Há
de se fazer uma diferenciação entre civilização e cidade. O poeta apreende a
cidade através da civilização. A cidade é um ente concreto, a civilização um
estado de existência. A cidade propicia que a civilização, ou seja, a
circulação de bens culturais, possa acontecer nela, cidade. Não entremos em
considerações sobre a desumanização das cidades grandes. Trata-se aqui de ver
como a civilização permeia a cidade e a cidade aconchega, acolhe, permite que o
poeta seja possuidor de um bem cultural, a civilização, que a própria cidade
lhe fornecerá. Porque a cidade é o grande receptáculo da civilização. Não só
continente da civilização como também o caldeirão onde a civilização e a
cultura podem ser alimentadas, projetadas, criadas e germinadas.
A
cidade desumanizada também vai afetar o poeta. O convívio com a decadência da
cidade, seu lado sórdido, alimentará solidão, medo e desconforto que também
serão elementos de tensão produtiva. Mas esta “cidade perversa” só poderá ser
apreendida de modo criativo e transformador caso a civilização, cujo veículo é
a cidade, possa fornecer os instrumentos para que o artista transforme, por
exemplo, violência em produção poética. A cidade em si mesma, conjunto
urbanístico e arquitetônico, não tem grande influência sobre a produção
poética. Deixemos bem claro: não queremos dizer que o meio, a cidade, não atue
sobre a produção poética. A cidade só é elemento frutificador na poesia quando
ela passa pelo dado da civilização. Mesmo que o poeta seja ingênuo ou pouco
culto, a apreensão da civilização se dará através de sua sensibilidade. Outros
buscarão mecanismos convencionais de troca cultural como a universidade, visita
a galerias, acesso a publicações ou atos e iniciativas congêneres.
O
grande exemplo entre cidade e civilização está na relação entre Fernando Pessoa
e Mário de Sá-Carneiro. Mário vivia em Paris, na grande cidade, coração
cultural do mundo, abrigo das grandes vanguardas. Pessoa vivia na Lisboa
provinciana, no dizer do próprio João Gaspar Simões.[1]
Ora, são duas grandes capitais europeias, mas significativamente diferentes no
tempo em que viviam. Paris esbanjava modernidade, Lisboa estava presa ao passado,
até e principalmente, que é o que nos interessa aqui, em literatura. Antes que
Sá-Carneiro influencie Pessoa, ou seja, antes que Paris influencie Lisboa, é
Fernando Pessoa que é o mestre de Sá-Carneiro. Seguramente, sem a orientação de
Pessoa, segundo testemunho do próprio Sá-Carneiro, o poeta de Dispersão não seria o grande poeta da
literatura portuguesa se não tivesse seguido os conselhos do amigo dois anos
mais velho Fernando Pessoa. O que acontecia então? Acontecia que Fernando
Pessoa entrara, através da grande, mas provinciana cidade de Lisboa (e até
mesmo antes na provinciana Durban), em contato com a civilização. A estada de
Sá-Carneiro em Paris era uma estada física. Embora Sá-Carneiro tenha falado e
comentado com Fernando Pessoa sobre alguns movimentos vanguardistas do
princípio do século que estavam acontecendo em Paris, esta mesma cidade que
Sá-Carneiro vivia e que o deslumbrava e que, por deslumbrá-lo, dialeticamente,
via Fernando Pessoa o modo provinciano de Sá-Carneiro conviver com a cidade,
esta mesma cidade, dizíamos, dará oportunidade a Sá-Carneiro entrar em contato
com a cidade física, mas não com a civilização de Paris. Foi preciso que um
poeta que nunca deixou Portugal, pois Fernando Pessoa veio da África do Sul mas
nunca esteve em Londres ou Paris, foi preciso que o poeta de Mensagem, via civilização, desse as
coordenadas poéticas para o poeta suicida que vivia nesta época, como
apontamos, no olho do furacão cultural das vanguardas. Então façamos a
distinção entre a cidade civilização e a cidade física. A primeira leva o poeta
a transformações; a segunda é apenas uma moldura, um pano de fundo. A segunda,
a cidade cenográfica, apenas transformará o poeta se este deixar-se comunicar e
contaminar pela cidade civilização, ou seja, pela civilização que a cidade
física lhe facilita.
Um
dos casos curiosos é o de Frederico Garcia Lorca. Poeta cigano, cantor das
províncias andaluzas, de ritmo gitano, de romanceiros fáceis e musicais, quando
se encontra com a megalópole Nova York é tomado pelo horror. As imagens
surreais, absurdas, fantásticas, doloridas e exageradas como a morte por dia de
não sei quantos mil cabritos para alimentar os habitantes de Manhattan o
impressionam. Para alguns sua poesia se transforma, amadurece. Passa a incluir
no seu repertório linguagem e imagem universais e incorpora definitivamente o
surrealismo. Mas Lorca já tinha entrado em contato com a civilização em Madri,
na mesma Madri provinciana que lembrava a Lisboa de Fernando Pessoa. Ele mesmo
dissera que abominava ser conhecido apenas como poeta do Romancero Gitano porque aquele tipo de poesia e temática o
caracterizava como um artista rústico, sem instrução, intuitivo, o que era
justamente o contrário. Lorca era culto, refinado, cosmopolita, inquieto
intelectualmente. De qualquer modo, o impacto que Nova York lhe causa e que
resulta no livro Um poeta em Nova York,
é de um desatino, um forte impacto, uma surpresa e desconcerto. Estaria o
companheiro dos surrealistas espanhóis como Luís Buñuel (que o aconselhara a
deixar a temática cigana) e do monarquista Salvador Dalí confrontando-se com a
civilização? Não, a resposta é não. Naquele instante, Lorca entrava em contato
com a megalópole física, com os números exagerados de animais mortos para
alimentar os nova-iorquinos, com os arranha-céus, as grandes avenidas, enfim,
com a grandiosidade da maior cidade moderna do mundo. Mais tarde, conhecendo
melhor a cidade, os negros, Harlem, etc., Lorca poderá mostrar um lado mais
humano da cidade. O contato com a civilização se dará no encontro com
intelectuais por um lado e por outro o conhecimento da situação do negro
norte-americano, o Harlem, e outras aventuras do gênero. Se por um lado o livro
mostra o deslumbramento do provinciano, por outro mostra a conquista estética e
transformação que o artista fará a partir do contato com a civilização na
grande cidade.
A
questão da civilização e ruína, ruína aqui entendida como a degradação da
cidade. O confronto entre o mundo da cidade civilizada e o mundo bárbaro da
cidade agressiva e violenta vai gerar no poeta uma consciência não de cidadania
– esta, pelo contrário é fragilizada – mas uma consciência de orfandade.
Poderiam argumentar que este confronto não apenas coloca o poeta encurralado em
sua particular civilização como também degrada a todos. Obviamente não
poderíamos eliminar o poeta da polis
e a polis é a cidade de todos. Logo o
fenômeno certamente se estende a todos os moradores da cidade civilizada
acossada pela cidade bárbara. Contudo, o poeta irá transformar a barbárie da
cidade civilizada em matéria-prima para sua obra e a sua forma de apresentação
dialética desse confronto não necessariamente acontecerá de maneira explícita
ou recriminatória. Para mim não me interessam os índices – no sentido da
linguagem de Pierce – em que são citados fatos de violência da cidade, mas a
maneira como ela sub-repticiamente incluiu-se no poema, embora a temática por
vezes esteja longe de falar de violência. Neste sentido, o poeta pode estar
falando de tecnologia, ambição, angústia ou amor e seu poema conter a tensão
social e a dialética cidade x violência. Talvez este seja o modo mais difícil
de perceber a metáfora da violência dentro do poema, mas com certeza é a mais
rica e intrigante para o crítico. Até mesmo porque se o poema já chegou a este
nível de elaboração é porque sua poesia é transcendente e não apenas relato
sociológico da degradação.
Por
fim a questão do poeta na pós-modernidade. A cidade é o lugar privilegiado da
dispersão pós-moderna. O lugar que é o não-lugar. É na cidade que o poeta
exercita a sua capacidade de desconfiar da cidade e da palavra que a nomeia, de
buscar a margem e tornar o que é sombra e resto o centro que por sua vez e por
atuação dialética é seu oposto, a periferia. Só a cidade permite a
multiplicação do múltiplo, a singularidade do singular, a expressão
caleidoscópica dos guetos, das etnias, das reivindicações de um sujeito mutante
e fluido. Apreender a cidade não é mais apreender a paisagem física ou,
melancólica e nostalgicamente, lembrar-se da rua Lopes Chaves, mas enveredar
por um mapa do disforme, uma topografia da ausência, um espaço vazio onde cabem
todas as supostas verdades e as muitas ironias urbanas. O poeta está na cidade
pós-moderna como a cidade pós-moderna está nele: fragmentariamente, subjetivamente,
autoralmente, moral, étnica, marginal, excêntrica, paródica, fantasmal e
alegoricamente. A cidade é uma poesia em si mesma, uma poesia não-concreta, uma
poesia de um mundo virtual. O poeta hoje está em simbiose com a cidade que o
ameaça e o traga, o seduz e o faz vítima da trama da pós-modernidade. Mais do
que simbioticamente preso à cidade, o poeta não é mais aquele que somente acusa
a cidade, mas também aquele que constrói o imaginário das cidades.
Bibliografia
LORCA,
Federico García. Obras completas.
Madrid: Aguilar,
HALL,
Stuart. Identidades culturais na
pós-modernidade. Rio:DP&A,1997.
PESSOA,
Fernando. Obra poética. Rio: Aguilar,
1969.
SIMÕES,
João Gaspar. Vida e obra de Fernando
Pessoa. 6 ed. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1991.
(do livro A cidade na literatura e outros ensaios. São Luís, Ed. Academia Maranhense de Letras, 2016)
[1]
Aqui valeria explicar a distinção entre grandes
cidades e cultura feita por João
Gaspar Simões justamente quando fala da relação dos dois poetas. Esta
observação de João Gaspar Simões é que foi o ponto de partida para teorizar
sobre a distinção: cidade x civilização. João Gaspar Simões, em seu livro Vida e obra de Fernando Pessoa, afirma que “cultura é do domínio espiritual”, que
Pessoa tinha cultura, mas não acesso às grandes cidades, “a civilização é
diferente de cultura”. Para João Gaspar Simões, Pessoa era homem culto, mas provinciano e Pessoa mentira, no disfarce
heterônimo de Álvaro de Campos, “em sua fase civilizada, no rompante europeu,
ultracivilizado, fumiste, snob do
dinamismo moderno, da força, da celeridade, da vertigem, do esplendor material
das grandes metrópoles ou da civilização mecânica.” ( p. 270 ) Logo, João
Gaspar Simões opõe cultura x civilização, enquanto preferi trabalhar com a
oposição cidade x civilização, colocando nesta última todo o peso da cultura.
Observe-se contudo que a pretensão de Simões não era tratar do assunto O poeta e a cidade, tema específico
deste artigo.