sexta-feira, 30 de março de 2018

O romance: um estudo de caso utopia x ruína 1

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O romance: um estudo de caso utopia x ruína[1]


(do livro A cidade na literatura e outros ensaios)


          No romance, que tomamos por base para formular nossa teorização, vemos que toda construção, logo utopia, carrega consigo o germe que a destruirá, carrega consigo em seu bojo sua própria ruína. Em toda literatura se pode constatar que a vanguarda, que é uma forma de utopia, carrega o germe de sua destruição. As vanguardas se comprometem com o amanhã, mas trazem consigo o ontem que tentam anular, destruir, tornar cinza, evanescente. As vanguardas, sejam elas explícitas como as do século XX – dadaísmo, surrealismo, futurismo, etc. – sejam elas de forma implícita como as transformações operadas no seio agora de nossa sociedade, carregam não apenas o novo como também o elemento de corrosão que a fará fenecer, fruto mesmo de sua ousadia e necessidade de pensar utopicamente.1 Antes, as vanguardas não estavam de todo limpas da estética que propunham derrubar. Ainda traziam resquícios de um maneirismo que permanecia até que, em alguns anos, se depuravam e eliminavam o velho que carregavam com eles. Prova disso está em que vanguardistas como Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, por exemplo, na época em que explodem como editores da revista Orpheu, traziam consigo uma grande influência simbolista, decadentista e até mesmo do pior da tradição portuguesa (sebastianismo, saudosismo, etc.). Mas também dissemos outra coisa: as vanguardas trazem, e isto é o mais importante, dentro de si o germe que os eliminará. O germe que os eliminará é o cacoete, a excentricidade, a caricatura que mais tarde se acentuará e fará com que o movimento ou a estética passe a ser má utilizada e entrará em seu maneirismo, em sua ultra-expressão e, por fim, dará lugar a uma nova estética, a uma nova construção, a uma nova utopia. Então não há utopia na literatura sem que esta não carregue os destroços do passado e que, ao mesmo tempo, não projete para o futuro o erro de seu cálculo, o envelhecimento de seu ato, a derrocada de sua melancólica e heróica atitude. Até porque a vanguarda, em sua expressão mais própria, é quase sempre caricatura de si mesma. Para chamar atenção, espantar, causar polêmica, ela exagera e traz para o centro o dado curioso e periférico. Este dado preciosista e periférico está contaminado de destruição, de ruína, de perda e de falha. E é por isso que, o que era virtude se torna defeito ou exagero, o que era proposta utópica se torna excentricidade motora, ato inercial.
            Temos então duas leituras: a primeira se refere a uma vanguarda como vanguarda, movimento de grupo ou mesmo de um artista que proponha uma arte nova. A segunda diz respeito a uma interpretação feita dentro da obra mesmo literária. É esta que agora analisaremos.
            Na obra literária, todo projeto ficcional é uma geração de utopia, de necessidade de criar um universo onde nada interfira e tudo possa ser inserido. Se compreendermos o fenômeno literário como uma transcodificação idealizada da realidade empírica, teremos um espaço onde cabe toda a aventura humana a partir de um sentimento ambicioso e globalizante do autor. No romance, o autor deixa de existir e dá lugar a um elemento fundamental da narrativa, o narrador, que tudo pode e tudo empreende em nome do universo que domina. A partir desse poder e amplitude, mesmo nos romances mais intimistas, o narrador passa a considerar seu projeto uma maquinação de possibilidades do vir-a-ser. A fabulação é às vezes mais próxima a uma realidade facilmente reconhecível e outras vezes mais nebulosa e introspectiva, distante de uma mediação onde se percebam traços de uma transcodificação menos colada à realidade. Mas é a partir dessa fabulação que o narrador se permite a construção de um universo ficcional tão próprio que não há de se confundir com a linguagem de outras narrativas como a histórica, ensaística ou mitológica. 
         A construção do universo narrativo da ficção inclui em sua série um propósito de alicerçar uma estrutura e um método. A estrutura, que nada tem a ver com o estruturalismo dos anos 60 e 70, é o projeto de construção arquitetônica onde a trama, alvenaria que toma formas diversas, é alicerçada em fundações verbais e ideológicas, que se transformam após a leitura e decodificação da mesma trama variante, múltipla, multiforme, cambiável e una em sua expressão estilística, ou seja, cada obra apresenta-se como singular, apoiando-se numa estrutura não perceptível a olho nu, mas que se desvela na interpretação estilística, hermenêutica, ideológica ou mesmo em sua desconstrução. O método é uma forma de a narrativa ingressar num universo maior já consagrado que aqui, em nosso caso, chamamos de regras gerais, embora dinâmicas, do romance, desde seu aparecimento com Dom Quixote, passando pelas forma experimentais de um James Joyce, até o nosso pós-moderno em que se diluiu a cultura literária contemporânea.
(continua)
 (do livro A cidade e a literatura. São Luís, Edições da Academia Maranhense de Letras, 2016)


[1] Apresentado no Colóquio Brasília, futuro do pretérito, realizado no CCBB, em Brasília, em 14 de junho de 2002.
1 Ferreira Gullar, embora preocupado com o fenômeno da morte da pintura, faz uma observação que nos cabe aqui. Escrevendo sobre a obra de Duchamps e o impasse entre o “ready-made” e o artesanato, relata que muitos vanguardistas, ao abandonar a pintura, que é uma linguagem artística constituída, na área da pintura, caíram no artesanal, que é uma pré-linguagem e remete ao passado e não ao futuro. A citação encontra-se no artigo “Nem toda vanguarda aponta para o futuro”. In: Revista Continente Multicultural. Recife. Ano II, n 23, nov. 2002. pgs 54-55.

segunda-feira, 26 de março de 2018

A máquina do mundo, Carlos Drummond de Andrade

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E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,

assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
"O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”

As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar,
na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade:

e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.

Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;

como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.
(do livro Claro Enigma)