da Inglaterra e Uma solidão ruidosa demais, os dois com o selo Companhia.
Quanto ao texto que motiva este diálogo, Walser apresenta um jovem estudante como narrador de um diário de inaudito timbre literário entre os escritores de língua alemã. Diário ou livro de memórias, na forma de uma novela, antes de ser um romance, na classificação teórica dos gêneros, a verdade é que na diluição das categorias Walser encontrou seu próprio modelo de literatura como campo de expressão de uma vida.
O insólito na ficção do suíço ocorre pela proposta bastante evidente de romper estruturas do gênero e avançar a cada golpe de escrita na montagem de situações biográficas e fictícias que podem denotar ousadia para a época em que foi escrito, 1908; e o livro se mostra avançado também por ensaiar um grito de liberdade e consciência do que é ser humano (e moderno) numa Europa que exibia — a um só tempo — o perfil geopolítico de incubadora de modernidades e de usina de espanto, receios e decepções.
No meio do torvelinho europeu das descobertas científicas e dos embates bélicos e políticos, emerge uma Suíça com seus incômodos anos de neutralidade como um microcosmo da subserviência em um planeta polarizado pelo exotismo oriental (por que não tropical) e o Ocidente fraturado, poderoso e perdido. Nesse contexto desponta uma Suíça que talvez seja muito mais do que um inabalável paraíso de bancos e de relojoeiros. Sim, a Suíça é a terra do dramaturgo Friedrich Durematt e do fotógrafo Robert Frank, de Le Corbusier e sobretudo de Walser. Este é o universo de Jakob, pertencente a uma família aristocrata, mas que opta por estudar no Instituto Benjamenta, especializado, sintomaticamente, em formar criados para servir a um mundo que o próprio Walser recusou e resolveu passar os derradeiros 23 anos de sua vida internado em um sanatório para doentes mentais, o Herisau.
Além das fronteiras
De certa maneira esta condição singular de se viver em uma pátria sem fronteiras, cosmopolita, célula de fuga e proteção para habitantes de diversas partes do mundo, forneceu a matéria-prima da obra de Walser que procurou sintetizar a cultura de seu tempo e de seu país com o culto à reflexão crítica do ser por meio da literatura. Em Walser, isto significa indagar a realidade, a “parca realidade”, como Jakob afirma em seu diário, ou indagar o proibido e a liberdade, o livre arbítrio e a necessida de de ser obediente. “A interdição das coisas é por vezes tão encantadora que não se tem como não fazê-las. É por isso que todo tipo de obrigação me é cara: porque nos possibilita a alegria da transgressão”, confessa o protagonista na página 26.
É certo que o escritor de Os irmãos Tanner era perseguido por alucinações e escutava vozes, como ele mesmo confidenciou ao médico. Na verdade ele não se internou por 23 anos seguidos por livre e espontânea vontade. Há lacunas acerca deste período e da própria situação familiar e financeira de Walser, que tinha um irmão, chamado Karl, a exemplo de Van Gogh, com o seu Theo, que o ajudou a vida inteira. Walser não tinha endereço fixo e viveu uma vida precária e solitária. Era um “passeador”, versão antecipada dos on the roads e dos outsiders da América do Norte.
O autor de O salteador gostava tanto de caminhar pelas ruas de Berlim e dos lugarejos frios da Suíça que mereceu uma dissertação de mestrado da portuguesa Maria Helena da Costa Alves Guimarães — Análise fenomenológica da obra de Robert Walser: o passeio — em que põe em relevo a sua proximidade com dois heterônimos de Fernando Pessoa, Bernardo Soares, pela ótica do desassossego de ser escritor com que avalia o mundo real, e Alberto Caieiro, o mais irreverente dos Pessoa.

No estudo, Maria Helena ressalta a proximidade de Walser também com o conceito de flaneur e destaca um traço de modernidade em sua postura filosófica em relação ao seu próprio tempo. Coloca-o no seleto grupo de Baudelaire, Valéry e Hoffmann, e o associa também a Bréton. “É possível observar, claramente, nesta narrativa (ela se refere a O passeio, sem tradução no Brasil) que Walser dá especial enfoque ao passeio através de suas próprias vivências, fazendo de sua obra uma permanente autodescrição e do alheamento a essência de sua visão de mundo (…)””, comenta a teórica do Porto.
Espaço poético
A tendência de viver aparentemente alheio ao mundo exterior e isolado para refletir sobre este levou o escritor a viver seguidas crises de depressão que se encerraram no sanatório de Herisau, onde morreu em 1956, enquanto, adivinhem, caminhava. Seu corpo foi achado na neve pela polícia local e isto só fez enriquecer o lendário em torno de sua vida. Quanto ao hospital para doentes mentais, de lá poderia ter saído pouco tempo depois de ter sido internado, em 1933. Mas ele se recusou e resolveu “mergulhar no inevitável”, como reflete Jakob, alter-ego do escritor. No livro, escrito antes de ser levado ao hospício (todos os textos de Walser datam de antes deste período), o narrador Jakob também se recusa a deixar a escola de serviçais, mesmo esta tendo sido fechada, sintomaticamente, por falta de alunos.
Quando estava recolhido ao seu asilo voluntário, um amigo o procurou depois de mais de um ano sem ver nada de novo escrito pelo paciente e tentou estimulá-lo a escrever outras obras. Mas Walser saiu com uma resposta desconcertante: “Eu não vim aqui para escrever, mas para enlouquecer”. Assim como são desconcertantes o jogo de espaço-tempo na obra em questão e a fusão de sonhos, devaneios e ímpetos do narrador na escola de aprender a servir, dirigida pelo casal de irmãos Lisa e Benjamenta. Aliás, Lisa é o nome de uma lavadeira alemã por quem Walser se apaixonou loucamente.
Logo na abertura do “diário”, Jakob lança as cartas: “Aqui se aprende muito pouco, faltam professores, e nós, rapazes do Instituto Benjamenta, vamos dar em nada (...), seremos todos coisa muito pequena e secundária em nossa vida futura”. Daí em diante sucedem-se situações que beiram o hilário e o ridículo e em cada página forma-se a imagem nebulosa do instituto como uma sucursal da loucura humana e do não sentido de tudo. Das paredes do prédio desgrudam-se odores de solidão e obscuridade, devaneios e perspectivas sombrias, além do riso irrecusável em algumas cenas, assim como ocorre em O castelo.
A cada página, é inevitável a correspondência entre o agrimensor desempregado K. e o garoto Jakob Von Gunten. Mais ainda se sente a presença de Walser nas páginas de Kafka quando se dá a inexplicável distância que mede o labirinto esquizofrênico do cotidiano de K e o de Jakob — situado entre as duas aldeias perdidas e um futuro de névoas, sem esperança. Não é à toa que os leitores de primeira hora de Kafka viram neste a semente de genialidade do outro.
O leitor atento também identificará em Jakob e em Kraus (a metade burocrática, servil do protagonista) traços antecipados da feição iconoclasta do pequeno Jan Ditie, o aprendiz de garçom da obra de Bohumil Hrabal, Eu servi o rei da Inglaterra, e um quê de resignação do empregado Hanta, de Uma solidão ruidosa demais, que passou a vida numa prensa subterrânea a esmagar livros medíocres e a salvar da morte obras de autores como Kant, Van Gogh, Schopenhauer, Sartre, Sêneca, Breton. No caso de Walser, o personagem parece ter mais consciência da brutalidade de um mundo feito de máscaras onde o essencial da alma humana é caso raro.



Carlos Tavares é jornalista e ficcionista.. Carlos tem uma escrita vigorosa e densa. É autor da coletânea de contos Fábulas da febre, da editora Girafa.

imagem retirada da internet: foto de Walser

sexta-feira, 2 de novembro de 2018

Ficções, Jorge Luis Borges



                Em todo livro há uma longa peregrinação, que pode ser física, mental, metafísica, social, mundana ou psicológica. Os romances de formação geralmente levam os personagens (lembro Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, de Goethe) para uma via-crúcis de lugares e experiências a fim de formar a personalidade adulta do protagonista que fornece nome ao livro. Em O ateneu, de Raul Pompéia, a experiência se dá intramuros e, embora o espaço romancesco esteja sitiado, a amplitude de ações e experiências empurra o personagem para uma transformação, de euforia à desilusão, da vida como infante ao desencanto da juventude madura. 

                Em Borges, essa peregrinação corresponde à busca do conhecimento. Uma das fascinações do escritor argentino, em Ficções, mostra o autor rendido às tramas do policial. Rudemente apresentado, o romance policial – de Simenon e Agatha Christie – busca revelar as motivações e modus operandi de um crime investigado. Diferentemente do romance noir americano, mais violento, o romance de Simenon, entre outros, é de cunho mental e fruto mais da elaboração que lembra a resolução de um quebra-cabeça. Borges utiliza muitas vezes o crime, físico. Há homicídios e mortes, espionagem e traição, espiões, heróis e pusilânimes, mas rigorosamente Borges coloca toda a trama e o personagem para perseguir um enigma e uma combinação de fatores intelectuais e livrescos, em que menos importa um cadáver que uma longa descrição do método erudito de desvendar um mistério por intermédio da hermenêutica de um livro (entre outros, “El jardín de senderos que se bifurcan”).

                O labirinto de Borges também é um labirinto linguístico. Não há jogo de palavras, mas um jogo em que faltam letras em livros a serem decifrados. O leitor está diante de uma construção hiperbólica em que o texto é construído e desconstruído diante dos seus olhos, levando-o a acompanhar o raciocínio do narrador em sua viagem cognoscitiva. “El libro circular es Dios”, escreve Borges em “La loteria en Babilonia”. Nessa busca pelo conhecimento, o leitor acaba envolvido num emaranhado de citações eruditas e de recorrências a textos duvidosos, outros de autoria reconhecida, mas ambos desembocam no mais volumoso torvelinho que nos confunde e nos carrega até um nível de uma compreensão da fragilidade humana ou “as complexidades del mal y del infortunio”, no dizer do narrador de “Tres versiones de Judas”.

                Livros, labirintos, jogo de espelhos, erudição, certo orientalismo (o orientalismo de Borges não é exotismo e/ou não está a serviço de uma mística espiritual como os livros de Herman Hesse, por exemplo; em Borges de Ficções, o que existe é mais um instrumento que o autor se vale para buscar o conhecimento que certamente será bem diferente da premissa inicial), reescritura da Bíblia e de certos livros, judaísmo, mundos paralelos, personagens saxões e nórdicos. Estes últimos nos remetem a certo distanciamento de Borges em relação ao narrado. O presente é a condenação: em “El fin”, o narrador acusa: “... a viver en el presente como los animales”. Da mesma maneira em que data a ação transcorrida em grande parte de seus contos em épocas remotas, distantes do presente, seja o século XIX, seja a Babilonia, seja o início do século em que viveu, Borges busca uma suspensão temporal, quase insinuando uma atemporalidade (ainda que situe em situações concretas como, por exemplo, 1939, para um conto escrito em 1943, a morte por fuzilamento em que o condenado reescreve de memória uma tradução que duraria um ano, cujo título é “El milagro secreto”).

                Outra forma de enxergar a busca do conhecimento em Ficções é observar como Borges maneja a erudição, o mistério, a proposição do enigma livresco e cultural, a criação – também literária – de novos mundos escondidos em enciclopédias, que são em última análise, a coleta de todo o possível conhecimento. No conto “La secta del Fénix”, o narrador apresenta a seita que cultua o Segredo (“el secreto”). Ao final, depois de apontar que os seguidores mais novos desconfiam de que não haja nenhum segredo a ser revelado, Borges afirma que “alguien no ha vacilado en afirmar que ya es instintivo”. Borges então iguala o processo humano, desnudo do uso discriminatório da razão, o conhecimento feito apenas pela via erudita e mental, com a hipótese de que se pode chegar ao Enigma e ao Segredo por intermédio da sensibilidade e do instinto humanos.  (RCF)

quarta-feira, 31 de outubro de 2018

O ciclope eletrônico: o farol, poema RCF




O ciclope de alvenaria brilha seu único olho
para as naves que são pescadas
pela luz em seu flerte com o mar.

O ciclope não tem Ninguém que o perturbe,
nada que lhe fure o olho da odisseia
e o desembriague da cabeça que roda.

O ciclope eletrônico
criou outros olhos de vidro
a fim de os navios
com seu corpo de casco
não navegar sobre pedras
que não é caminho de navios.

Há tempos que meus olhos de vidro,
sem rumo e escuros, nada enxergam
na noite dos dias e temo a lâmina
das pedras escondidas pela vida
que querem a todo instante cortar
meu casco e criar tumba salgada no cotidiano
que não tem um único olho a me orientar.


(do livro Memória dos porcos. Rio: 7Letras, 2012)

segunda-feira, 29 de outubro de 2018

Hibiscos, poema RCF





Os hibiscos têm mãozinhas coloridas
e estiram o braço dos galhos
para apanhar cor nos meus olhos.
As flores levantam as saias
e mostram a coxa da manhã.
Quanta licenciosidade no jardim.




(Memória dos Porcos, 2012, 7Letras)

Cantiga de ninar, poema RCF






Uma cantiga de ninar
me tira o sono.
O coração que tu me deste
era vidro e se quebrou,
o amor que tu me tinhas
era circular igual anel
e não me deixava fuga
como ciranda de pesadelo.
Terezinha de Jesus
me deu vários tombos
e ainda pago pensão.
Lá na minha infância havia um bosque,
onde o anjo se escondeu
para não ser guarda de mim.
Todos os bois de cara preta
mugem no matadouro da noite.
O boi não precisa me pegar,
antes dele os anos
adormeceram meus sonhos
e me fizeram a careta do malogro.


(do livro Memória dos porcos, 2012)


(foto:vivan maier)