I
Depois de publicar Vieira no Maranhão (Rio de Janeiro, 7Letras, 2019) e Balaiada (Rio de Janeiro, 7Letras, 2021), ambos ambientados na época colonial no Maranhão, Ronaldo Costa Fernandes volta a exercitar o gênero romance histórico e retoma São Luís como cenário em O ano da revolta dos desvalidos (Rio de Janeiro, 7Letras, 2024), em que traça uma história de amor paternal por uma filha, em meio aos tempos turbulentos da revolta liderada por Manuel Bequimão contra o jugo português em 1685.
Como se sabe, em sua primeira experiência no gênero, Fernandes criou, com absoluto êxito, um gênero híbrido de crônica e romance, misturando história à ficção. Sem pretender o foro de biografia do padre António Vieira (1608-1697), esta obra procurou reconstituir a passagem de oito anos, de 1653 a 1661, do missionário pelo Maranhão, onde sua voz ecoou por várias vezes no púlpito das igrejas para condenar o regime de escravidão que os poderosos do local impunham aos indígenas. Nela, o autor tratou também de recuperar os embates que o religioso teve de enfrentar contra a elite local, os chamados homens-bons, ou seja, os proprietários de terras, que insistiam em fazer do Estado uma extensão de suas casas senhoriais, tal como ainda o fazem hoje muitos de seus pósteros.
Já em Balaiada, seu oitavo romance, procurou evocar uma revolta histórica por melhores condições de vida que envolveu escravos e outros segmentos oprimidos e eclodiu na província do Maranhão, entre os anos de 1838 e 1841, tendo sido um movimento eminentemente popular contra os grandes proprietários agrários da região. Recebeu esse nome devido ao apelido de uma das principais lideranças do movimento, Manoel Francisco dos Anjos Ferreira, o Balaio, que tinha esse apelido porque fazia cestos com as mãos.
Desta vez, com a mesma preocupação de resgatar a linguagem própria da época e fazer a reconstrução daquele tempo, o autor procura envolver o leitor numa trama de ficção com muitos elementos da realidade e da formação do povo maranhense. O principal personagem, o comerciante José Quirino é um dos revolucionários que seguiam Manuel Beckman (1630-1685), o Bequimão, filho de pai alemão e mãe portuguesa, que viera de Portugal para aventurar-se no Maranhão, tornando-se grande senhor de engenho, e que haveria de entrar em divergências com grandes proprietários locais e com os religiosos da Companhia de Jesus a respeito da escravização dos indígenas.
Quirino, porém, não é um colono só preocupado com vendas e números. Em Aveiro, onde nascera e se criara, cultivara algumas leituras e, em São Luís, tivera acesso à biblioteca dos jesuítas e às “palavras de Vieira sobre Sêneca e Klépero”, embora se mantivesse em silêncio para “não passar por esnobe para uns, soberbo para outros, desmiolado para muitos, perigoso para a guarda pretoriana do governador”. Sabe-se disso porque o romance é intercalado por anotações que teriam sido deixadas por Quirino.
II
A obra, porém, enfoca mais a luta de Quirino, que fora abandonado por Teodora, sua mulher, para dar à filha Maria um futuro promissor, já que ela seria moça pura e ingênua e que, hoje, provavelmente, haveria de ser rotulada como autista. Bela, “uma criança em corpo de mulher”, Maria se apaixona por Abelardo, filho de um comerciante como Quirino, mas os pais, em comum acordo, negam-se a autorizar o matrimônio, já que ambos teriam um desenvolvimento mental incompleto ou retardado, ou seja, seriam desvalidos, o termo mais usual à época. Abelardo, filho de um latoeiro, segundo o próprio pai, não servia para nada, “apenas para caminhar pela cidade com as canecas, candeeiros e objetos de lata e flandres presos num pedaço de cabo de vassoura”, a vender bugigangas.
Apaixonados e revoltados com a intransigência dos pais, Maria e Abelardo fugiriam para as matas e nunca mais seriam encontrados. E a culpa por não ter permitido que os dois se casassem acaba por transformar a vida de Quirino, que, repudiado pela mulher que o chamava de “inútil”, viria a se afundar num estado de depressão que o levaria a embarcar, quatro anos depois, numa nau para o reino, onde tornar-se-ia padre inaciano.
Ficaria para trás uma vivência atribulada, em que cumpria votos de pobreza e andava pelas ruas de São Luís “vestido num camisolão, de barba grande e um cajado como um apóstolo dos tempos de milagre”. Retornaria ao mesmo convento em Lisboa onde fora seminarista e de onde partira para a colônia, sempre vivendo recluso e com medo de ser assolado pela “maldição de insanidade que acreditava ter perseguido sua família”.
Como já se pode ver por aqui, trata-se de uma narrativa rica e envolvente em que o autor, com rara habilidade estilística, conduz o leitor por uma época que prenunciava a separação da colônia americana, já que tem como pano de fundo uma revolta liderada por grandes proprietários de terra contra o estanco, o monopólio promovido pela Companhia Geral de Comércio do Maranhão, ou seja, “só se compra o que vem de Portugal e só se vende para a companhia”.
Uma rebelião que seria debelada com a chegada de Gomes Freire de Andrade (1636-1702), nomeado capitão-general e governador da capitania, com a condenação de Bequimão à morte por enforcamento. Embora a História considere essa uma revolta popular, fica claro que o que estava por trás, como na maioria das vezes, era o interesse das classes dominantes. E os pobres e os remediados, mais uma vez, teriam sido usados como massa de manobra.
Foto: Associação Nacional de Escritores (ANE)