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by Igor K Marques |
Na fatura do poema há os que se encaminham pelas veredas do puro hermetismo, fazendo dos versos um modelo de linguagem cifrada, quase inacessível à leitura mediana dos que freqüentam o território da poesia. De outra parte, há os que se valem de um trovar claro, não raro linear, centrado numa transparência cuja visibilidade da mensagem paradoxalmente obstrui o fluxo das ambivalências estéticas. Mas há, também, os que sabem tocar o exato limite entre a falta e o excesso, evitando a obscuridade dita inventiva por um lado e, por outro, a facilidade expressiva, logrando, assim, na cartografia poética, o equilibrado encontro de forma e fundo, de linguagem e conteúdo, de estilo e temática.
Observando os poemas de
A máquina das mãos, do maranhense radicado em Brasília, Ronaldo Costa Fernandes, devo situá-lo nessa terceira via, considerando a persistência deste traço desde os livros anteriores:
Estrangeiro (1997);
Terratreme (1998);
Andarilho (2000) e
Eterno passageiro (2004).
Quero crer que em
A máquina das mãos permanece e se acentua a tensão do olhar poético diante da realidade que o cerca, constituindo-se, portanto, uma captação lírica em que pensamento e emoção, à maneira do melhor Pessoa, se fundem num inconsúltil modo de dizer típico da apreensão sem complacência, cética, irônica, corrosiva... Veja-se bem: a apreensão que se elabora pela percepção poética não prescinde dos recorrentes paradoxos responsáveis, a seu turno, pela desautomatização do olhar; mas, noutra clave, não prescinde da função crítica, ou melhor, metalingüística, perante os artefatos da linguagem, resultando daí todo um processo técnico-literário de desconstrução estilística em perfeita sintonia com a pluralidade das motivações desse discurso poético.
É preciso ver, contudo, que a desconstrução estilística, em Ronaldo Costa Fernandes, não se assemelha aos metaludismos em que tanto se comprazem certos segmentos da poesia brasileira contemporânea. A desclicherização, por exemplo, presente em alguns títulos de poemas (“Tormenta dos caminhos”, “Delito corpo”, ”A bela da noite” e “Um para todos”, entre outros) e em muitos versos, como que corresponde ao desconforto e ao pasmo da visão lírica, de sua vez, atenta a pormenores, a sutilezas, a coisas, fatos e sensações normalmente invisíveis e impensáveis, apesar do nutriente concreto com que se manifesta.
Não são poucos os versos em que essa nota lancinante, esse conflito seminal, essa tensão pulsiva, esse sabor acre e trivial da vida se entremostram em sua lúcida verdade e em sua estética beleza. Vejamos alguns: “(...) As correntezas são outro / caminho de água / dentro da água”, em “Tormenta dos caminhos”; “O único crime que cometi foi a vida”, em “Delito corpo”; “(...) a verdadeira roupa / é a veste dos vermes – são eternos”, em “Demônios de Bosch”; “(...) Luto comigo / que é uma luta desigual”, em “Luto”; “(...) Estou cansado de pisar na minha sombra”, em “Danação”; “Não existe a noite, / apenas o escuro que me ilumina”, em “A bela da noite”; “(...) Minha ordem não tem progresso”, em “Bandeira”; “(...) As margens são Penélope sem tapete”, em “À margem”, e “(...) deve haver um cemitério de fatos, / lá, onde todas as coisas – esquecidas ou não - / perduram e se repetem”, em “La invención de Morel”.
Poderia citar muitos outros versos, pois é denso o repertório conceitual e imagético dessa poesia onde o dado metafísico e transcendente, já assinalado por alguns críticos, não se transmuta em mero exercício aforismático ou filosofante. Os elementos cotidianos da existência, com seus materiais sólidos e concretos, tendem a eliminar o foco da frouxa abstração, tornando-a algo palpável, pesar de pura cosa mentale, de criação simbólica, de procedimento estético. Tantos poemas parecem brotar desse princípio condutor, o que, sem denegar a consciência do fazer, convoca, em especial, a poesia de Ronaldo Costa Fernandes, para o paradigma do dizer. Paradigma que se cristaliza, por exemplo, sobretudo na tonalidade do coloquial-irônico a que se refere T. S. Eliot, falando de Corbiére e Laforgue, com um poeta como o pernambucano Alberto da Cunha Melo e, noutra perspectiva, na linhagem de estilo mesclado entre o grotesco e o sublime de um poeta do naipe de Lêdo Ivo.
Para se ter idéia do que estou pensando, leiam-se, particularmente, os poemas “Poema para o suicida”, “Férias”, Às putas, “Lições”, “Vício de concreto”, “Aluguel”, “Em torno de uma imagem de Derrida antes de sua morte”, “1984”, “Poema para Fernando Mendes Vianna morto”, “Samuel Rawet” e “Rodoviária”. Leia-se principalmente este, “Churrasco”:
Da minha janela, vejo fornos crematórios.
As pequenas chaminés se sucedem como um i sem pingo.
Da fumaça que lhe escapa
há humor de tédio, carne e sal grosso.
Durante a semana os campos de concentração,
que são quintais,
se mantêm vazios e sem prisioneiros
além das árvores inúteis
que parem sem que ninguém as olhe.
Nos fins de semana,
começa o sacrifício de bois e rins
e a fumaça se evola, em suas cólicas
cinzas, a passagem das horas,
o riso grotesco dos feriados,
o ritual de queima e álcool,
a embriaguez da vida
cuja ressaca é a morte.
É este é o modo de compor de Ronaldo Costa Fernandes: lírico, de lirismo irônico, dotado daquele sentimento trágico da vida; lirismo à Drummond, corrosivo. Realista e alusivo em seus símiles surpreendentes, em suas metáforas feitas de aço e luar, em seus contrastes verbais carregados de impurezas e epifanias.
Ficcionista, ensaísta, mas sobretudo poeta, se focarmos o poeta como o demiurgo da linguagem, como o que guarda, vigia e zela suas formas, movimentos e possibilidades, Ronaldo Costa Fernandes tem lugar merecido, fora dos modismos experimentais e do facilitário confessional-subjetivo, isto é, no espaço da genuína poesia brasileira.
Hildeberto Barbosa Filho, natural da Paraíba,
é poeta, professor universitário e crítico literário.