sábado, 17 de abril de 2021

Indústria do amargo-poema RCF


Otto Dix and the New Objectivity – Kunstsammlungen Chemnitz

A indústria do amargo desassossego,
a patente do medo, a geringonça

movendo as vísceras dentadas,
a fábrica de desacertos mostra o intestino,
manufatura de mercadoria e dejeto,
o lodo e o pêndulo como destino.

Eis o lodo, barro inútil para fazer gente,
massa fecunda para fabricar o desengano.

Agora a outra prensa do nada:
o pêndulo: que é o mesmo e seu avesso,
ora num lugar, ora em outro,
sem nunca sair de onde está;

preso de si, são dois em um,
um que se faz dois,
para iludir a salmoura da matéria.






(do livro Eterno Passageiro, Ed. Varanda, Brasília, 2004)



quarta-feira, 14 de abril de 2021

O caminho problemático, poema RCF





o Guesa teme a estação dos mausoléus
– sem dia, sem noite –
que sai da caixa adubada
do ar condicionado
e anda no chão
de seca contínua
a enorme relva
aparada de granito

estranha a areia movediça
das escadas rolantes
o tapete
           mágico
feito de ferro, o mundo
          fantástico
das coisas que se movem
sem sair do lugar

vê as casas de vidro
das lojas e pensa
                          na cidade liliputiana
de Amsterdam
as prostitutas na vitrine das casas
manequins humanos
museu de cera vivo
                       ó mundo plástico da matéria

o Guesa percorre
os labirintos de vidro

vê desmaiarem-se
                 as falésias
das prateleiras
feitas
                da tabatinga das caixas

o bazar persa abole a lei da física

dois corpos
podem ocupar o mesmo espaço:
o da realidade
e o corpo do desejo

as máquinas
                cospem
latas de refrigerantes
                bichos
descomendo alumínio

as praças não são circulares
e os círculos contêm arestas

o Guesa
que conheceu as alturas dos Andes
o inferno de Wall Street, engenheiro
de minas, comedor de pedras da Quinta
da Vitória, nunca tinha visto
                                   o ambulatório
das almas fosforescentes

o Guesa errante
lê o grande livro
de vidro
os delírios das vírgulas
no globo de vidrilhos

o inferno
não é mau, diz o Guesa,
mas apenas
                  um caminho problemático

domingo, 11 de abril de 2021

Os traços perdidos do homem ou Escola de sombras, de Matadouro de vozes




 Resultado de imagem para van gogh









I



Essas sombras que nadam nas águas

por que não afundam?

E por que não se molham,

se as sombras são líquidas,

se banham de escuro?

As sombras do fundo da água

são sombras molhadas ou se mantêm

em sua secura de manchas obscuras,

tortas, inexatas, peixes sem barbatanas,

ouriços sem espinhos?

Que mundo habitam as sombras marítimas?

As sombras secas das águas paradas,

as sombras enxutas e delgadas dos

líquidos já por si sombra de si mesmo,

submergem num mundo

                                                              de extravios

mórbidos, angustiados e oxidantes,

desprovidos de entranhas e entardeceres,

exibindo sua atmosfera

trânsfuga, mergulhando homens

ausentes em sua morfologia

de traços perdidos e passos tristes.               









II



Deus, dá-me uma sombra

que não esconda, mas revele

o escuro que anda em mim.

Há sombras que germinam na luz;

outras sobrevivem sem que nenhuma luz

faça parir seu duplo de silhueta.

Estas existem não como projeção,

mas a sombra em si

como se a sombra fosse projeção

de uma sombra imaginária

de uma luz suposta e irreal.

Há sombras que nascem sombras

e sombras morrerão.

O sonho também é uma sombra

cuja luz e projeção

vivem o nonsense da escuridão.

As portas das sombras estão sempre fechadas.

As escadas das sombras não descem nem sobem.

Estão prontas para o abismo.

Um abismo que pode ser não alcançar

o teto do fundo do poço.

Nenhuma sombra é igual a outra.        

Há sombra mentira.

Há sombra que sobe pelo homem

e sombra que não é falta de luz

nem a projeção de um homem

que já é sombra de si mesmo.

Há sombra enxuta,

há sombra ausente

e sombra de sombra.

Todos nascem do útero da noite,

mesmo quando de dia,

nada é igual,

por isso o espelho da sombra

é uma sombra invertida,

mas nunca a mesma e única

sombra do mal.

Eis a piscina de escombros:

Ele nada,

Tu nadas,

Ele nada,

Nós nadamos,

Eles nadam.

Ó

Deus, tirai-me dessa piscina de niilismo.

O coração em sombra

não precisa de luz

para que seja sombra do coração.

O cego se banha de escuridão

e supõe um mundo exato

onde não existe o malefício da dúvida.



As sombras estão nos meus olhos

ou nas coisas?

Ou melhor, a sombra

é a própria coisa, logo, a pergunta

é qual a sombra da sombra?

Esta é a prisão das sombras

de onde não se pode fugir nem se abrigar.

A sombra expulsa de seu útero escuro

a placenta das silhuetas.

Flores de sombras

com seu mal escuro

e pétalas de indizível negror.

A lua mesmo é uma sombra

que mal ilumina

como um espelho diante de um espelho

multiplica ao infinito as sombras.

O que existe depois da sombra

é um espaço negro em que cabem

o pesadelo, o medo, o fulgor negado

e a infinita dor das sombras.

A sombra é uma dor que não se expande.

E por ser sombra

naufraga no escuro

que é a água que a mantém

sobre a superfície da sombra.





TV SENADO, Programa Leituras - Vieira na ilha do Maranhão