sábado, 15 de agosto de 2020

As putas, poema RCF






Os trapos da garoa
não cobrem nem despem
o amor andarilho das putas.
Que caminho seguem as pernas
                               redundantes
                               das putas?
A vitrine holandesa das gôndolas das calçadas.
Só a noite é pudica,
  com seu véu de sombras.
Os postes amarelando a noite.
Os carros passam trotando os pneus
As mulheres, espantalhos na plantação das calçadas,
atraem os corvos de patas redondas.
A perspectiva triste
dos mitos assombrados.
A língua tremelicando,
obscena, ofídica.
A noite é suave
– rude são os punhais.
Os punhais dos nervos excitados
no veículo solitário.
Os punhais de dois corpos
na obrigação hormonal.
Estreita a lua na vaguidão das árvores.
No bosque, drops e gilete:
a vida cortante como o vento das esquinas.
Subir uma escada sem degraus,
a cada lance um passo atrás.
Escuro e atônito, o medo lajeta nas têmporas.
Ri de si mesmo – o medo não se esvai,
é obsessivo e circular como sangue nas veias.
Não é sorriso. O perigo de falar com lâminas na boca.
Afiado é o gozo.
E os quatro gumes na arma branca das braguilhas
Em preto e branco, na noite,
as cores baças escondem
as estrias da vida.
O medo é melado.
Todos os quartos se movem como automóveis
e o gemido buzina, vaca vulgar,
a vida escorre entre as pernas.
Por fim é dia.
A claridade fixa como película
o desgaste noturno.
De dia não há nuanças e o passageiro
desaparece sem dar lugar ao eterno.



(Estrangeiro. Rio: 7Letras, 1997)


 

quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Barcelona, poema RCF




Sento-me no café,
a placidez da praça com seus pombos,
a inexatidão do foco das nuvens,
o amargo do adoçante,
e a canção pedinte de um acordeão.
Percebo que não estou no estrangeiro
nem que falam em língua catalã,
aí compreendo que sempre estive sentado num bar
e que a multidão passa, indiferente e pedestre.

Na cidade velha, Cervantes
morou de frente pro mar
– quem sabe não chegou a pensar
em Dom Quixote como marinheiro?
Ruas tortas de Miró e Gaudí
amolecem as molduras das janelas
fechadas para se protegerem
de tanto peixe e dentes solares.
O mapa de papel nunca existe
antes de eu desenhá-lo
com o papel mais fino da memória
e estrias de pés alucinados.
Neste café, estive moído
cada grão de pesar
esmagado na trituração
do bairro velho que me habita.



(A máquina das mãos, 2009)
 
imagem retirada da internet: gaudí

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

A máquina das palavras, poema RCF


Resultado de imagem para vivian maier

Quem move as engrenagens da palavra?
Que máquina - moenda ou roldana -
Suspende, fabrica, mói ou lavra
O nascer da rara traquitana?

Não tem peso, volume ou largura.
Esconso e subterrâneo qual minhoca,
Afunda, se alegra ou amargura
Quem é alvo ou dardo da engenhoca.

A máquina é falsa relojoaria:
Quartzo do nome, vírgula da corda,
Pura mecânica da avaria.

Sob a bigorna do verbo, forja
Meu único medo: ser ou estar passivo
Que é a forma de morrer estando vivo.


(do livro Andarilho, Ed. 7Letras, Rio, 2000)



imagem retirada da internet: Igor K Marques