Em
Machado, o fantástico se dá por intermédio da cultura. No caso de “O
Alienista”, por exemplo, a situação exorbitada é fruto de um comportamento
científico. A ironia machadiana é culta. Seus jogos mentais, suas
metáforas e citações estão baseados em dados culturais, seja citando a Bíblia, seja
os clássicos. No livro A ideologia do
personagem brasileiro, observei que até o tempo é um fato filtrado pela
cultura. O delírio de Brás Cubas está eivado de civilização, erudição e cultura
– aqui, não no sentido antropológico, mas de produção culta do conhecimento. Em
“O Alienista”, em que valha sua própria crítica à cultura, é devido ao saber de
Simão Bacamarte e de sua pesquisa clínica da mente que se desenvolve
paulatinamente o desconcerto entre civilização e barbárie interior. O desvio
aqui é cultural também no sentido de produção social e de comportamentos
humanos comuns e inerentes à vida em comunidade: ciúme, avareza, ambição, etc.
Contudo, o que dispara o mecanismo de caça aos loucos é uma teoria. Uma teoria
advinda do campo tão criticado do positivismo cientificista. E como bom
moralista, herdeiro dos moralistas ingleses e franceses, há a “lição” final, a
moral da fábula.
Vide
o caso da teoria filosófica engendrada por Quincas Borba: a loucura, irmã do
fantástico, dispositivo propulsor ou consequência febril, até ela mesma, a
loucura, é fruto de elaboração mental e leva o crivo da cultura. É um
ordenamento filosófico – onde subjaz o que todos nós já sabemos que é a crítica
ao positivismo de forma irônica e até certo ponto grotesca. Não é um mero
distúrbio mental. A proposta de Quincas Borba carrega em si a lógica do silogismo
e opera no campo do mais requintado fruto do saber: o amor à sabedoria, a
filosofia. Loucura lúcida, ao vencedor as
batatas, Quincas erige um panteão ao fantástico através do instrumental
mais sofisticado da cultura erudita ou não: o saber filosófico ou o saber
filosofar. A lucidez dentro da insânia está em fazer a crítica cultural
pertinente sob o invólucro do disparate especulativo de uso da dialética
ensandecida.
Está
patente nos contos fantásticos a expressão do poder. Em “O alienista”, pode-se
observar que, em nome da ciência, Simão Bacamarte não só enfrenta o poder da
Câmara como conta também com o poder da Coroa que envia tropa em seu auxílio. O
embate entre Câmara x Casa Verde é um embate emblemático entre poder civil,
emanado do povo, poder político x poder absolutista, repressor, seja em nome da
Coroa, seja em nome do saber. Logo,
poder e saber se igualam.
Muitos
contos aparentemente fantásticos de Machado não podem ser enquadrados como
tais. Alguns são meras piadas, casos fabulosos, o personagem tomado pela
loucura, o sonho e o uso de outros recursos para chegar ao absurdo. Em “O dicionário”, é contada a história de um
rei que, para conquistar a amada, impõe concursos sempre vencidos pelo poeta
amado de Estrelada. Por fim, manda fazer um “dicionário” e que toda a população
fale a língua do dicionário. Uma fábula sobre a arte, sobre o poder de
construção de forma original. Não adianta fazer em versos antigos ou modernos
porque o poeta da amada vence sempre porque constrói (mistura as palavras) de
forma original. Em Machado, é constante a preocupação com a criação (ver outros
contos como “Cantiga de Esponsais”). O
arredio também se encontra na mesma categoria (o personagem expressa-se
verbalmente de maneira original, mas não tem disciplina ou desejo de escrever,
até que envelhece e perde a verve inicial).
Dentro
do mesmo esquema anedótico este “Ideias de canário”. O narrador encontra um
canário falante num belchior. Compra-o, porque além do mais o canário é
filósofo, tem concepção da realidade. O
mundo para ele é onde vive, o belchior. Ao ser comprado pelo narrador, o mundo
passa ser a gaiola e a casa do narrador, que fica encantado com um canário
falante e que filosofa, embora desconheça palavras como infinito, azul etc.,
pois sua realidade é muito restrita. Responde sempre que tudo o mais é ilusão e
mentira.
“Lágrimas
de Xerxes” é uma curiosa narrativa em que Frei Lourenço, recusando-se a casar
Romeu e Julieta sob o firmamento, a céu aberto, e não no altar da igreja, conta
a história das lágrimas do persa Xerxes que domina o mundo, mas chora e os
ventos são testemunhas das suas lágrimas. Os ventos, indecisos, vão perguntar o
que fazer com a lágrima de Xerxes ao sol e à lua. A lua deseja que ela se
converta em estrela. O sol concorda que se converta em estrela, sem antes
desdenhar da pieguice e melancolia da lua (percebe-se toque de inveja do sol).
Mas esta estrela que o sol propõe deve ser irônica. O tom de apólogo ou fábula
ou parábola está na fala do frade que não quer casar Romeu e Julieta ao ar
livre. Ora, o tom é realista, porque o irreal é fruto da parábola do frade.
Mas, por sua vez, a parábola do frade é literária, não é real. Refere-se a uma
realidade literária. Por fim, estrela de ironia ou piedade, como diz Julieta, o
que ela deseja é que o padre os case.
Em
“A chinela turca”, é significativo que o narrador termine o conto afirmando que
está no indivíduo maior interesse que no espetáculo. “Um bom negócio e uma
grave lição: provaste-me ainda uma vez que o melhor drama está no espectador e
não no espetáculo.” O conto se refere a uma visita de Major Lopes Alves que
adentra a casa do bacharel Duarte que está se preparando para uma festa onde
encontrará seu amor. Sonha com vê-la e dançar com ela. A visita inesperada o
atrasa, irrita-se, a visita quer lhe ouça uma peça de teatro. Começa então a
maçante leitura dos atos da peça, enquanto que Duarte dorme durante a leitura.
No sonho, é perseguido pela acusação de roubo de uma chinela. O intrigante é
que o personagem não estranha estar num mundo desconexo e implausível que se
modifica a cada momento, sem lógica causal. Foge então Machado do fantástico
puro, do fim do século XVIII e do romantismo francês e alemão do século XIX,
que cria a indecisão do acontecido seja no leitor, seja no personagem que vive
a ação. O fantástico também incorpora a criação de um mundo extraordinário. Só
mais tarde é que, ao final, deixará a dúvida no leitor e no personagem. Aqui a
dúvida é desfeita e explicada pelo sonho. O importante é que Machado centra no
personagem o delírio e coloca a realidade em segundo plano. Se interpretarmos a
realidade como esse “espetáculo” de que fala o narrador, teremos a realidade do
personagem como o verdadeiro espetáculo, ou seja, o mundo interior, o universo
da subjetividade, o mundo do sonho e da irrealidade do inconsciente é que é o
espetáculo único e verdadeiro.
Há
uma certeza neste conto: o personagem, seja acusado pelo roubo, seja obrigado a
casar, ele sempre está na defensiva. É um homem fantasticamente acuado. Em vez
de proceder à ação fantástica é receptor da ação dos efeitos da agitação
absurda.
“A moça abaixou os olhos; Duarte
respondeu que não tinha vontade de casar.
– Três cousas vai o senhor fazer
agora mesmo, continuou impassivelmente o velho: a primeira é casar; a segunda
escrever o seu testamento; a terceira engoliar certa droga do Levante...
– Veneno! interrompeu Duarte.
– Vulgarmente é esse o nome; eu dou-lhe outro: passaporte para o céu.”(p. 301)
Também
nos contos há a fase romântica e a fase realista. É só a partir da publicação,
em 1882, do livro de contos Papéis
Avulsos, um ano após Memórias
Póstumas de Brás Cubas, que Machado coloca seus contos na galeria dos
recortes irônico-realistas. Já antes publicara em revistas alguns contos
fantásticos, como, por exemplo, “Uma excursão maravilhosa”, de abril-maio de
1866. E é justamente quando, em plena consciência do seu ingresso no mundo da
narrativa não-romântica que Machado se sente atraído por expressar em livro o
lado absurdo. Adeus aos bons costumes e mulheres que renunciavam nobremente a
seus amores como em Iaiá Garcia e Helena. E embora saibamos que Machado
tinha certa resistência ao naturalismo “encatarrado” como se apresenta em Primo Basílio, de Eça de Queirós, é logo
nesta segunda etapa estética que o Bruxo do Cosme Velho se fascina pelo
delírio, as releituras/reescrituras das passagens bíblicas e outros
comportamentos do fantástico.
São
componentes da estrutura do mundo cultural, mesmo que às avessas, os contos “O
dicionário”, “Ideias de canário”, “Lágrimas de Xerxes”.
Os
contos de Outros contos, publicados
em revistas, desde 1864, são geralmente contos longos, que lembram o Machado do
início como Contos fluminenses (1870)
e Histórias da Meia-noite (1873).
Em “Uma excursão
maravilhosa”, de abril-maio de 1866, Machado coloca o jovem poeta Tito, sonhador,
escrevendo versos, alugando sua pena, para “um sujeito rico com fama de poeta”.
Um dia apaixona-se e é rejeitado. Em seu quarto, encostado à cama, pensa em
suicídio e viagem, o primeiro ato era sanguinolento e ele descartou e o segundo
não tinha como empreender com seus parcos recursos. É quando lhe bate à porta a
fantasia. O narrador transfere para o personagem a voz narrativa. Tito conta
então uma viagem fantástica ao reino de Quimera, onde se fabricam massas
quiméricas para poetas e políticos sonhadores. É um conto com bastante ironia.
Ingressa no maravilhoso e, como no delírio de Brás Cubas, faz uma viagem
fantástica. Só que aqui não há nenhuma explicação para ingressar no reino do
maravilhoso a não ser recostar-se e sonhar. O país da Quimera produz ainda
utopias e modas. É uma sátira social, ao estilo do apólogo.
Ao estilo de “O espelho”, em “Um esqueleto” o
narrador conta um caso assombroso a um grupo de pessoas. É a história de um
homem que convive com o esqueleto de sua ex-mulher. O Dr. Belém coloca o
esqueleto da primeira esposa que ele matou por ciúme na mesa, junto com o novo
cônjuge, que por sua vez vive horrorizada. “Estava-se em pleno Hoffmann”, diz o
narrador referindo-se à atmosfera fantástica, que é desfeita porque o narrador,
ao final, brinca e afirma que tudo daquilo não aconteceu, “eu quis apenas fazer
apetite para tomar chá. Mandem vir o chá.” Sendo apenas uma brincadeira de
salão, refugo a narrativa, só deixando o registro de sua existência.
O
conto “O imortal” se inscreve na série dos contos jocosos de Machado. Há certa
concordância com outras narrativas. Novamente, Machado coloca um grupo fechado
de ouvintes, desta vez, o coronel Sicrano e o boticário Fulano, ouvintes da
narrativa surreal. Quanto à questão do fantástico, o conto pode ser incluído na
categoria, pois, ao final, o narrador deixa a dúvida se a narrativa é real ou
não, se a narrativa não se propunha apenas a reafirmar a homeopatia, da qual o
médico-narrador fazia apologia ou se o narrador queria apenas aplacar o medo
ancestral da morte que assustava a dupla de ouvintes. Ao mostrar a imortalidade
como enfado e repetição de situações, o pai do narrador, que é o personagem
principal da história (o imortal) toma a última parte da beberagem que o fizera
eterno (logo, a beberagem é o elogio da homeopatia) e, por fim, morre. Mas,
como é apresentado de maneira ligeira e com certo ar de galhofa, fica-se numa
outra dúvida: não seria o conto apenas divertimento para os leitores das
páginas femininas das revistas da época? É, claro que sim. O que não impede que
o conto seja levado “a sério” por nós. Não há muita originalidade no tema, que
até hoje persiste (vide Saramago com o seu As
intermitências da morte) e trabalha com o nosso imaginário e modelo
arquétipo, a inconformidade com o efêmero da vida. Se Machado não o incluiu em
algum de seus livros de contos é porque não o via, certamente, com algum valor
literário, principalmente porque nesta época já estavam escritos “O alienista”, entre outros.
Em
“O anel de Polícrates”, em que Machado faz a crítica do homem sonhador (é
curioso observar que Machado é ambíguo em relação à fantasia: ora ironiza,
quase ridiculariza, ora a vê de forma gentil e delicada) o personagem é Xavier.
Aqui, Machado enumera, ao listar as experiências de Xavier, as características
dos seus contos fantásticos. Para o personagem A, em Xavier se pode encontrar
“o raro, o esquisito, o maravilhoso, o indescritível, o inimaginável”. Aí está
o fantástico machadiano. A primeira observação sobre este conto refere-se a que
Xavier não é apresentado por um narrador impessoal ou relata sua própria
experiência. Xavier é visto, num estranho diálogo, por intermédio dos olhos de
um personagem. Ou seja, Xavier é uma visão de segundo grau. É relato de um
relato. É visão e relato de alguém que não só apresenta, mas o julga. Nesse
tudo cabe, em termos de fantasia. Este dado é pertinente para nossa análise: o
personagem já não é senhor do espetáculo, mas outro ser passivo – é a visão de
um personagem. Tanto é a visão particular de um personagem que o outro no
diálogo discorda dele. Os personagens são nomeados com letras: A o acredita
sonhador, Z o desconhece sonhador.
“Z – Você está enganado. O Xavier? Esse Xavier há
de ser outro. [...]
A – Creio; esse é o Xavier exterior. Mas nem
só de pão vive o homem. Você fala de Marta, eu falo-lhe de Maria; falo do
Xavier especulativo...
Z – Ah! – Mas ainda assim, não acho
explicação; não me consta nada dele. Que livro, que poema, que quadro...”
Até
agora pudemos observar que há personagem que sofrem a ação do fantástico como o bacharel Duarte no conto “A
chinela turca” e aqueles que provocam a
ação do fantástico como Xavier neste conto. Alguns poderiam dizer que os
personagens até aqui são promotores do fantástico, em virtude da fantasia e do
sonho, e ao mesmo tempo são vítimas de sua própria produção do fantástico.
Esse
conto aponta outra questão recorrente nos contos fantásticos de Machado: a
produção abundante da mente. A imaginação joga aqui um papel importante. Mas
quase sempre Machado opõe imaginação fértil x produção literária frágil.
Geralmente o personagem é exuberante em citações, em descobrir achados até
mesmo filosóficos, a ter boa oratória, ideias extravagantes, mas é impotente
para escrevê-los. Nem sempre, contudo, o personagem deseja escrever. Há um
hiato entre escritura e pensamento e muitas vezes a escritura não é buscada, o
personagem se basta com a imaginação transbordante. Não é o caso, porém, de
suas narrativas – e mesmo contos como “Cantiga de Esponsais” – em que o
personagem busca transcrever sua inspiração para o papel infrutiferamente. Este
personagem delirante, de imaginação fervilhante, é que leva o conto para o
patamar do fantástico, ou seja, o fantástico se dá por intermédio agora não do
sonho (a não ser que se encare o sonho como imaginação), mas por meio de uma
exultante e incontrolável produção do espírito criativo. A imaginação criativa
poderia levar o personagem a pensar uma obra – peça de teatro, poema ou conto –
de viés “realista”, mas não. Geralmente, o personagem desse calibre aventura-se
no reino das musas mais extravagantes e desconcertantes.
“Bebia pérolas diluídas em
néctar. Comia línguas de rouxinol. Nunca usou papel mata-borrão, por achá-lo
vulgar e mercantil; empregava areia nas cartas, mas uma certa areia feita de pó
de diamante. [...] Um dia enamorou-se loucamente de uma senhora de alto
coturno, e enviou-lhe um mimo três estrelas do Cruzeiro, que então contava
sete, e não pense que o portador foi aí qualquer pé-rapado. Não, senhor. O
portador foi um dos arcanjos de Milton, que o Xavier chamou na ocasião em que
ele cortava o azul para levar a admiração dos homens ao seu velho pai inglês.
Era assim o Xavier. Capeava os cigarros com um papel de cristal, obra
finíssima, e, para acendê-los, trazia consigo uma caixinha de raios de sol.”
O
conto, na verdade, é sobre a infertilidade de alguns (Xavier) e a fertilidade
de outros que se apossam de ideias alheias. “O anel de Polícrates” é uma
fábula. O rei Polícrates, o homem mais feliz da terra, temia uma reviravolta do
destino. Sacrifica-se, antecipando uma futura derrota e, para aplacar a ira da
Fortuna, desfaz-se do anel. Um peixe come o anel, um pescador o pesca, lá está
outra vez o anel na mesa de Polícrates. A moral da historieta, no caso do
conto, é que as ideias fantasiosas de Xavier são apropriadas por outros que a
colocam em artigo de jornal ou peça de teatro. E, assim, Xavier vê seu “anel”
retornar a seus ouvidos (prato). Xavier chega a tentar escrever um conto, “um
conto fantástico, à maneira de Edgar Poe, uma página fulgurante, pontuada de
mistérios...” Mas não o consegue. Não há verdadeiramente conto fantástico. “O
anel de Polícrates” tem a atmosfera fantástica, embora se possa classificá-lo
entre as fábulas moralistas de Machado. De qualquer forma, o pensamento de
Xavier é algo delirante. O princípio do conto tem não só a atmosfera, mas como
uma descrição exaltada de fatos extraordinários. Logo, Xavier é aqui, ao mesmo
tempo, aquele que inflige o fantástico
como aquele que, passivamente, recebe o
influxo do fantástico.
O
conto “A visita de Alcebíades” inclui-se nas narrativas cultas, objeto e
instrumento precioso para fazer, junto com a imaginação, o aparecimento do
fantástico. Como também é comum acontecer, o fantástico em Machado não se dá
paulatinamente, mas abrupta e intempestivamente. De súbito, o narrador, amante
da antiguidade, leitor culto, tem diante de si, em carne e osso, a figura
histórica de Alcebíades, que lhe indaga das novidades gregas. O narrador não se
faz de rogado e, embora surpreso, mas agindo naturalmente, narra-lhe os
acontecimentos do povo grego ao longo da História. O narrador justifica o
aparecimento de Alcebíades em função de sua prática e crença no espiritismo.
Intempestivamente,
com medo de que Alcebíades não só o visite, mas, após o jantar, leve-o para a
eternidade da morte, resolve contar que vai a um baile. Alcebíades, depois de
saber que várias das manifestações culturais do seu tempo estão sepultadas como
os deuses, as danças e as festas pagãs, decide também ir ao baile com o
desembargador. “Calei-me; cheguei a cuidar que o pesadelo ia acabar, que o
culto ia desfazer-se, e que eu ficava ali com as minhas calças, os meus sapatos
e o meu século.” Há aí também, obviamente, um jogo cultural e uma divergência
de séculos. O século de Machado e seus autores e o século de Alcebíades, da
Antiguidade.
O
desembargador, acostumado às leituras, não estranha não só a chegada inesperada
de personagem de outro século, mas também a vinda da cultura de outro século. O
século culto de Alcebíades, o século das leituras do desembargador. Machado tem
consciência do fantástico. Isso é o importante, porque aqui e ali, revela, como
no caso de fazer um conto à maneira de, como ele próprio chama, Edgar Poe,
Machado, neste conto, deixa escapar a consciência do “maravilhoso”, isto é,
Machado não o faz ingenuamente, mas com conhecimento de método e estrutura.
“–
Vá, continua, dizia-me ele, quando eu parava de lhe dar notícias.
Mas
eu não podia mais. Entrado no
inextricável, no maravilhoso, achava tudo possível, não atinava por que
razão, assim, como ele vinha ter comigo ao tempo, não iria eu ter com ele à
eternidade. Esta ideia gelou-me. Para um homem que acabou de digerir o jantar e
aguarda a hora do Cassino, a morte é o último dos sarcasmos.” (grifo nosso)
Neste conto, não há o
recurso do sonho ou da loucura. O leitor pode imaginar que se trata de uma
narração disparatada e ensandecida. Contudo, Machado cercou-a não de
verossimilhança – que existe –, mas tomou cuidado de colocar um personagem, não
só culto, como também jurisconsulto, o que lhe dá ar de verdade jurídica, ao
mesmo tempo em que encerra a narrativa na moldura de petição ao Chefe de
Polícia. O ar documental não retira a sátira, a ironia, nem o humor, mas
caracteriza o tom pretensamente documental e policialesco, já que a petição é
para que o chefe de polícia retire de sua casa o cadáver de Alcebíades, morto
pela segunda vez. O autor da petição termina com o insólito pedido, sem antes
deixar um desconcerto cultural: Alcebíades não entende os “canudos” que o
personagem veste e se horroriza, porque pensa que o desembargador irá se
suicidar, ao ver que este coloca em voltado pescoço uma gravata. O clima é de
absurdo, não desmentido, nem duvidado, em nenhum momento. Se Machado reescreve
as Escrituras, aqui não chega a reescrever a História, mas faz dela uso de
forma irônica – nada escapa à visão culta do Bruxo. Até agora o que vimos foi o
embate entre dois personagens, com visões conflitantes, visões culturais
conflitantes. Se em “O alienista”, o embate é entre a razão cientificista de um
contra os hábitos e costumes da sociedade e da natureza humana, ou seja, homem
x sociedade ou, como quer Raymundo Faoro, a luta entre a Ciência e a Teologia,
o saber científico e os dogmas da Igreja que já perdia influência e prestígio;
aqui, há o confronto desembargador x Alcebíades. Ou seja, homem x homem.
Em “Viver”, conto
pertencente a Várias Histórias,
Machado insiste com uma de suas metáforas preferidas: a da vida como edição de
livro. “Falaste em capítulo? Felizes os que só leram a vida em um capítulo.”
Essa é uma imagem recorrente que encontramos nos contos “Trio em lá menor”,
“Pai contra mãe” e em Brás Cubas (XXVII). O conto em questão é sobre a
tensão eternidade e morte. Os dois personagens são eternos: Prometeu e
Ahasverus. O primeiro, oriundo da mitologia grega; o segundo, de lenda erudita
cristã que se enraizou no repertório da mitologia sobre Cristo. Ambos sofrem
com a ação do tempo e a impossibilidade de morte. Ahasverus deseja a morte a
fim de que rompa o ciclo repetitivo da vida. Prometeu, contudo, tem uma vida
eterna ainda mais dolorosa, acompanhada de suplício e castigo corporal. A pura
eternidade de Ahasverus é já sua condenação. Aqui o que ocorre é o cultural
(mitologia grega, lenda erudita da Idade Média) associado a um tempo também
erudito que vai provocar, como no delírio de Brás Cubas, o ensejo do
absurdo. Logo, cultura, tempo e absurdo tornam-se termos comuns. Observei em A ideologia do personagem brasileiro que
o tempo machadiano é um tempo filtrado pela cultura, ou seja, que o tempo não é
apenas o ruir (“o tempo que rói tudo”), o destruidor e o envelhecimento das
coisas, mas há forte componente do elemento cultural no tempo machadiano.
Ahasverus condena Prometeu porque criou o homem. Ahasverus é o último homem e
convocará os animais para que presenciem o criador de uma raça derrotada e
sofredora: a humana. E a culpa disso tudo, segundo Ahasverus, é Prometeu. Não
há solidariedade na eternidade, mas luta eterna entre um criador pagão e um
humano cristão.
Em forma de apólogo
absurdo e inusitado, Machado exerce ao mesmo tempo seu lado disfórico e sua
compreensão do humano anseio: permanecer vivo, apesar dos sofrimentos. A vida
não como dom divino, mas um castigo desejado, ou um desejo que mesmo ferido e
maltratado é preferível ao nada. Ahsverus, o imortal, por fim morrerá, mas
ainda iludido de que será o elo entre o último homem e uma nova raça que
surgirá. A ideia de uma nova raça é-lhe incutida maliciosamente por Prometeu,
desenganado. Curioso é que Machado fale de uma nova raça. Uma humanidade
melhorada, um ser humano especial, despido das humanas contradições e erros.
Esta concepção de um futuro luminoso, claramente apresentado de forma
distópica, já que Prometeu induz Ahasverus ao desejo de perfeição e ainda de
imortalidade, ele, Ahasverus, que sempre reclamara de seu castigo eterno, é uma
prova cabal da dubiedade da escritura machadiana e da ironia perversa que
condena tudo o que é humano ao degradado. Quem melhor tem compreensão do que
acontece (um eternamente castigado por dar vida e saber ao homem, outro
eternamente castigado por não acudir Cristo, logo o saber pagão e o saber
religioso) são as duas águias que vêm dar maltrato a Prometeu e morte a
Ahasverus, ou seja, a natureza. As águias representam então o saber não humano,
a sabedoria do elemento não cultural, o saber do natural. Da mesma forma que
fizera com o conto “Um apólogo”, esse conto é também dialogado. Um diálogo
absurdo, irrepresentável. Ora, o diálogo, principalmente na época em que vive Machado,
é a forma mais realista do realismo. Quero dizer, é no diálogo que os realistas
e naturalistas podiam registrar o falar “errado” dos negros e dos malandros, do
povo. Mostrar peculiaridades da fala regional. É justamente por intermédio
deste instrumento que Machado instaura o clima de absurdo como se ele, o
diálogo, também estivesse a serviço do delírio humano.
Em “O cônego e a
metafísica do estilo”, Machado insiste em um dos seus temas preferidos no
conto: o da criação artística. Geralmente o personagem não tem vocação, mas
alberga a ambição da glória artística. Neste e em outros contos (“Um homem
célebre”, “Cantiga de esponsais”, entre outros menos citados), o personagem
luta contra a falta de inspiração. Não chega este “O cônego e a metafísica do estilo”
a ser considerado um conto fantástico, na medida em que o narrador, brincalhão
(com o espírito da galhofa, mas sem o azedume do niilista) propõe uma viagem à
mente do cônego que busca um adjetivo (que tem sexo: o feminino) para um
substantivo (que, por sua vez, tem seu gênero: masculino) a fim de escrever um
sermão que lhe fora encomendado. O problema da criação preocupava Machado, logo
um polígrafo de largo espectro e que, pelo volume de páginas produzidas, não
deveria ter empecilho para a criação. O que observamos é que a criação é fruto
da imaginação e do processo inconsciente de aparecimento de construções
imagéticas e outras formas de expressão literária. A criação em si, como
fenômeno, não é algo científico, ou que se obtém pelo estudo, aprendizagem,
formação escolar ou ensino regular. A criação pertence ao reino do fantástico
no sentido de que se assemelha ao processo singular de deixar escapar o fluido
movediço do inconsciente, rio negro e espesso que ninguém vê ou percebe, a não
ser no mundo também fantástico do sonho ou da loucura.
Prova maior está no
trecho a seguir que, já na mente do cônego, o narrador faz verdadeira viagem
pelos caminhos da consciência e pelos desvãos do inconsciente. Na figura de
Sílvio e Sílvia, o substantivo e o adjetivo que se buscam e se afastam, caem
entre labirintos novos e velhos, aventuram-se no burburinho de ideias que é o
cérebro do religioso.
"Passamos da consciência para a inconsciência, onde se faz a elaboração confusa das ideias, onde as reminiscências dormem ou cochilam. Aqui pulula a vida sem formas, os germens, e os detritos, os rudimentos e os sedimentos; é o desvão imenso do espírito. Aqui caíram eles, à procura um do outro, chamando e suspirando. Dê-me a leitora a mão, agarre-se o leitor a mim, e escorreguemos também.
Vasto
mundo incógnito. Sílvio e Sílvia rompem por entre embriões e ruína. Grupos de ideias,
deduzindo-se à maneira de silogismos, perdem-se no tumulto de reminiscências da
infância e do seminário. Outras ideias, grávidas de ideias, arrastam-se
pesadamente, amparadas por outras ideias virgens. Cousas e homens amalgamam-se;
Platão traz os óculos de um escrivão da câmara eclesiástica; mandarins de todas
as classes distribuem moedas etruscas e chilenas, livros ingleses e rosas
pálidas; tão pálidas, que não parecem as mesmas que a mãe do cônego plantou
quando ele era criança. Memórias pias e familiares cruzam-se e confundem-se. Cá
estão as vozes remotas da primeira missa; cá estão as cantigas da roça que ele
ouvia cantar às pretas, em casa; farrapos de cousas que vieram cada uma por sua
vez, e que ora jazem na grande unidade impalpável e obscura.”
Ora, o mundo da “grande
unidade impalpável e obscura” é o mundo da natureza. O inconsciente está mais
perto da natureza do que da cultura. É nele que se instala ou germina a
expressão mais animal e primitiva do nosso ser, dos instintos mais recônditos e
selvagens que precisam do controle e repressão da cultura, da sociedade, da
censura. Desta maneira, contradizemo-nos: o fantástico, em Machado, passa pelo
mundo da cultura. Há de se reparar, contudo, que o narrador controla a
narrativa e é ele que tem consciência (cultura e repressão) para manter sob
controle o ato de narrar e o objeto narrado. As “ideias, grávidas de ideias,
arrastam-se pesadamente, amparadas por outras ideias virgens”, assinala o
narrador. Mantendo o controle e exercendo ato de cultura sobre aquele objeto
informe e amalgamado, onde se misturam desde citações a Platão a reminiscências
pueris, o narrador ingressa, como o narrador de Gerard de Nerval, no “vasto
mundo incógnito [...] por entre embriões e ruína.”
No
pequeno grupo de contos que nomeio de “reescrever as Escrituras”, podemos
começar pela narrativa “Adão e Eva”, talvez o menos importante do conjunto. De
qualquer maneira, embora o conto venha em estilo jocoso, já contém alguns
elementos do conjunto. “Reescrever as Escrituras”, inicialmente, é uma atitude
de laicizar, dessacralizar o divino. Machado, contudo, não o faz de maneira
sacrílega ou em tom de condenação ao clero. Mesmo porque Machado investe na
economia não da Igreja, secular, mas no pensamento da Igreja, no seu ideário e,
mais ainda, fugindo da instituição Igreja, Machado está preocupado em
rediscutir as leis divinas. Rediscutir as leis divinas é mexer com o imaginário
cristão e, principalmente, popular. A civilização ocidental e, também sua
cultura, está impregnada da Bíblia. Ao reescrevê-la, Machado está reescrevendo
a própria civilização ocidental. A crítica de Machado logo não é contra a
instituição, mas ao imaginário e ao poder cultural. Subvertendo o que está
escrito como lei divina, Machado também investe contra a lei secular, a lei
laica, pois ela informa, normatiza, pune, estabelece, cria procedimentos, onde
não aparecem as dores humanas, as fraquezas de alma, os sofrimentos íntimos e
recônditos. São estes últimos – pecados múltiplos – que fazem a humanidade ser
humanidade. Nele, Machado usa um dos seus cenários prediletos: a mesa da sala,
confraternização burguesa, a conversa dos salões. Sem pretensões maiores do que
uma piada, o juiz de fora (lei laica), em forma de brincadeira, no ano de mil
setecentos e tanto, na Bahia, instado a dar sua opinião sobre Adão e Eva,
discorre longamente sobre a tentação e corrige o final da história: não houve a
tentação de Eva e logo o paraíso é restabelecido e eternizado. Neste conto,
Machado não insiste em buscar os erros, defeitos e manchas psicológicas. Em tom
de galhofa, refaz a Escritura, em frente de um frade carmelita (lei divina),
que não o contradiz. Não sendo o procedimento dos outros contos que veremos à
frente, podemos já observar o comportamento de colocar de cabeça pra baixo o
que estava em seu posto, canonizado e estabelecido desde os tempos bíblicos.
No
conto “A igreja do diabo”, apresenta-se outro comportamento dos contos de
Machado em geral. Diria mesmo que há um comportamento generalizado de sua
narrativa e que aqui, nos contos fantásticos e, mais ainda, neste propriamente
dito, se realiza: a necessidade de dar ordem ao caos. Se observarmos o
“Delírio”, em Brás Cubas, veremos que na desordem indiscriminada persiste a
necessidade de explicação (e não digam de que nos tempos do romantismo e realismo
havia a necessidade de não extrapolar e tudo justificar, pois aí mesmo está a
literatura fantástica em alemão, francês e inglês, contrariando, com Hoffman,
Maupassant de “Orla”, Gautier e Poe) e, mais do que explicação, de organização
do que é fruto da desordem e do inconsciente. E ainda mais, além da necessidade
de dar ordem ao caos, estamos diante de uma atitude estilística de Machado: a
de sistematizar o pensamento. O caso mais agudo vem a ser a teoria do Humanitas,
com toda sua carga irônica, do aloprado Quincas Borba. A igreja do diabo não é
apenas uma anarquia, uma sublevação, um movimento de colocar o que estava
embaixo no reino de cima, mas descrever uma organização daquilo que, no
pensamento ocidental cristão, representa o caos e a desorganização. Não há uma
teoria do inferno no sentido jurídico-organizacional e institucional, apesar
dos famosos vários círculos do inferno. O inferno, para nós, é justamente o
desarranjo do mundo. O mundo celestial é uma cópia de regras e mandamentos que
se reflete no código mais severo que é a Bíblia. A Bíblia é o ordenamento
jurídico e institucional mais eloquente da civilização ocidental. Aqui o que
Machado quer introduzir não é apenas a inversão de valores, que é a primeira
leitura. Subjaz o estrato de uma desorganização que precisa, para sobreviver,
organizar-se como uma igreja, com seus códigos, com suas leis, com suas
disciplinas e seus ordenamentos. No diálogo com o Diabo, Deus pergunta: “– Não
é preciso; basta que me digas desde já por que motivo, cansado há tanto da tua
desorganização, só agora pensaste em fundar uma igreja?”
(continua)
(do livro A cidade na literatura e outros ensaios. São Luís, Edições Academia Maranhense de Letras, 2016)