sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Os hibiscos, poema RCF

o enxame de hibiscos
          povoou a manhã salina

abro a pasta
          a água transformou
          os papéis
                      indissolutos
                      em raízes mortas

chove

meu pai de tropical inglês,
           subindo as escadas,
           vira-se
                    e me pergunta:

                   Por que ainda não me enterraste
                   se já morri faz trinta tortuosos anos?

esta falsa paisagem
                  londrina
                           da janela
                  embora com lagartos
                  que se deslocam
                  e plantas ao vento
                  é fixa
                  quadro cujas cores
                                          se corrompem

no hotel
em Búzios
onde hospedava
humores descarnados
           a fratura dos riscos
           me lembrava
           a cada instante
que a permanência
           é fluida
           e os ares marinhos
trazem
           salsugem e os mortos
como as ondas
           vomitam
           na praia
                     o que não digeriram




(do livro Andarilho, 7Letras, 2000)

imagem retirada da internet: hopstel andarilho

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

A bexiga do martírio, poema RCF


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Não se respiram linhas,
não se veste de linhas,
não se alimenta de linhas.
Há dias que desperto para o sonho.
O corpo é terra fértil.
As palavras, que poderiam
ser abrigo, destelham.
O cipoal das palavras na floresta das folhas em branco.
Ninguém ensina o martírio.
Ele está em nós como uma bexiga.



(do livro O difícil exercício das cinzas. Rio: 7Letras, 2014)

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Destilaria (e fermentados)


O que se destila neste barril
que se subordina ao grão?
O que se aprisiona nessa caixa de pandora
é o mover dos dentes do lúpulo,
o cavalo fermentado de músculo e remorso.
A cevada do nojo
ou o levedo do fim
amadurece
a máscara de rapina
a cada manhã ou forno do dia.
Rum de carícias,
uísque de negaças,
cerveja negra do esquivo,
a destilaria (e fermentados) vai envelhecendo
o vinho amargo do recuo.
A régua improvável
que menos mede que encomprida,
menos risca que corta,
menos dá lucidez que desafio.
Longa é a jornada dos tonéis
que decantam em seu bucho
e madeira a passagem silenciosa
do tempo maturado no escuro
que por si só é outro barril,
não de madeira, mas de decomposição,
borra e recusa – nada destila
ou fermenta mais que a recusa.                               
(do livro O difícil exercício das cinzas)

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Sou animal pacífico, poema RCF


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Sou animal pacífico
mas não doméstico,
selvagem e rústico,
mas sem garras e peçonha.
Só a mim me causo dano,
só a mim rujo, ladro,
arranho, avanço e bico.

Não há necessidade de predador
para quem vive acossado.
Não tenho habitat.
Sou um bicho de pena,
um bicho de culpa,
um bicho de desencanto,
não preciso que me cacem
já me basto como caçador.


(do livro Memória dos porcos. Rio: 7Letras, 2012)