sexta-feira, 3 de março de 2023

A felicidade, poema

 


 

 

 


 

 

A felicidade

é uma liberdade portátil,

de bolso,

vertical e anônima.

 

É um choque não elétrico,

uma eletricidade

que corrompe as grades,

os fossos de meios-fios,

que abundam nas manhãs.

 

Nem toda liberdade

traz felicidade,

mas, seu contrário,

um barco que rompe

a correnteza,

o feliz é mais liberto.

 

Tenho uma maçã nas mãos

e meu único cárcere

é a chuva com suas barras de água.

 

Tenho uma volúpia

e meu presídio é meu corpo

que não pode ser dois.

 

Leio um poema de Fernando Pessoa

e as tabacarias e o Estevez desaparecem.

 

Caminho no parque sem pernas

e todas as árvores me abanam.

 

Estou liberto

porque sou feliz.

 

Mas não posso ser feliz

se todos não dançarem

com a mesma orquestra ou banda.

Meu coreto é público

e minha praça é ampla

como um coração alegre.

 

Meu Deus, não me dê

a felicidade dos simples,

dos sensatos e dos mansos,

que deles será o reino das prisões.

 

 

 

 

quinta-feira, 2 de março de 2023

Outro exame médico, poema RCF

 



 

 

 

 

 

Fui ao médico

para medir meu índice de felicidade.

Medi a pressão de trabalho,

tomei contraste para as evanescências,

corri sobre uma plataforma de gente esquiva

e povo sem eira nem beira

no descaso das misérias alheias,

injetaram-me uma dose intramuscular

de desejos atônitos e desvelos inauditos,

uma mistura severa e irregular

de manias e sevícias de leituras,

deram-me os comprimidos

exaustivos e prolongados das insônias

dispersas que se encapsulam em cada letra,

retiraram-me líquidos exóticos

e humores diversos e divergentes,

aplicaram-me doses supimpas

de líquidos humorais e desatinados,

vasculharam-me o pulmão dos

desvalidos,

a fraqueza dos néscios diante dos dias

obscuros, a tintura das palavras que

sedimentam o álcool do desvario

e o espumante das desavenças,

radiografaram meu espanto e desídia,

a incúria dos dias, a incompatibilidade

das horas e as cinzas dos diálogos,

eletrocefalogramaram minha angústia

existencial, meus nervos agoniados

e destemperados na luta descontínua

de prumo e disciplina das estoicas

manhãs de inverno,

cateterizaram o coração das trevas

e uma floresta densa e árdua de

árvores derruídas e amedrontadas

pela devastação de outros homens,

e, por fim, chegaram à conclusão

de que não podem me diagnosticar,

paciente que sou do hospital

das clinicas poéticas

onde vivo internado há décadas

e sem previsão de alta.




domingo, 26 de fevereiro de 2023

Oceonário, poema

 


 

 


 

 

 

De que prata

são feitos os peixes?

Eles me olham

no aquário do meu quarto.

Raramente vou à superfície.

Estou acostumado

aos obstáculos que me ponho

para me sentir no meu habitat.

De vez em quando

olho pelo vidro da janela

e o grande oceonário da cidade

entra em bulício.

Há muitas espécies

de gente e outras naturezas:

o abismo dos prédios.

 

Borbulho muitas imaginações

e escrevo no caderno das horas.

Tudo é fluido e submerso.

Não sei se sou

de escama ou de couro,

se marítimo ou fluvial.

Tudo o que tenho é a dúvida

se há mundo além do meu quarto.

Se falam a minha linguagem piscosa,

se emitem algum som

além de gemidos da espécie.

E se lhes falta ar ao ar livre.

Ou melhor, se lhes faltam guelras

ao ar dito livre das cidades.