Lourival Serejo
Houve um tempo, na minha etapa
universitária, em que me considerava um trotskista, em pleno regime ditatorial vigente no Brasil naqueles
anos. Por essa época, li a extensa biografia de Trotski, da autoria de Isaac
Deutscher, em três volumes, (Civilização Brasileira, 1968): Trotski, o profeta armado; Trotski, o
profeta desarmado; e Trotski,
o profeta banido. Depois, li a sua autobiografia (Minha vida. Paz e Terra, 1969). Com todo esse arcabouço teórico,
supus que estava pronto para considerar-me um verdadeiro trotskista.
Com o tempo, reparei meu equívoco.
Sobrou-me desse período apenas a admiração por Leon Trotski (1879-1940), o
maior colaborador de Lenin na Revolução Russa de 1917, comandante do Exército
Vermelho, respeitado pela sua capacidade de liderança e doutrinador do novo
regime soviético.
Talvez pelos resíduos daquela fase
estudantil é que busquei a leitura do livro de Leonardo Padura Fuentes, O homem que amava os cachorros, com suas
alentadas 589 páginas (Boitempo, 2013), só agora publicado no Brasil, embora
tenha sido lançado, na Espanha, em 2009. Do autor sabia que era cubano e já
havia lido um dos seus romances policiais, Máscaras.
Além desses, outros livros seus já foram publicados por editoras brasileiras,
como Adeus, Hemingway; Ventos de quaresma; A neblina
do passado e Passado perfeito.
O fato de Leonardo Padura rever a
trajetória de Trotski (adoto aqui a grafia usada por ele, sem o “y” final),
isentando-o das acusações de Stalin e colocando-o no seu verdadeiro lugar na História,
não dá ao autor de A revolução traída
a condição de personagem com maior destaque no romance. Do outro lado da moeda,
encontra-se Ramón Mercader Del Rio (1913-1978), o espanhol que assassinou
Trotski, na Cidade do México, em 1940, com uma picareta de alpinista, o qual
aparece na narrativa como Jaime López, um misterioso morador de Havana, que
costumava levar seus cachorros para passearem na praia. Cada um deles, Trotski
e Mercader, tem sua função importante
nos acontecimentos narrados pelo frustrado escritor cubano Ivan Cárdenas
Maturell, o narrador nomeado por Leonardo Padura.
O que é surpreendente, dentre tantas
coisas, no livro de Padura, é que, mesmo sabendo o desfecho, corre-se o texto
com a ansiedade de quem quer saber o que acontecerá. O autor soube montar uma
história tão perfeita, que o real e o fictício se misturam de tal maneira que
fica difícil distinguir a linha de separação. Aqui e ali, o autor atreve-se,
pela voz do narrador, a fazer algumas críticas ao regime de Fidel Castro e às
dificuldades sofridas pelo povo cubano, por conta do embargo econômico.
Para melhor entender o fato e seu
desenlace, é recomendável assistir ao filme O
assassinato de Trotski (1972), com Richard Burton e Alain Delon.
A preparação minuciosa do assassino e
seu desempenho, o suspense que o autor provoca são próprios de quem domina a
ficção do romance policial. Nesse caso – acrescente-se – só
depois que dominou bem a história, o que requereu do autor uma pesquisa de mais
de três anos. Conforme ele mesmo declarou em uma de suas entrevistas, a
inspiração para escrever O homem que
amava os cachorros foi procurar definir o verdadeiro papel de Trotski – um
nome proibido em Cuba – na Revolução Russa e ter descoberto que Ramón Mercader
morreu anonimamente em Havana.
Recentemente, Leonardo Padura esteve no
Brasil e chegou a ser convidado para almoçar com a presidente Dilma, que já
havia lido o seu livro e chegou a recomendá-lo em seu diário eletrônico.
Com esse prestígio todo, ele poderá
continuar morando em Cuba e escrevendo à vontade suas críticas sutis ao regime.
Aliás, em suas crônicas, no jornal Folha
de São Paulo, ele já vem botando as mangas de fora. Sorte dos seus leitores,
que terão um escritor cada vez mais autêntico.
Pelo tema ali tratado, O
Homem que amava os cachorros é considerado um romance histórico. Sabemos que
o historiador difere do ficcionista pelo seu compromisso com a verdade. No
romance de Padura, o descompromisso da ficção com o verdadeiro é condicionado
pela força dos fatos históricos de base, os quais não podem ser alterados pelo
escritor, apenas interpretados e preenchidos os vazios pela força criativa. Por
essa capacidade reconhecida do escritor, quase não se percebe a tensão entre
realidade e imaginação.
Numa só obra, Padura presta inegável
contribuição à História, reabilitando a figura de Trotski, vítima da propaganda
stalinista que o pintava como um traidor, ao mesmo tempo que produz um romance
que terá lugar assegurado na estante da melhor literatura latino-americana.
Publicada
no jornal O Estado do
Maranhão, em 15.6.2014