sábado, 4 de maio de 2019

Mares, poema RCF

malecón de Havana

Na Venezuela, meus companheiros
me levam para ver o mar do Caribe.
Bebemos, rimos, comemos peixe à beira-mar.
Me perguntam o que acho do mar do Caribe.
Ora, amigos, o mar é o mesmo como uma nota musical.
No malecón de Havana, Cuba,
em La Guaira ou na Urca,
o mar não tem sotaque nem hino que se cante.

Uma cantora canta El día que me quieras e penso
que o que vivi é apenas bolero.
Os amigos são fotos que falam, batem no ombro
e dizem que não vale a pena sofrer por uma mulher.
Os amigos afundam na densa neblina da essência e, fugidios,
deixam-se entrever na parede do espanto e nas portas do tédio.

O mar chocoalha as maracas de espumas
para acompanhar a cantora.
Alguém, bêbado, brinda a mim;
penso na ressaca exagerada de mim mesmo,
no sal extravagante da memória e dos fugazes tateares
do mistério de ser eu mesmo meu algoz.
Falam de mulheres e riem alto. Nada mais sabem de literatura.
Ao diabo a literatura!
E então penso em ti, que engana meus sentidos,
como o pau de sebo das marés
se oferecendo e recusando como dois amantes com remorso.

Ao final saímos do bar e dirigimos feito loucos
sempre bordejando o mar, eternamente bordejando o mar,
o mar que sacode o lenço de sal e maresia.
Onde estarás agora que arrisco minha vida e minha literatura
na avenida beira-mar de um país distante?
Onde estará teu corpo de ausência
e cavalos-marinhos de torpor e vício?
A literatura já não me importa, nem mesmo a vida
com suas saias rodadas e luas espessas já não me importa.
O álcool espuma nas veias como o buscapé das águas
explodindo nas pedras.
De que me valeu ler tantos livros?
O carro, embriagado de espanholismos e de desterros fatais,
envereda pela maré baixa, me torno sutil e melindroso
como um caranguejo que palita o andar.
Que horas devem ser no Brasil?


(poema do livro Andarilho)


quarta-feira, 1 de maio de 2019

O desperdício, conto RCF



Resultado de imagem para vivian maier



         



O pensamento é longo. O diabo do pensamento não tem paredes. Quanto mede a obsessão? Ele era composto por músculos, humores, líquidos e obsessões. A obsessão dele era a sobra. O mundo não podia ser restante. Deveria ser exato como soma.
         O que ele não sabia era se a morte podia ser considerada desperdício. É certo que, durante a vida, desperdiça-se muito. E que este desperdício cessa com a morte. Mas a questão não era para ser posta desta maneira. E, sim, se, depois da morte, o corpo era mais desperdício do que em vida. Ou seja, em outras palavras, não interessa se o morto não desperdiça, mas ele queria saber se entre o corpo morto e o corpo vivo, qual deles se desperdiça mais?
         Depois, obviamente, de vigiar os desperdícios ordinários como água, papel, luz, chamadas telefônicas – não só seus desperdícios, mas o desperdício alheio, na maioria das vezes, gerando discussões, caras fechadas, vizinhos que cortaram relações, a família que o marginalizara, uns chamando-o de excêntrico, outros de inconveniente – o certo é que chegou a uma conclusão impeditiva: o pensamento também desperdiçava. Era preciso eliminar o pensamento mecânico, cotidiano, ordinário, desnecessário e, certamente, perdulário.
         O pensamento perdulário era o lugar-comum, as ruminações automáticas, o raciocínio viciado. Para evitá-los havia de fazer um esforço sobre-humano e, mais ainda, treinar a mente. O pensamento que não se desperdiça, logo, deveria ser o contrário. O que trouxesse novidade, luz, idéia transformadora ou mesmo disparatada, deveria ser visto como pensamento inquieto e ousado. Ou melhor, um pensamento não perdulário, um pensamento econômico.
         Ele, afora a discussão interna sobre quem desperdiçava mais, se o corpo vivo ou o corpo morto, decidiu vigiar também o desperdício da vida. O difícil era delimitar o que era vida excessiva. Não lhe interessava considerações e coros alheios. Ele se perguntava o que podia cortar em sua vida para que não desperdiçasse.
         Deitar-se, alimentar-se pouco, somente pensar o necessário e útil, imprescindível, o pensamento raro, não, não era a saída. A cama poderia também ser vista como desperdício horizontal. Poderia aprisionar-se. Mas o corpo necessitava de energia, músculo, excrescência – os corpos, visivelmente exteriores, são feitos de excrescências, vejam os membros, há excrescência mais significativa e simbólica do que os membros?
         O trabalho era desperdício, ora se não, já o havia abandonado fazia tempo. O trabalho é um mecanismo de relógio, músculo de horário, roldanas feitas de veia e sangue, o sujeito desperdiça a vida atrás de uma mesa. Não conseguia pensar no trabalho sem que a imagem de uma mesa devorando-o, infectando-o de cupim e papel, tornando sua pele seca, sugando-lhe a seiva mínima da dignidade, o invadisse de forma inquietante. O trabalho rotineiro era invenção não do diabo, mas de um Deus patrão.



(Manual de Tortura. Contos, 2007)

terça-feira, 30 de abril de 2019

Um homem é muito pouco 23

Resultado de imagem para radu balcin
   
        Onde está minha cruz? Às vezes deito no chão. Ponho pé sobre pé. Abro os braços. Tento pensar como Cristo. Não sou Cristo. Nem sou cristo. É apenas um exercício. Tem gente que faz flexão; outros, abdominais. Minha flexão é mental. Minha abdominal é cerebral. Faço duzentas flexões mentais. Por outro lado, meu recorde é cento e vinte abdominais cerebrais. Uma delas é pensar como Cristo. O que Cristo pensou na hora em que estava na cruz? Doem-me as costelas, tenho um pulmão perfurado, vaza água dentro de mim. Há uma fileira de Cristos. Só eu ficarei na História. Se tivessem me matado com uma adaga, qual seria o símbolo da minha religião? Uma adaga turca? De envenenamento? De envenenamento o símbolo teria que ser abstrato. Eu criaria a primeira religião cujo símbolo é abstrato. Abstratos são o pão e o vinho. Se morresse envenenado poderia eleger a pimenta como símbolo da minha religião. Riam, riam. Ninguém consegue hoje pensar em Cristo e não pensar na cruz. A Bíblia teria sido reescrita: o vinho é o meu sangue, o pão é minha carne, e a pimenta será minha cruz. Não, não pode haver cruz. Então há de reescrever a última frase. Mas Cristo, na última ceia, não fala da cruz. Então não seria necessário reescrever a Bíblia.

            Quanto tempo passo como Cristo? Não sei. Às vezes estou na rua e também sou Cristo. Ninguém sabe que sou Cristo na fila do supermercado, na fila do banco, na feira livre. Ser Cristo na feira livre equivale a cinquenta flexões, o sujeito que consegue se concentrar numa feira livre faz muito mais esforço que se concentrar na antessala vazia de consultório de dentista. Meu exercício para ser Cristo é tremendo. Estou na fila do caixa do supermercado e me imagino ali com coroa de espinhos na cabeça, camisão branco, barba longa e escura. Ninguém vê minha coroa de espinho, meu camisolão branco e minha barba comprida. Um amigo meu não vê diferença entre mim e um hare krishna que canta mantras. Mas não é igual o meu Cristo a ser um budista de classe média de cidade grande no meio dos trópicos, no calor de quarenta graus do Rio de Janeiro no verão, onde até as ideias são bronzeadas de tanto esquentar o cérebro, mesmo na sombra. Um calor como esse não deve fazer bem aos nervos nem aos pensamentos.

Poema de amor, RCF




 


Meus cílios batem asas mas não voam.
Digo ao meu amor: buganvila-me.
Às vezes falo nerudamente.
Sua o corpo de mulher,
fecha os ouvidos da perna
e aí meu pensamento
sussurra em língua Breton.
Três caravelas descobrem
a américa do meu norte:
santa maria pinta e borda,
sob os olhares de Nina.
E aí me pergunto:
de quantas luzes
se faz um escuro?
Ela, com sexo submarino e salgado.
Uma igreja não é um templo,
mas uma caixa de esperança.
Meu medo às vezes enferruja.




(O difícil exercício das cinzas, 2014)

segunda-feira, 29 de abril de 2019

Tu, de Mário de Andrade



Resultado de imagem para são paulo início sec xx

Morrente chama esgalga,
mais morta inda no espírito!
Espírito de fidalga,
que vive dum bocejo entre dois galanteios
e de longe em longe uma chávena da treva bem forte!

Mulher mais longa
que os pasmos alucinados
das torres de São Bento!
Mulher feita de asfalto e de lamas de várzea,
toda insultos nos olhos,
toda convites nessa boca louca de rubores!

Costureirinha de São Paulo,
ítalo-franco-luso-brasílico-saxônica,
gosto dos teus ardores crepusculares,
crepusculares e por isso mais ardentes, bandeirantemente!

Lady Macbeth feita de névoa fina,
pura neblina da manhã!
Mulher que és minha madrasta e minha irmã!
Trituração ascensional dos meus sentidos!
Risco de aeroplano entre Moji e Paris!
Pura neblina da manhã!

Gosto dos teus desejos de crime turco
e das tuas ambições retorcidas como- roubos!
Amo-te de pesadelos taciturnos,
Materialização da Canaã do meu Poe!
Never more!

Emílio de Meneses insultou a memória do meu Poe. . .
Oh! Incendiaria dos meus aléns sonoros!
tu és o meu gato preto!
Tu te esmagaste nas paredes do meu sonho!
este sonho medonho! . . .

E serás sempre, morrente chama esgalga,
meio fidalga, meio barregã,
as alucinações crucificantes
de todas as auroras de meu jardim!

domingo, 28 de abril de 2019

Um homem é muito pouco 14



Street Art

Um dia Yolanda acordou e entendia de artes plásticas. Quis visitar museus, fez viagem à Europa com
Clemente e com Clemente visitou o Prado, o Louvre, a National Gallery, em Londres, e outros museus e galerias. Encontraram-se em Gênova, onde o navio de Clemente parou e ele desceu de férias, como o combinado com o Lloyd. Yolanda queria esquecer a presença de Toninho Marcos que havia aparecido em seus sonhos e em alguns objetos que pegava.
          Entrava na cozinha, pegava o bule no café da manhã e o bule era Toninho Marcos. O bule não era Toninho Marcos, é claro, mas o rosto dele estava no bule tão nítido como se refletisse não a mão grande dela perto do bule, mas o rosto magro e ovalado de Toninho Marcos. Abria o guarda-roupa e Toninho Marcos estava lá dentro, pendurado num cabide. Entrava no táxi, ia pagar o motorista, ele se virava e o motorista era Toninho Marcos.
         Ela não queria trair Clemente e por isso inventou a tal viagem à Europa que ela já tinha tanto ido com os pais e nunca dera tanta atenção aos museus, nem via as igrejas como góticas.
       Para falar a verdade, aquele mundo de antiguidade e arte pertencia ao mesmo universo degradado do pai que vendia sabão. O pai gostava dos museus e das igrejas e logo se o pai gostava do museu e das igrejas e vendia sabão, a pequena Yolanda punha no mesmo saco igrejas, museus e sabão.
       A viagem não fez Yolanda esquecer Toninho Marcos. Ele estava nas gravuras ensandecidas de Goya, nos quadros medievais com guerreiros sobrepostos – como cabia tanta gente num mesmo quadro?, dos quadros da Galeria del Ufizzi, em Florença, nos retratos de Rembrandt e ela não entendia porque Rembrandt havia pintado Toninho Marcos. Nem também entendia como os rostos longos de El Greco todos retratavam Toninho Marcos.
         Durante toda a viagem, Yolanda reclamava do frio europeu e do cansaço de visitar tantos lugares de uma só vez e por isso não ia para a cama com Clemente. As duas únicas vezes que dormira com Clemente o chamara de Toninho e, em certa noite, que sonhava que discutia com Toninho Marcos o valor de um quadro, começou a falar palavras soltas como móbile, arte, vida, arames, Gauguin. Só quando voltou ao Brasil é que Yolanda percebeu não poderia mais viver com Clemente.


(Um homem é muito pouco. São Paulo: Ed. Nankin, 2000)

Um homem é muito pouco 15




Street Art

Meses depois, Toninho Marcos voltou dos Estados Unidos. Conseguira a galeria e marcou a exposição. Ele ficara com todos os encargos e gastos da montagem. Mas como eram os Estados Unidos, Toninho Marcos contratou firma que transportava, montava e divulgava a exposição. Os irmãos de Toninho Marcos não gostavam da profissão de artista dele, mas compareciam às vernissages e gostavam de sair nas colunas sociais onde apareciam em foto. Toninho Marcos voltou ainda mais americanizado, tinha morado em apartamento de um só cômodo e fizera ali também seu ateliê, o único inconveniente era dormir com o cheiro de tinta, comer com o cheiro de tinta, pensar em Yolanda com o cheiro de tinta. Toninho Marcos usava muitos termos em inglês, o cabelo vinha até o meio das costas, fumava, contudo, cigarros brasileiros e bebia vodca.

Tinha o cacoete de virar-se para trás como se alguém estivesse em suas costas. Da mesma maneira que Clemente tinha medo de Bremen, Toninho Marcos tinha medo de voltar à casa da dra. Nise da Silveira. Andava pela city como estivesse numa grande galeria. Olhava as paredes laterais dos buildings e pensava numa grande tela. O cheiro de descarga dos carros e outros cheiros urbanos, ele não os sentia, carregava no nariz o cheiro das tintas. E cada olhada mais demorada sua, ele pouco via movimento e sim cores, luzes e sombras e fixava o momento como se estivesse dentro de um quadro. Às vezes Toninho Marcos pensava a cidade do Rio como a Paris de Utrillo, mas quando ia levar à tela as impressões e visões da cidade saía algo abstrato e, agora, caminhava para o geométrico.

Como voltara a estar com Liechtenstein, Toninho Marcos sentia a influência dele e caminhava também para registrar as cenas urbanas numa espécie pop das revistas em quadrinhos, como já fizera outro pintor carioca, que Toninho Marcos conhecia socialmente, mas não gostava por ser pernóstico e, assim pensava Toninho Marcos, vê-lo, a ele, Toninho Marcos, como naïf ou louco que pintava como terapia.



(do livro Um homem é muito pouco. São Paulo: Nankin, 2010.)