"Le mal du pays", 1940, Magritte |
Adelto Gonçalves (*)
I
Professor titular de
Literatura da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e autor de estudos críticos sobre
a poesia brasileira, o romance oitocentista em português e o exotismo, com
destaque para os ensaios sobre Camilo Pessanha (1867-1926), Paulo Franchetti
vem construindo também, ao longo dos últimos anos, uma trajetória poética de
respeito, marcada por uma cosmovisão que se tem mantido coerente, baseada na
cultura clássica, mas saudavelmente contaminada pelo bom gosto de alguns nomes
representativos da poesia brasileira do século XX.
Além dos livros de
estudos literários, Franchetti já publicou três livros de poesia, Oeste/Nishi (Cotia, Ateliê, 2008), Escarnho (Cotia, Ateliê, 2009) e Memória Futura (Cotia, Ateliê, 2010), lista
a que se acrescenta agora Deste Lugar,
reunião de versos que marcam a chegada do poeta à maturidade do seu fazer
poético.Se em Escarnho, Franchetti paga um tributo a Gregório de Matos (1636-1696?), Tomás Pinto Brandão (1664-1743) e outros poetas fesceninos, satíricos e chocarreiros e ao Barroco, em Deste Lugar não se pode deixar de sentir a presença tutelar de Manuel Bandeira (1886-1968) e Camilo Pessanha, poetas que como crítico estudou exaustivamente. De fato, um tópico recorrente em sua poesia é o verso bandeiriano de “Pneumotórox” – a vida inteira que podia ter sido e que não foi – que se pode ler em “O cheiro das mangas na fruteira”, à página 61:
(...) a vida que poderia ter sido
é a vida que por um momento foi.
Neste poema, o poeta parece rememorar noites feéricas que passou em Barcelona e que o diabo, agora no meio de uma noite úmida, traz de volta, balançando “o obscuro passado nas costas do futuro impossível”. Neste livro, aqueles versos de Bandeira – que hoje constituem quase um aforismo – aparecem explicitamente também em mais um poema, ainda que disfarçadamente possam ser localizados em outros. Às páginas 109 e 110, no poema “Minhas filhas me olham”, esse sentimento fica mais à prova quando o poeta, ao contemplar uma fotografia, evoca a família que não se formou porque desfeita por qualquer contratempo da vida:
(...) nossos olhos
têm a mesma compleição:
somos inegavelmente o pai
e suas filhas.
E ali sorrimos, e o esboço
da família que não fomos brilha
mais intenso.
(...) Olho ainda uma vez.
E outras vezes olharei.
O que não pude ter
e o que perdi.
Essa evocação bandeiriana ainda se percebe em “Outra noite solitária”, à página 59, onde se lê:
(...) O que tenho, o que não tive,
o que passou por mim
e me arrastou.
II
Também é possível fixar na poesia da maturidade de Franchetti as imagens
evanescentes, a exteriorização da melancolia associada à luz moribunda que são
comuns na poesia de Camilo Pessanha que o próprio poeta enquanto crítico
apontou em O essencial sobre Camilo
Pessanha (Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2008), às páginas 73 e
74. Diz o crítico a respeito de Pessanha que o que determina o seu “olhar
melancólico é a reflexividade”, explicando que “tudo o que o sujeito consegue
perceber é a si mesmo, tudo o que consegue fazer é duplicar, exteriorizar a
melancolia, reencontrar, nos vários fragmentos que ludicamente reordena, o seu
próprio olhar”. Curiosamente, o que o
crítico diz a propósito do poeta que analisa é o que também pode servir para
definir a sua poesia.
De fato, em Pessanha a
luz fraca, que se apaga, que parece refletir uma “alma lânguida e inerme”, como
se lê no poema “Inscrição”, à página 159 de Clepsidra
(Lisboa, Seara Nova, 1979), está associada à sensação de melancolia, de
nostalgia e de perda e ao crepúsculo e até ao fim da vida. É o que se percebe
no poema de Franchetti à página 55, onde se lê:Todos entramos na morte
por onde a luz é mais fraca e o capacho
está puído e fora do lugar.
A melancolia é reforçada pela presença de verbos que reforçam a ideia de descenso, de queda, da falta de luz, de solidão. E esta é uma das atmosferas líricas fundamentais na poesia de Franchetti, de que o poema “Assim diria: nós”, à página 100, é um bom exemplo:
Mas em algum lugar
onde a noite é mais escura
e o rio decorre
como a vida aqui decorre,
vejo: o rosto, os cabelos finos, os olhos.
Enquanto dirijo, penso
quanto seria bom,
em cada novo momento,
dizer: nós.
A aproximação com Pessanha dá-se explicitamente no poema “Macau”, à página 90, quando se sabe que, para desvendar algumas passagens obscuras da vida do poeta, o crítico Franchetti esteve na antiga possessão portuguesa na China, conhecendo os lugares que fizeram parte da vida de auto-exílio do poeta. De lá trouxe estas impressões que se lêem à página 90:
Os chineses fazem pontes curvas.
Os espíritos não passam, seguem em linhas retas.
As noites longas e quentes, no jardim
de Camões, os pássaros da madrugada,
a barraca de macarrão,
cheia de crianças de azul (...).
Por estas amostras, vê-se que a poesia de Franchetti, a exemplo da de Pessanha, é baseada mais em imagens. Trata-se de um poeta abstrato, essencialmente intelectual, além de douto. Por isso, prefere insinuar ideias e sentimentos em vez de formulá-las, o que também denuncia certa influência de Matsuo Bashô (1644-1694), poeta japonês que é considerado o mestre do haicai. Não por acaso Franchetti é o organizador da antologia Haikai (Campinas, Editora Unicamp, 1990). A Bashô presta homenagem à página 64:
A chuva na folhagem.
Bashô dizia:
sem a visão própria
não há fora nem dentro . (...).
E, por extensão, a homenagem vai também para Wenceslau de Moraes (1854-1929), poeta português que viveu muitos anos no Japão e aplicou-se à tradução de haicais, fenômeno literário que o crítico Franchetti analisou num ensaio dedicado ao próprio poeta e que faz parte de Estudos de Literatura Brasileira e Portuguesa (Cotia, Ateliê, 2007).
III
Diretor-presidente da Editora Unicamp, Franchetti é autor
também de Alguns Aspectos da Teoria da
Poesia Concreta (Campinas, Editora Unicamp, 1989), de Nostalgia, Exílio e Melancolia – Leituras de Camilo Pessanha (São
Paulo, Edusp, 2001), das edições comentadas de Primo Basílio (1998) e Iracema
(2007), ambos publicados pela Ateliê, da edição crítica de Clepsydra, de Camilo Pessanha (Lisboa, Relógio D´Água, 1995), da
antologia As aves que Aqui Gorjeiam – a Poesia do Romantismo ao Simbolismo
(Lisboa, Cotovia, 2005) e da novela O
Sangue dos Dias Transparentes (Cotia, Ateliê, 2003).
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DESTE LUGAR, de Paulo Franchetti. Cotia: Ateliê
Editorial, 112 págs., 2012, R$ 27,00. Site: www.atelie.com.br
E-mail: contato@atelie.com.br
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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura
Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do
Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona
Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil,
2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003).
E-mail: marilizadelto@uol.com.br