I
Essas sombras que nadam nas águas
por que não afundam?
E por que não se molham,
se as sombras são líquidas,
se banham de escuro?
As sombras do fundo da água
são sombras molhadas ou se mantêm
em sua secura de manchas obscuras,
tortas, inexatas, peixes sem barbatanas,
ouriços sem espinhos?
Que mundo habitam as sombras marítimas?
As sombras secas das águas paradas,
as sombras enxutas e delgadas dos
líquidos já por si sombra de si mesmo,
submergem num mundo
de extravios
mórbidos, angustiados e oxidantes,
desprovidos de entranhas e entardeceres,
exibindo sua atmosfera
trânsfuga, mergulhando homens
ausentes em sua morfologia
de traços perdidos e passos
tristes.
II
Deus, dá-me uma sombra
que não esconda, mas
revele
o escuro que anda em mim.
Há sombras que germinam
na luz;
outras sobrevivem sem que
nenhuma luz
faça parir seu duplo de
silhueta.
Estas existem não como
projeção,
mas a sombra em si
como se a sombra fosse
projeção
de uma sombra imaginária
de uma luz suposta e
irreal.
Há sombras que nascem
sombras
e sombras morrerão.
O sonho também é uma
sombra
cuja luz e projeção
vivem o nonsense da escuridão.
As portas das sombras
estão sempre fechadas.
As escadas das sombras
não descem nem sobem.
Estão prontas para o
abismo.
Um abismo que pode ser
não alcançar
o teto do fundo do poço.
Nenhuma sombra é igual a
outra.
Há sombra mentira.
Há sombra que sobe pelo
homem
e sombra que não é falta
de luz
nem a projeção de um
homem
que já é sombra de si
mesmo.
Há sombra enxuta,
há sombra ausente
e sombra de sombra.
Todos nascem do útero da
noite,
mesmo quando de dia,
nada é igual,
por isso o espelho da
sombra
é uma sombra invertida,
mas nunca a mesma e única
sombra do mal.
Eis a piscina de
escombros:
Ele nada,
Tu nadas,
Ele nada,
Nós nadamos,
Eles nadam.
Ó
Deus, tirai-me dessa
piscina de niilismo.
O coração em sombra
não precisa de luz
para que seja sombra do
coração.
O cego se banha de
escuridão
e supõe um mundo exato
onde não existe o
malefício da dúvida.
As sombras estão nos meus
olhos
ou nas coisas?
Ou melhor, a sombra
é a própria coisa, logo,
a pergunta
é qual a sombra da
sombra?
Esta é a prisão das
sombras
de onde não se pode fugir
nem se abrigar.
A sombra expulsa de seu
útero escuro
a placenta das silhuetas.
Flores de sombras
com seu mal escuro
e pétalas de indizível
negror.
A lua mesmo é uma sombra
que mal ilumina
como um espelho diante de
um espelho
multiplica ao infinito as
sombras.
O que existe depois da
sombra
é um espaço negro em que
cabem
o pesadelo, o medo, o
fulgor negado
e a infinita dor das
sombras.
A sombra é uma dor que
não se expande.
E por ser sombra
naufraga no escuro
que é a água que a mantém
sobre a superfície da
sombra.