sábado, 8 de junho de 2019

Noite, pura noite, poema de RCF





Não há carteiros na noite.

Feito só de cabeça,
corpo de luz invertebrada,
o sinal de trânsito
pende gota gorda de vermelho.
As putas dão prazer automóvel.
Na numismática das janelas
o único olho aceso do prédio não pisca.
A noite não tem pés só cabeça
o travesseiro feito de vozes interiores,
fronhas inconscientes,
vigílias sonâmbulas.
Inventar a noite:
abolir sua mania de enigma,
a substância silhueta,
eliminar o hábito de sombra.



(do livro Eterno passageiro, Varanda, 2004)


sexta-feira, 7 de junho de 2019

O amor perfeito-poema de Ronaldo Costa Fernandes


Aspiro o amor perfeito
ou aspiro ao amor perfeito?
A gramática das flores
exala anacolutos.
O amor perfeito é uma cabala.
Todas as pétalas do idealismo.
Círculo inexato,
triângulo profundo,
número místico
- flor de misterioso aroma,
de forma labiríntica,
que brota em cada pensamento.

A que ramo pertence o amor perfeito?
Às obsessões que são tubérculos?
À submissão que são plantas aéreas?
Ao desejo que é flor que se abre ao toque?
Ao ramo dos exuberantes como os girassóis?

O amor perfeito é planta de laboratório,
rato vegetal,
cobaia pouco humana,
experiência empírica dos sentidos
ou especulação científica das frustrações?

O amor perfeito não existe em flora alguma.
Viceja apenas na botânica humana,
no húmus das delicadezas da alma,
na suprema aspiração das raízes do ser
que brota a flor mais díspare, metafísica,
desarmoniosa e triste.

O amor perfeito é uma abstração
no jardim secreto dos homens crédulos
na serenidade e no círculo da vida.




(do livro Terratreme. Brasília, Secretaria de Cultura do DF, 1998)

quarta-feira, 5 de junho de 2019

Tempestade da carne, poema Memória dos Porcos


 

O que quero saber é a altura
das tuas vertigens horizontais,
a medida dos teus ais.
O que me desvirtua
é a virtude do teu verbo
porque no princípio,
ao contrário do que se diz,
no princípio era o Verbo
e Deus disse:
Fiat Carne e a carne se fez.


(do livro Memória dos porcos. Rio: 7Letras, 2012)


(foto: rodney smith)

segunda-feira, 3 de junho de 2019

Lua negra, poema RCF




Todos nos vigiam pelas janelas abertas do outono,
Desejo humano, a reticência do convívio, os ossos
Do temperamento vão constituindo seu ofício
De capinar - o tempo é quem capina (ceifa, seca, urina).

Desfia-se, a seda O dedo escorrega sobre a superfície
Da conversa na cozinha - sempre na cozinha - onde
Abrimos a alma fechada como um vidro de conserva
O dedo, dizia eu, corta-se nos dois gumes do diálogo.

Não posso mais resgatar as horas que só são reversíveis
Na ampulheta revezando-se sem nunca findar, cíclico,
De pernas pro ar, embora pouco e arenoso, jeito que nada
solidifica nem com ele nada se constrói.

Não entendes que as horas não existem
Dúvidas vermes redemoinhos tudo isso é invenção
Das minhas máquinas A ansiedade fabricando minhas pílulas
A minha indústria de mim comprimido
Caio no poço do tempo e afogado escalo paredes de limo
Que mais me afunda quanto mais sublimo.

A lua negra assombra a noite de claro ódio
A noite, ela reverbera em mim, agora que tenho nome
Meu nome é abstração que me inventaram
Lua, grita e briga comigo, lua negra
Podem me achar - polícia, oficial de justiça, etecetera e tal
Porque estou em todas as partes onde não existe sim.


( do livro Andarilho, 2000)

imagem retirada da internet: by deni braga

domingo, 2 de junho de 2019

Um homem é muito pouco 22





Resultado de imagem para can dagarslani


            Não gosto de nada eletrônico, as máquinas de jogo me deixam confuso. Minhas mãos são máquinas, meus pés são máquinas, meu corpo todo é máquina. Meus sonhos são meu videogame. Jogo quando durmo e jogo também quando não durmo. Se abstraio a rua e estou no bar do Vicentino posso jogar com a realidade. A realidade é um videogame mais lento e mais perigoso. O mundo mesmo parece a tela de televisão. Soube de um sujeito que morreu de ver tanta televisão. Ficou preso numa cela e não se alimentava. Morreu balbuciando frases de seriados, de desenhos animados, de programa de auditório. A causa mortis foi infarto e falência dos órgãos. Para mim, se eu fosse o médico, colocava como causa mortis overimagem ou assinaria o óbito como falência da realidade. 
            O sujeito morreu de quê?, perguntariam.
            De falência de realidade e infarto de imagem. 
           Já tenho bastante imagem dentro de mim. Não preciso procurar mais imagem fora de mim. Por isso penso em ir para uma cidade do interior e viver lá como matuto. E quando precisar de cidade, aciono minhas imagens de cidade e fico dormindo. O diabo é que ninguém se esconde em cidade do interior. No interior você aparece mais e há muitos olhos nas cidades pequenas. As cidades pequenas devem sofrer de visão exorbitada.
        As pessoas acompanham a vida das outras pessoas, tudo se vê, tudo se confere. Não poderia viver numa cidade que tem mais olhos que habitantes. Alto Mandubinha, população: cinco mil habitantes, número de olhos: vinte mil. A impressão que tenho nas cidades do interior é que até os cachorros e os bois me olham com curiosidade. Um cachorro de rua de cidade grande não dá bola para ninguém. Mas um cachorro de cidade pequena tem mais olhos do que os dois olhos de cachorro. Uma vaca de cidade pequena tem mais olhos que os dois olhos olhando um para um lado e outro para o outro. Todo mundo gostaria de ter olhos que olham um para um lado e um para outro. Todo mundo gostaria de ter mais olhos. De substituir perna quebrada, de trocar de nariz, de ter outra boca e coisas desse tipo. É a mentalidade de videogame que existe no homem mesmo antes de existir videogame.




(do livro Um homem é muito pouco. São Paulo: Nankin, 2010)