quarta-feira, 9 de outubro de 2024

O ano da revolta dos desvalidos, crítica de Adelto Gonçalves

  






  I

    Depois de publicar Vieira no Maranhão (Rio de Janeiro, 7Letras, 2019) e Balaiada (Rio de Janeiro, 7Letras, 2021), ambos ambientados na época colonial no Maranhão, Ronaldo Costa Fernandes volta a exercitar o gênero romance histórico e retoma São Luís como cenário em O ano da revolta dos desvalidos (Rio de Janeiro, 7Letras, 2024), em que traça uma história de amor paternal por uma filha, em meio aos tempos turbulentos da revolta liderada por Manuel Bequimão contra o jugo português em 1685.

    Como se sabe, em sua primeira experiência no gênero, Fernandes criou, com absoluto êxito, um gênero híbrido de crônica e romance, misturando história à ficção. Sem pretender o foro de biografia do padre António Vieira (1608-1697), esta obra procurou reconstituir a passagem de oito anos, de 1653 a 1661, do missionário pelo Maranhão, onde sua voz ecoou por várias vezes no púlpito das igrejas para condenar o regime de escravidão que os poderosos do local impunham aos indígenas. Nela, o autor tratou também de recuperar os embates que o religioso teve de enfrentar contra a elite local, os chamados homens-bons, ou seja, os proprietários de terras, que insistiam em fazer do Estado uma extensão de suas casas senhoriais, tal como ainda o fazem hoje muitos de seus pósteros.

    Já em Balaiada, seu oitavo romance, procurou evocar uma revolta histórica por melhores condições de vida que envolveu escravos e outros segmentos oprimidos e eclodiu na província do Maranhão, entre os anos de 1838 e 1841, tendo sido um movimento eminentemente popular contra os grandes proprietários agrários da região. Recebeu esse nome devido ao apelido de uma das principais lideranças do movimento, Manoel Francisco dos Anjos Ferreira, o Balaio, que tinha esse apelido porque fazia cestos com as mãos.

    Desta vez, com a mesma preocupação de resgatar a linguagem própria da época e fazer a reconstrução daquele tempo, o autor procura envolver o leitor numa trama de ficção com muitos elementos da realidade e da formação do povo maranhense. O principal personagem, o comerciante José Quirino é um dos revolucionários que seguiam Manuel Beckman (1630-1685), o Bequimão, filho de pai alemão e mãe portuguesa, que viera de Portugal para aventurar-se no Maranhão, tornando-se grande senhor de engenho, e que haveria de entrar em divergências com grandes proprietários locais e com os religiosos da Companhia de Jesus a respeito da escravização dos indígenas.

    Quirino, porém, não é um colono só preocupado com vendas e números. Em Aveiro, onde nascera e se criara, cultivara algumas leituras e, em São Luís, tivera acesso à biblioteca dos jesuítas e às “palavras de Vieira sobre Sêneca e Klépero”, embora se mantivesse em silêncio para “não passar por esnobe para uns, soberbo para outros, desmiolado para muitos, perigoso para a guarda pretoriana do governador”. Sabe-se disso porque o romance é intercalado por anotações que teriam sido deixadas por Quirino.

II

    A obra, porém, enfoca mais a luta de Quirino, que fora abandonado por Teodora, sua mulher, para dar à filha Maria um futuro promissor, já que ela seria moça pura e ingênua e que, hoje, provavelmente, haveria de ser rotulada como autista. Bela, “uma criança em corpo de mulher”, Maria se apaixona por Abelardo, filho de um comerciante como Quirino, mas os pais, em comum acordo, negam-se a autorizar o matrimônio, já que ambos teriam um desenvolvimento mental incompleto ou retardado, ou seja, seriam desvalidos, o termo mais usual à época.  Abelardo, filho de um latoeiro, segundo o próprio pai, não servia para nada, “apenas para caminhar pela cidade com as canecas, candeeiros e objetos de lata e flandres presos num pedaço de cabo de vassoura”, a vender bugigangas.

    Apaixonados e revoltados com a intransigência dos pais, Maria e Abelardo fugiriam para as matas e nunca mais seriam encontrados. E a culpa por não ter permitido que os dois se casassem acaba por transformar a vida de Quirino, que, repudiado pela mulher que o chamava de “inútil”, viria a se afundar num estado de depressão que o levaria a embarcar, quatro anos depois, numa nau para o reino, onde tornar-se-ia padre inaciano.

    Ficaria para trás uma vivência atribulada, em que cumpria votos de pobreza e andava pelas ruas de São Luís “vestido num camisolão, de barba grande e um cajado como um apóstolo dos tempos de milagre”. Retornaria ao mesmo convento em Lisboa onde fora seminarista e de onde partira para a colônia, sempre vivendo recluso e com medo de ser assolado pela “maldição de insanidade que acreditava ter perseguido sua família”.

    Como já se pode ver por aqui, trata-se de uma narrativa rica e envolvente em que o autor, com rara habilidade estilística, conduz o leitor por uma época que prenunciava a separação da colônia americana, já que tem como pano de fundo uma revolta liderada por grandes proprietários de terra contra o estanco, o monopólio promovido pela Companhia Geral de Comércio do Maranhão, ou seja, “só se compra o que vem de Portugal e só se vende para a companhia”.

    Uma rebelião que seria debelada com a chegada de Gomes Freire de Andrade (1636-1702), nomeado capitão-general e governador da capitania, com a condenação de Bequimão à morte por enforcamento. Embora a História considere essa uma revolta popular, fica claro que o que estava por trás, como na maioria das vezes, era o interesse das classes dominantes. E os pobres e os remediados, mais uma vez, teriam sido usados como massa de manobra.

 Foto: Associação Nacional de Escritores (ANE)

domingo, 6 de outubro de 2024

O instigante mosaico de "Vale das ameixas", de Hugo Almeida

 











Conheço a produção literária de Hugo Almeida desde seus primeiros livros de contos nos anos 1970/80 até o agora romance Vale das Ameixas (Editora Sinete, São Paulo, 2024). Durante a trajetória de 15 livros Hugo tem sido fiel a si mesmo. Jornalista, primeiro em Belo Horizonte, mais tarde e definitivamente em São Paulo, doutor em literatura brasileira pela USP, ele sempre perseguiu a experimentação, tendo por influência ou confluência a presença estética de Osman Lins (1924-1978). Vale citar seus escritos, conferências e organização de livros sobre o escritor pernambucano porque o mestre de Avalovara está presente neste romance sobre o qual agora escrevo, principalmente na intertextualidade de A rainha dos cárceres da Grécia com o labirinto previdenciário e sua personagem Julia Enone.

Em 1988, Hugo Almeida ganhou o importante e prestigiado prêmio da Bienal Nestlé com o romance Mil corações solitários. Agora retorna ao gênero com um romance vigoroso. Vale das ameixas é composto em forma de mosaicos e várias vozes. O personagem central é Harley ou Timo, um polonês exilado no Brasil, que ganhou a vida como professor. Aposentado e envelhecido, o personagem revisita seus amores, encontros e desencontros, a vida dele amorosa com as mulheres de sua vida (Núbia, Léa, Biela, Laura..) e a vida das mulheres, cada qual com seus destinos sem a presença dele, desde uma atriz, uma guerrilheira política, uma bailarina e várias outras.

Como o livro é um composto de recortes, o leitor terá de montar a linearidade que o romance não expõe à leitura. Com muitas menções a figuras artísticas polonesas como Chopin, Grotowski, Wajda, Krajcberg, Polanski, Gombrowicz, Ziembinski, o romance cresce em densidade com essas lembranças e historietas de grandes escritores, músicos, cineastas, artistas plásticos etc. que povoam o livro.



Neste tipo de narrativa errática (não há aqui neste adjetivo nenhuma conotação negativa, pelo contrário), fragmentária, o mais comum – como aqui ocorre – é não haver uma linearidade que conduza a uma tensão do tipo apresentação, problema, clímax, anticlímax. São essas partes do mosaico que vão compondo o painel final da vida de Timo, suas mulheres, seus filhos (um ou dois?), suas dores, seus amores, suas alegrias. O interesse é a composição da grande tapeçaria literária e não um suspense ou uma história com princípio, meio e fim. Neste sentido, como no Jogo da Amarelinha, de Cortázar, o romance de Hugo Almeida pode ser lido de trás para frente, de frente para trás, ou começar de qualquer fragmento. Este é um dos virtuosismos de Hugo Almeida em seu Vale das ameixas.

O personagem principal é um sujeito solitário, vivendo de recordações de amores fugidios de outras épocas, algumas foram suas alunas e ele exerceu sua influência intelectual. É um exilado do nazismo, com lembranças da sua Polônia natal. Não é um primor de virtude, embora quase todas as mulheres de sua vida o tenham em boa conta (a psicóloga Amanda é exceção). Não poderia deixar de citar, porque a mim me toca muito particularmente, a personagem d. Benedita, que apareceu primeiramente num romance meu, O viúvo, e que Hugo a fez morar com o polonês, dando conta ao leitor que eu ao ir para a Venezuela a deixara com Harley. É uma personagem pela qual tenho muito carinho e Hugo a reconstrói de maneira admirável, dando outros toques que a tornaram mais humana. Aí está, além da beleza da amizade que nos une há quase cinquenta anos, a experiência da intertextualidade como muito bem aponta o autor.

Nessa colagem densa, nesse bricabraque narrativo, Hugo Almeida constrói com seu Vale das ameixas, depois de uma larga e profícua trajetória, um dos romances mais instigantes dos nossos dias. É o ápice de uma carreira construída com zelo, afinco e perseverança.