(do livro A cidade na literatura e outros ensaios, 2016)
1857 foi um ano fundamental para a literatura mundial. Nesse ano, dois autores franceses publicavam seus livros. Um de prosa, intitulado Madame Bovary, de Flaubert. Outro, de autoria de Charles Baudelaire, iria mudar a poesia com sua visão maldita do mundo. Era o livro As Flores do Mal. Ambos sofreram processo na justiça. O primeiro por açular a permissividade erótica e o segundo por tratar de temas renegados pela sociedade como, no dizer do crítico francês da época de Baudelaire, F. Dulamon, “o vício frívolo do indivíduo, a corrupção dogmática das sociedades, almas cúpidas que fraudam e caluniam”. Os incestos, lesbianismo, o lado do mais decadente e escondido da sociedade está nas páginas de Baudelaire.
Flaubert
se defendeu com a tese de que não usava nenhum exemplo vivo e da realidade e
que Madame Bovary era ele. Ao “incriminar-se”, Flaubert fugia da acusação de
denegrir alguém do mundo real ou fazer apologia do adultério com sua visão
indulgente e não condenatória. Baudelaire usou a tese de que não aprovava ou
desaprovava o que descrevia como “desvio” social. Ele apenas apresentava o que
de mal havia na sociedade, mas (argumento desnecessário para a literatura,
embora importante para a justiça que não trata de literatura) sua poesia, como
conclusão, apontava para um elemento mais puro e não corrompido pelos homens.
É um pouco
constrangedor para os amantes de Baudelaire ver o poeta angustiado e tenso para
provar sua inocência. Para alcançar tal fim, ele precisava pousar de homem
digno de pertencer à sociedade parisiense, ser um cidadão normal e estar em sua
plenitude intelectual e moral. Baudelaire não tinha que prestar contas a
ninguém, se seu livro não tivesse ido parar nas mãos e olhos errados. E muito
menos seus defensores teriam que argumentar com uma imparcialidade moral do
poeta. O poeta apenas registra e não coaduna, não endossa, não aceita o mal que
está na sociedade.
Baudelaire parece ter
tido outro problema de ordem literária e humana. Como bem observou Theophile
Guatier, o poeta de As flores do mal realmente admirava seus
antecessores. Dedicou dois poemas para Victor Hugo, que reconheceu não entender
bem a estética de Baudelaire, agradeceu a reverência e recomendou coragem ao
poeta diante das adversidades. Hugo e Gauthier, principalmente este último, a
quem Baudelaire amava como literato e ser humano, entenderam em parte a nova
proposta estética daquele poeta que, curiosamente, não era tão maldito em sua
vida social como parecia e que deseja ser aceito na sociedade dos poetas vivos
de sua época. Mas Guatiher entreviu muito lucidamente dois movimentos muito
comuns na história da literatura. Gauthier percebeu que a nova estética de
Baudelaire diminuía seu poder romântico e que apontava para um novo rumo
estético, embora ainda preso às convencionais regras do soneto, das rimas e de
outras formas fixas.
Não, Baudelaire não era
Rimbaud que mandou tudo às favas. Lucidamente, escreveu sobre paraísos
artificiais, mas os condenou, quis entrar para a Academia Francesa, frequentava
salões, era um dândi e não um camponês com roupas rústicas, grandalhão, calça
pescando siri e sapato grande e usado quando se apresentou na casa da família
de Verlaine.
O curioso é que tanto Madame
Bovary e As flores do mal foram publicadas em periódicos. Madame
Bovary, em 1856, como folhetim. Causou desconforto, mas não processo penal.
As flores do mal também apareceu na imprensa, não o livro inteiro, mas
partes dele. A Revue de Paris, a Revue des deux mondes, L’artiste,
a Revue française publicaram vários poemas do que viria a ser o livro
maldito. Nada disso os levou a corte, a não ser quando enfeixados em livro.
O livro, já dissemos em
O narrador do romance, tem o caráter de documento, mesmo o livro de
ficção, mesmo o livro de poesia. A “mentira com sabor de verdade”, impresso em
letra de fôrma, é um documento mais impactante do que versos soltos ou páginas
avulsas. O primeiro crime de Baudelaire – e de Flaubert – foi publicar em livro
as divagações satânicas de um e os devaneios eróticos de outro.
Um dos seus críticos
contemporâneos escreveu longo artigo em que defende Baudelaire com o argumento avant
la lettre do artifício literário da
despersonalização que, mais tarde, será teorizada por T.S.Eliot. Jules Barbey
D’Aurevilly dirá que
“Baudelaire
é um artista de vontade, de reflexão e de combinação antes de tudo.[...]
Portanto, como o velho Goethe, que se transformou em turco vendedor de
pastilhas em seu Divã, e nos deu assim um livro de poesia, o autor das Flores
do Mal se fez celerado, blasfemador, ímpio, pelo pensamento, absolutamente
como Goethe se fez turco.”
Mas eu diria que Baudelaire foi julgado
também pela sua proposta estética. Simples, assim. É claro que o juiz da época
nem tinha consciência de que estava julgando também um fato estético. Por
princípio e hábito, o juiz teria a obrigação de cuidar dos bons costumes e
afastar aqueles que porventura pudessem desvirtuar a conduta social. Contudo, a
justiça ali, como no caso de Flaubert, se incomodava – e profundamente – não
apenas com o que foi dito, mas como foi dito. Incomodava a Nova Forma (embora o
próprio D’Aurevilly tenha aproximado o verso baudelairiano do verso de Victor
Hugo). Perturbava a ordem também o fato de o que foi apresentado ter sido apresentado
dentro de um romance não convencional e dentro de um livro de poemas que ousava
introduzir não apenas novos temas das torpezas humanas, mas também com uma
linguagem desabrida e contundente e, embora em formas fixas ditas
convencionais, com um gosto de um verso atravessado, carnal e vil.
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