sábado, 8 de agosto de 2020

A plantação de equívocos do meu pai, poema RCF

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Nas raízes da mais tenra idade,
vi , no quintal, meu pai
cultivar uma plantação de erros.
Era uma beleza de galhos retorcidos,
mais densos e rasteiros
como são os pensamentos
em forma de tubérculos
que vivem com a cabeça e o corpo
enfiados na terra.
Aqui, um pé atrás de desconfiança.
Ali, as folhas mortas do desinteresse
e os cipós do ciúme.
Eu ainda era muito verde para saber
que a vida também é uma fruta:
uns apodrecem ainda no pé,
outros amadurecem enrolados
na quentura dos jornais
enquanto a maioria
segue o ciclo das frutas:
broto, crescimento e
por fim o cárcere dos dentes.
( do livro O difícil exercício das cinzas. Rio: 7Letras, 2014))

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

O pântano, poema RCF




Não se sabe onde
se inicia a terra
onde termina a água;
sem margens,
o pântano
é mato encharcado,
é água barrenta.

O horizonte do pântano
não é linha de água
como no oceano
ou linha de terra
como nos pampas
– o horizonte do pântano
é o espanto dos ohs
na largueza dos afogados.

Anffíbio, bicho da terra e da água,
o pântano submerge
à imensidão das dubiedades.

O pântano,
roto
como tecido esgarçado,
tem suas margens –
margens que se
movem –
sem bainhas.

Assim, roto e esgarçado,
o pântano sai dos olhos
e encharca o homem que,
sem margens,
submergido à cultura dos bichos,
anfíbio e pastoso,
de horizonte indefinido,
apenas boia e sobrevive
ao temperamento das chuvas.




(do livro Terratreme, Brasília, Secretaria de Cultura do DF, 1998)


imagem retirada da internet:dali

terça-feira, 4 de agosto de 2020

Se eu morresse amanhã, poema RCF


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Se eu morresse amanhã,
minha irmã riria,
e diria que tomei bastante remédio.
Minha mãe não saberia
quem morreu, se o menino louro
ou o adulto atrapalhado.
Meu filho lamentaria
ter-lhe estouvado um encontro.
Se eu morresse amanhã,
só o morto compareceria
por dever de cerimônia.
Se eu morresse amanhã,
não teria que ler mais Álvares de Azevedo
para dar aulas noturnas
e ganhar uns caraminguás.
Se eu morresse amanhã,
ninguém se importaria
a não ser os coveiros
que, sob o sol do cemitério,
teriam que cumprir sua função
de plantar sementes que nunca germinam.



(do livro Memória dos porcos. Rio: 7Letras, 2012)