SAUDAÇÃO A ANTONIO
CARLOS SECCHIN,
NA ACADEMIA DE LETRAS DO BRASIL
Começo
por agradecer a Fabio de Sousa Coutinho, escritor ilustre e amigo do coração, o
privilégio e a honra de saudar, em nome dos que já pertencemos à Academia de
Letras do Brasil, o professor, poeta, ensaísta, crítico literário e bibliófilo
Antonio Carlos Secchin, que nesta noite se empossa como sucessor do poeta Lêdo
Ivo na Cadeira n° XXIII, cujo patrono é o romancista José Lins do Rego. Assento
que, por acaso feliz, continua em mão de titular da Academia Brasileira de
Letras, pois Lêdo e Secchin por oito anos conviveram sob o teto da Casa de
Machado de Assis.
Nascido
na cidade do Rio de Janeiro, Antonio viveu até os seis anos em Cachoeiro de
Itapemirim, ou Cachoeiro de ItapeSecchin,
/ esta estrada tropical da Itália / que desemboca em você e em mim, como
divertidamente escreve no poema “Reunião”. Cachoeiro em que, lembre-se, nasceu
Rubem Braga, cronista maior da literatura brasileira, do que se pode concluir
tenha algum misterioso elemento propício à vocação literária. Talvez a água do
rio em que se banham os pequenos, alheios aos fados que os destinam à sedução
da prosa e ao encanto da poesia.
De
volta ao Rio de Janeiro ‒ onde se tornará definitivamente um Homo copacabanensis, como gosta de
considerar-se ‒, Antonio Carlos Secchin ingressa, aos 17
anos, na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Seis
anos depois, ensinará literatura e cultura brasileiras na Universidade de
Bordeaux, na França. Aos 27 anos, torna-se mestre em literatura brasileira, e
aos 30, recebe o título de doutor em letras, com teses brilhantes sobre a
poesia de João Cabral de Melo Neto, obra em que virá a ser especialista
consagrado. Em 1993 é aprovado por unanimidade, com nota máxima, em concurso
público para professor titular de literatura brasileira da Universidade Federal
do Rio de Janeiro, o mais jovem catedrático da disciplina entre os colegas da
instituição.
Expoente
do magistério universitário brasileiro, ministrou cursos em Roma, Rennes,
Mérida, Nápoles e Paris. Proferiu cerca de 400 palestras, no Brasil e em países
como Argentina, Cuba, Espanha, Estados Unidos, França, Israel, Itália, México,
Portugal e Venezuela. Orientou 24 dissertações de mestrado, 13 teses de
doutorado e três pesquisas de pós-doutorado. Ministrou 48 cursos e participou
de 177 bancas de pós-graduação, no Brasil e no exterior.
Nas
poucas horas livres de que dispunha, Secchin escreveu (e continua a criar) uma
obra que se recomenda pela riqueza da substância e pelo requinte da forma. No
âmbito da crítica e do ensaio, avultam João
Cabral: a poesia do menos (1987); Poesia
e desordem (1996); Cruz e Sousa, o
desterro do corpo (1998); Um mar à
margem: o motivo marinho na poesia brasileira do Romantismo (2000); Escritos sobre poesia & alguma ficção
(2003); Memórias de um leitor de poesia
(2004); João Cabral de Melo Neto: uma
fala só lâmina (2014) e Papéis de
poesia [Drummond & mais] (2014).
Poeta
luminoso, escreveu A ilha (1971); Ária de estação (1973); Elementos (1983); Diga-se de passagem (1988); Poema
para 2002 (nesse mesmo ano) e Todos
os ventos (também em 2002), com tradução publicada no México em 2004, e Eus & outras (2013). Some-se, a
tantos e tão celebrados títulos, o original, interessante e útil Guia dos sebos, lançado em 2001 e já na
5ª edição.
No
prefácio com que apresenta os estudos de Poesia
e desordem, o filólogo Antônio Houaiss louva o xará Secchin, entre outras
razões, porque “em tudo o que faz há um lastro precioso de elegâncias (na
linguagem, nas imagens, no encaminhamento das ideias, no respeito ao leitor, no
pudor para com seus criticados) que fazem dele, na fauna em que se inseriu, um
exemplar exemplar.” E adiante: “(...) tudo nele é escrito com lastro, com
empenho, com seriedade ‒ amena, embora: seu senhorio temático, eixado num esplêndido
domínio verbal, faz de tudo o que faz algo que é uma lição e um prazer.”
Sobre
a poesia de Todos os ventos, nota
Eduardo Portella: “Em Antonio Carlos Secchin nada é irrelevante.” Curioso que a
afirmação de Houaiss, relativa à prosa, vale igualmente para a poética
secchiniana, assim como a de Portella, quanto aos poemas, é também verdadeira
para a produção do ensaísta. Vê-se, portanto, a excelência do autor nas duas
áreas, pelo apuro estilístico com que dá grandeza às matérias sobre que
trabalha.
Em
1995, elege-se membro titular do PEN Clube do Brasil, e nove anos depois, é
empossado na Cadeira n° 19 da Academia Brasileira de Letras, o mais jovem de
todos que então a compunham. Juventude que vai além de si mesma, e inicia uma
nova era na história da Casa, pelo interesse, pelo dinamismo e pela pertinácia
do novo acadêmico, primeiro secretário da diretoria em 2014 e 2015. A ele se
deve a excelente coleção “Essencial”, com pequenos mas substanciosos perfis
biográficos de nomes que dignificaram as cadeiras de que foram ocupantes.
Sou-lhe particularmente grato pela publicação, em 2010, do meu livrinho Rachel de Queiroz, a senhora do Não Me
Deixes, comemorativo do centenário do nascimento de minha conterrânea
ilustre.
No
discurso com que se empossou, Antonio Carlos Secchin reitera a lucidez e a
equidade que lhe orientam a crítica, ao reconhecer a importância de um dos
antecessores na cadeira que passa a ocupar, o escritor cearense, conterrâneo de
quem me orgulho, Gustavo Barroso. “Quando aderiu ao integralismo, em sua
vertente mais áspera, Barroso já se notabilizara por uma série de realizações
como homem público e como escritor” ‒ afirma com honestidade e isenção.
Diferentemente de tantos (incluídos muitos cearenses) que, dominados pelo preconceito
intelectual, pela paixão ideológica e pela intolerância política, negam-se a
ler o brilhante criador, o estilista admirável que aos 24 anos escreveu uma
obra-prima, Terra de sol, que está
para as letras cearenses como Os sertões
para a literatura brasileira.
A
propósito das fronteiras que há entre países e entre áreas do conhecimento,
como a sociologia e a literatura, o orador diz muito mais do que pode parecer
ao ouvinte menos arguto, sobre as profundezas misteriosas em que jaz a condição
humana: “Não interpreto os limites como região de plácido descompromisso entre
o lá e o cá, mas como um tenso território em cujas bordas vivenciamos o risco e
o fascínio do duplo. Dissolvida a confortável ilusão da unidade, aprendemos a
confrontar-nos com o território do que desconhecemos. Percorrer o intervalo não
é abrigar-se entre dois espaços, é expor-se a ambos. É aceitar o assédio e o
aceno de tudo aquilo que, em nós ou fora de nós, se recusa à apropriação
apaziguadora da identidade.”
Diferentemente
do protocolo que se observa na Academia Brasileira de Letras, nosso homenageado
foi recebido, com um primoroso discurso, pelo à época presidente da instituição,
Ivan Junqueira, grande poeta e crítico de respeito, como o colega e amigo a
quem saudava. Não lhe custou, portanto, analisar com agudeza a obra do novo acadêmico,
em que o ensaísta, felizmente, não sufoca nem castra o poeta, e na qual a
“amorosa obsessão” por João Cabral de Melo Neto ‒ no dizer de Antônio Houaiss ‒
não o reduz a simples imitador do pernambucano. Segundo Junqueira, se Cabral
constrói a “poesia do menos” ‒ expressão secchiniana para nomear o famoso livro
que a disseca ‒, o próprio Secchin compõe a “poesia do pouco”, no sentido de
que nela tudo é essência, nada sobra, não há o que cortar, feita que é por um
poeta para poetas, pela superior qualidade do que cria.
Chama-nos
Ivan Junqueira a atenção para o humor nos poemas de Secchin, alcançado, às
vezes, pela cética ironia com que testemunha o espetáculo dos homens e das
coisas. Em “Sagitário”, por exemplo:
Evite
excessos na quarta-feira,
modere
a voz, a gula, a ira.
Saturno
conjugado a Vênus
abre
portas de entrada
e
armadilhas de saída.
Evite
apostar em si, mas, se quiser,
jogue
a ficha em número
próximo
do zero. Evite acordar
o
incêndio implícito de cada fósforo.
E
quando nada mais tiver a evitar
evite
todos os horóscopos.
Em
outros versos, a fonte humorística são as imagens incomuns, as rimas
surpreendentes, como em “Concorde com Freud”, de que transcrevemos quatro
estrofes:
Matou
o analista e foi a Miami.
Na
fuga, levou a reboque
a
série inglesa de Hitchcock.
Damas
ocultas em jardim sem medo
se
ofereciam em zoom
para
levá-lo a lugar nenhum.
Comparado
a seu rosto, dir-se-ia negro
qualquer
giz; tal qual surge, intenso,
um
osso, no raio-x.
(...)
A
tudo respondeu solene e quieto
com
minúcias tediosas
de
um hemograma completo.
Este,
o notável escritor que a Academia de Letras do Brasil tem a honra de empossar.
Saúdo-o exatamente como o poeta Ivan Junqueira o recebeu na Academia Brasileira
de Letras, com a tradição protocolar dos verbos na segunda pessoa do plural, de
que tanto gosto:
“Sr. Antonio Carlos Secchin ‒ o poeta, o
ensaísta, o crítico literário, o bibliófilo, o mestre exemplar de nossa
literatura ‒ sede bem-vindo ao nosso convívio, que, como sabeis, se estenderá
para o resto dos tempos. Per omnia sæcula seculorum, diz a surrada, e talvez por isso mesmo verdadeira, expressão latina.
Esta é a Casa que o tempo escolheu para erguer a sua morada, que é também a do
ser que se resolve em palavras. É nela que havereis de conquistar aquele tempo
que, como diz o poeta, somente através do tempo será conquistado. A isto
chamamos memória: a dos que já se foram e ainda doem em nós como eternas cicatrizes,
e a dos que, como vós, lograram transpor a soleira da imortalidade. Sede
bem-vindo!”
Muito
obrigado.