O edifício era
tortuoso, mas não lembrava labirinto; era pleno de apartamentos minúsculos, mas não
sugeria colmeia. Era baixo, sem necessariamente ter poucos inquilinos: formava
um longo ele, onde os apartamentos de fundos podiam ter a visão da entrada. O
edifício ficava na Barão da Torre. Sob os pilotis, criou-se a confusa garagem
onde um carro tinha que sair para outro entrar. Berta e José davam festas para
gente do Cinema Novo. Nunca vi cineasta importante na casa deles, apenas
atrizes iniciantes com cara de drogadas, meninas ingênuas e pálidas enrolando
os erres ou starlets que faziam ponta e se acreditavam diva. Havia dois atores
menores que frequentavam a casa de Berta, a gorda, e de José, o que mancava. Os
dois atores apareciam tanto em cinema brasileiro quanto o José Lewgoy. Vi-os em
Macunaíma, vi-os em filmes urbanos de cineastas com narrativa
fragmentária, vozes em off, câmara tremida.
Eram péssimos atores. Berta, a gorda
Berta, nunca lera nada até o fim, mas gostava de comentar livros que não leu.
Carregava memória do cão e retentiva de dar inveja a concorrentes de O céu é
o limite. Os apartamentos eram quase todos de quarto e sala. Eu morava num
quarto e sala. Os apartamentos de frente eram maiores, de três quartos. O
edifício tinha quatro andares, logo havia apenas quatro apartamentos de três
quartos em todo o prédio. Embora José fosse alto funcionário do Instituto do
Açúcar e de Álcool, morava naquele apartamento apertado porque era perto da mãe
de Berta, uma velha judia que vendia joias e tinha sofrido o diabo na Segunda
Guerra. Não vale a pena contar a história da velha Sara com o campo de
concentração, a fuga polonesa e a descida intempestiva no cais da Praça Mauá,
interrompendo a viagem até a Argentina, seu destino final. Durante o trajeto,
muitos comentavam que na primeira classe viajavam famílias nazistas em viagem
de férias à Argentina. Ela não ia sair de um inferno de arame farpado para
viver um inferno a céu aberto. Engravidou de um sujeito gordo, sujo e que fedia
a carne de porco. Era um judeu que odiava os judeus e se transformara num
açougueiro. E como açougueiro delatara vários judeus. Teve de fugir da
Alemanha.
Sara deu à luz a uma menina
saudável, mas que crescia enormemente e comia feito adulto. Aos seis anos tinha
estatura de adolescente e gordura descomunal. Ela mandara reforçar a cama de
Berta. Foi a primeira das camas de Berta que tinham sido mandadas fazer com
reforço, além do peso ela passava uma noite agitada que aumentava o volume das
carnes e a pressão sobre as molas. Vinham-lhe pesadelos terríveis. Num deles
ela se afogava. Gritava e se debatia e quando percebia nenhuma água a sufocava.
A piscina dava pé e o sufocamento era consequência das enormes cordas vocais
que lhe entupiam a garganta. Por isso também o apelo de socorro não era
escutado. Ela acordava chorando e a mãe lhe cantava cantigas de ninar em
iídiche, pois eram as únicas cantigas de ninar que conhecia. Berta tentou ir ao
colégio, chegou a ser alfabetizada, aprendeu as quatro operações e se deu por
satisfeita.
(do romance Um homem é muito pouco. São Paulo: Nankin, 2010)