sábado, 23 de fevereiro de 2019

A mesinha, conto (Manual de Tortura)


 


Com os anos, a mesa foi diminuindo. Tinha admiração exemplar pelas mesas. Não há objeto mais perfeito na humanidade do que a mesa. Seu porte horizontal, o talhe duro e austero, a capacidade infinda de servir sem humilhar-se. A princípio – somente no começo –, aprendi mais com as mesas do que elas comigo. Havia uma cumplicidade muda, tolerância de madeira, silêncio de madeira, sabedoria de madeira.

         Pois bem, dizia eu, por onde mesmo andava? oh bem, minha mesa, a mesmíssima mesa em que sempre trabalhei foi diminuindo. Não aconteceu de modo abrupto, perceptível, inclusive penso que o processo levou anos, lento, maior, mas sem cupim ou bicho destruidor, sem ação externa como o tempo – a não ser que você não considere outro tempo como fato externo, não o tempo das temperaturas, sol e chuva, umidade e calor, mas o tempo cronológico que tem outra forma de nos devorar, sem bicho que o faça, pois ele mesmo, o tempo, já é o bicho bastante e interior.

         Quase não posso sentar-me à mesa. Ela se parece a uma mesa de colegial. Meus joelhos alcançam a tampa. Tenho de curvar-me para escrever ou ler os relatórios. São sempre os mesmos relatórios. Carimbo-os, dou vista, o processo segue e retorna um mês depois. Já não posso trazer muitas coisas em cima da mesa. As gavetas não suportam nem mesmo um papel normal. A cadeira também tomou dimensões minúsculas. O que me intriga é que não riem de mim. Sou um homem digno. Não podem rir de mim. O problema é anatômico, ando tão curvado para chegar ao tampo da mesa que minha coluna é pura interrogação.

         Carrego os carimbos no bolso do paletó. Do mesmo jeito trago o grampeador, a borracha, os lápis e outros objetos de trabalho. O paletó já se deformou: duas abas laterais, cheias, polpudas, caem em desalinho e fazem barulho quando ando. As pessoas identificam o barulho de longe.

         As mesas são traiçoeiras, covardes, inermes – aparentemente inermes, porque têm a inteligência, a pose desafiadora, o cálculo de cedro, a petulância do mogno, hum, é porque você não tem intimidade com o mogno para saber o quanto pode ter de intromissão desabrida na vida das pessoas.

         Eis que a surpresa me toma um dia, sim, a surpresa, de ver minha mesa, ou melhor, de não ver minha mesa. Levaram-na. No lugar, apenas a marca de sujeira que ela deixou encardida no chão. Olho apatetado, com desconcerto, onde trabalharei? As mesas são fundamentais para o trabalho, ninguém ainda se deu – oh, desculpe a brincadeira com as palavras – ninguém ainda se deu ao trabalho de escrever um livro sobre a importância da mesa no trabalho, na vida das pessoas, na sociedade e para o capitalismo internacional.

         Começo a trabalhar em pé, os processos chegam, dou vistas, tiro o carimbo do bolso, encosto na parede e lá vai mais um documento com minha assinatura. Estou há mais de uma semana em pé, oito horas em pé, finjo que não acontece nada comigo, não reclamo da mesa. Os companheiros de trabalho há muito me ignoram, talvez fosse melhor dizer que há muito eles fingem que me ignoram. Riem de mim, falam baixinho, fazem troça. Mas eu os olho e ninguém é capaz de um comentário. Falam comigo como se nada tivesse acontecido.

         Oh Deus, em que mundo estamos, desnudam um homem e todos fingem que nada aconteceu. O contínuo encena uma mesura, abaixa-se e faz o gesto de quem deposita o processo na mesa. O faxineiro, homem por certo rude, mas já comprometido, vem e limpa o tampo da mesa imaginária. Se ao menos tivessem deixado a cadeira, não passaria horas e mais horas em pé, as pernas inchadas.

         De tanto me virem sem mesa, passam a acreditar que nunca tive mesa. Que miserável é a mente humana, os olhos delatam e renunciam, os olhos são o principal culpado dos erros da mente. Aos poucos eu percebo que não é apenas minha mesa que desapareceu. O desaparecimento de uma mesa deveria ser um escândalo, um descaminho, desvario, desbordo. Os homens se acostumam a tudo, até mesmo ao que não é humano. Tive ânsias de mesa, de imobilidade, tânatos.

         Não há saída, aliás, para um homem como eu, que vivo como vivo, a saída não é um labirinto, a saída é uma vaga entrada no neutro, um vazio especial, uma maneira morta de viver. Dirijo-me à sala do diretor. Bato na porta. Ele manda entrar.

         – Sente – ele diz.

         Então me horrorizo, jamais poderia imaginar que o velho Dantas, nosso diretor, trabalhava atrás de uma mesa tão pequena. Não se ver é um descaminho, essa coisa exterior, e dentro nos come a vontade de estar onde nossos olhos se põem. Aqui dentro é uma caixa que fala, mas a caixa fala e não deixa que a gente se veja. É meio esquizofrênico. Agora eu tinha diante dos meus olhos a verdadeira cena, era ridículo, então era assim que me viam, sentado diante da mesa de um menino de colégio, as pernas juntas, os joelhos acima do tampo da mesa, ele curvado, ai, Deus, misturava-se a pena que eu tinha do Dantas – e Dantas era para ter pena! – e a visão de mim mesmo, a pena retroativa de mim.

         Não reclamo nada com o Dantas. Não consigo atinar com a diminuição das mesas. Volto ao trabalho, em pé, semanas após semanas. Até que um dia uma revolta dura e concreta, revolta escura e maciça, me faz invadir a sala do Dantas e reivindicar minha mesa. Sou um homem digno e honrado, cumpridor dos horários e frequentador – principalmente isso –, frequentador das missas rarefeitas que às sextas-feiras o Dantas promove para os funcionários cristãos da empresa.

Invado a sala do Dantas, mas sou tomado por uma surpresa absoluta que espanca meu espanto como uma porta fechada de madeira de lei: o Dantas está em pé, abre os braços, olha atônito em volta. Veja só, lamenta-se, agora tenho que trabalhar de pé, a mesa sumiu, ele me sussurra como se alguém pudesse nos ouvir, a mesa sumiu, repete, abandonado, os olhos de madeira estupefata como olhos de boneco. Por que as mesas, ao longo dos anos, nos maltratam tanto, que lhes fizemos, que lhes infligimos, por que essa revolta absurda e despropositada de encolhimento e desaparecimento, por quê?

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

Homenagem na Biblioteca Nacional de Brasília

Paulo José Cunha




Em 24.04.2009.
Projeto Tributo ao poeta
Biblioteca Nacional de Brasília
Recitadores: Ariosto Teixeira, Luiz Turiba e Guilherme Reis

Um dia somos atraídos a um restaurante bem recomendado, e nem bem o prato chega à mesa e o celular toca. Trata-se de uma emergência e o jeito é engolir rapidamente, sem aproveitar a riqueza dos sabores. E sair correndo. Aí a gente promete retornar ao restaurante outro dia, com tempo de sobra, para poder apreciar a apresentação dos pratos, os sabores, a especialidade do corte, o ponto da carne, a combinação de temperos.
Pois foi essa a sensação que tive ao me deparar com o biscoito fino do poeta Ronaldo Costa Fernandes. Já conhecia sua obra, mas de forma esparsa, apenas uns poucos poemas. E já o admirava, prometendo a mim mesmo conhecê-la melhor, em profundidade, qualquer hora dessas. Quando já me preparava para fazê-lo, tocou o celular e tive de apressar a refeição. Li de uma vez, durante a Semana Santa, lá na minha Teresina, os cinco livros de sua bela produção poética – começando por Estrangeiro, de 1997, depois Terratreme, Andarilho, Eterno Passageiro e o último, publicado este ano, A Máquina das mãos. Belíssimas refeições, pratos admiráveis, poemas maravilhosos. Vou, sim, retornar ao restaurante do Ronaldo, desta vez na companhia de um bom vinho, para degustar com o sossego que sua poesia merece, cada estrofe, cada verso, cada achado, cada cadência delicada, cada surpresa escondida em cada página.
Mas, voltando àquela primeira e apressada refeição, confesso que não me contive e, ao sair correndo do restaurante, escondi na bolsa alguns suculentos pedaços de frango, uns filés maravilhosos com sua inebriante mistura de ervas usadas no tempero, enchi uns tapewares com nacos de massas admiráveis, sobremesas inesquecíveis e a seleção harmoniosa das palavras, digo, dos ingredientes com que Ronaldo compõe cada prato, ou cada poema, tanto faz. São esses fragmentos da bela refeição que ainda vou degustar com calma um dia que gostaria de compartilhar com vocês. E já deixo o convite para que façamos juntos um breve retorno à obra e às delícias desse formidável cozinheiro de palavras, maranhense de nascimento, morador do Rio de Janeiro, e agora radicado em Brasília, pelo visto definitivamente, para nossa alegria.
Desde o início da imersão na obra poética do Ronaldo, fui atraído pelo seu perfeito domínio da nossa língua. Parece um truísmo dizer isso quando se trata de um escritor premiado. Mas atualmente, quando existem tantos escrevinhadores que se ostentam o título de poetas, e que servem tão-somente ao abastardamento da poesia, é muito bom encontrar um poeta de fato! Um poeta que valoriza a essência da palavra, ela que tem sido tão maltratada na era desta tal de “civilização da imagem”. Aliás, a esse propósito, o poeta Pedro Tierra, na orelha de Terratreme, escreveu: “Numa civilização da imagem, o exercício da palavra frequentemente regride. O impacto, o choque ganham da sutileza. Em situações como essa a poesia desempenha um papel, como define mestre Manuel de Barros, de arejadora da língua. Exatamente porque entre todas as expressões literárias, é a que lida essencialmente com a evocação, com a invenção da imagem a partir da palavra. ‘Poesia é assim, os impossíveis ao alcance da voz’”.
Civilização da imagem... Os que usam tal expressão se esquecem de que a imagem antecede a escrita, a imagem está lá nas paredes das cavernas, antes da palavra. E tudo o que se conhece por civilização deve-se, isto sim, à palavra, ao desenvolvimento da escrita, ordenadora do raciocínio, estruturadora da inteligência. Até o dia em que a palavra foi elevada à condição de arte. E não por outra razão, uma arte sublime, que leva o nome de arte poética, a “Ars poética” de Horácio, para quem “aos pintores e aos poetas sempre foi propício o poder de tudo ousar”. Infelizmente muitos ousaram, sim, ousaram se esquecer do valor da palavra, do seu poder de sedução, da sua beleza. Só pra lembrar, a primeira linha do livro sagrado diz: “no princípio era o verbo”. Não diz que no princípio era a imagem - era o verbo, a palavra. Portanto, se existe uma civilização, ela só pode ser uma “civilização da palavra”, e nunca uma “civilização da imagem”.
Com as desculpas pela digressão, na poesia de Ronaldo a palavra é tão respeitada que ele a explora não apenas em sua forma, seu som e seu significado, vai além. Cozinheiro aplicado, desses que sabem escolher os ingredientes e conhecem profundamente suas inumeráveis possibilidades, Ronaldo aproveita a palavra em suas múltiplas dimensões, inclusive nas não pressentidas a uma primeira mirada – a dimensão da metalinguagem, quando avança em territórios de surpreendentes significados. E abduz o leitor ao reino da poesia, aquele estado em que a palavra como significante assume o procênio, abstrai o significado e feiticeiramente nos conquista. Um exemplo rápido, nos versos de A vida é sonho:

O carro de boi range
na estrada do sono.
A luz brinca de pecado.
Ouço o som rouco da alma.
É dia na noite.
Os sonhos vida são.

A pedra,
na cachoeira,
é indiferente
às mãos da água.
As juntas do sonho
se espreguiçam na largueza da alma.
Meus pensamentos têm músculos
nos braços longos do medo.

Nunca amanhecerá
nos cobertores do anonimato.
Nem mesmo um facho de luz
romperá a janela tímida
da rotina.

O sol negro do pesadelo
coloca sua mão pesada
sobre minhas pálpebras inocentes.
Amanhã não acordarei,
nem haverá depois de amanhã,
todas as tentativas de futuro
se resumirão a um bocejo
antes do fim.

Talvez cresça, me torne um homem,
e me veja no espelho do banheiro,
engravatado e barba feita,
como numa foto 3 x 4.

Antes que a lucidez matutina,
que tudo expõe,
quero o esconderijo noturno
das plantas
que vivem
sem saber
que vivem.

Poeta de achados improváveis, Ronaldo Costa Fernandes escava os subterrâneos da palavra e volta de lá com as mãos cheias de preciosidades. Um exemplo rápido, que fui encontrar no interior do poema O cavalo:

(...)O animal guindaste
suspende de uma vala o animal cavalo
que nela – vala – caiu.
Suspenso,
o potro é voador
com suas asas de couro e pano.
O bicho assim
é um bicho fora do seu habitat
não pertence ao gênero da terra
não é marinho,
mínimo,
mas aéreo,
cavalo Móbil Oil
como nos letreiros
da Texaco Company
De cabo a raso
o cavalo é um soldado
na infantaria de seu dono.

Bem poderia ter ficado na expressão conhecida – ”de cabo a rabo”, mas Ronaldo avançou nos possíveis significados, esses que residem nas camadas subjacentes, uma espécie de pré-sal da língua, e descola esse precioso “de cabo a raso” (a soldado raso, diríamos) e prossegue : “o cavalo é um soldado / na infantaria do seu dono”. Um soldado...raso! Achados desse tipo salpicam toda a sua obra, como se o poeta fosse um mergulhador que descesse a grandes profundidades e ao retornar à superfície, com as mãos cheias de pedras preciosas, nos dissesse: - olhem o que encontrei!
Melancólico, perigosamente próximo da depressão, o poeta às vezes se equilibra entre a beleza trágica da condição humana, no limiar da loucura, por exemplo, quando escreve: “Tenho medo de acabar falando sozinho/ como os loucos e os rádios” e as indagações do absurdo, com as quais se depara a todo instante, como essas que pincei aleatoriamente em vários momentos da sua obra: “Que língua se fala no Inferno?”; “A manhã é feminina ou masculina?”; “Com quantas grades se constrói a espessura da razão?”; “Quem move as engrenagens da palavra?”; “Com quantos ferros se faz uma manhã?”; “Como serão os anjos na velhice?”). Sem falar que, não contente com suas próprias perplexidades, vai buscar em Santo Agostinho uma indagação para a qual os teólogos até hoje não acharam resposta: “O que fazia Deus antes de criar o mundo?”
Ao mesmo tempo, o poeta é ao mesmo tempo irônico e cáustico, como nesta abertura do poema O crime perfeito:

“Sentar-se à mesa do mundo
e ver a nova luta de classes:
os pequenos-hamburgueses
contra a dieta dos bóias-frias"

Logo em seguida, no mesmo poema, o resultado da genial divisão que fez na expressão “ar condicionado” e o efeito obtido:

No mundo do MacDonald’s
não há tempestade nem calor
o sujeito do ar condicionado a viver
num balão de oxigênio”.

Poeta de vastas possibilidades, Ronaldo Costa Fernandes é do tipo de escritor que joga nas onze, e com igual desenvoltura. Poeta e prosador, sua poesia está fortemente embebida na prosa de O Morto Solidário, traduzido e publicado em Havana, vencedor do Prêmio Casas de las Américas. Igualmente ganhou os prêmios Guimarães Rosa e de Revelação de Autor da APCA. Na área do ensaio, publicou em 1996 O Narrador do romance, prêmio Austreségilo de Athayde da UBE-RJ. No final de 97 publicou o romance Concerto para flauta e martelo, finalista do prêmio Jabuti-98. E a partir daí, atirou-se à poesia, território onde pode se dar ao luxo de investigar as possibilidades mais remotas de uma expressão como a que identifica uma flor chamada Amor Perfeito, para converte-la em poema de delicadas sutilezas, para ser lido e ouvido pensando simultaneamente no amor e na flor. O poema Amor Perfeito faz parte de Terratreme, única obra poética temática, totalmente dedicada às coisas da flora, da fauna, da pecuária e dos hortifrutigranjeiros:

Aspiro o amor perfeito
ou aspiro ao amor perfeito?
A gramática das flores
exala anacolutos.
O amor perfeito é uma cabala.
Todas as pétalas do idealismo.
Círculo inexato,
triângulo profundo,
número místico
– flor de misterioso aroma,
de forma labiríntica,
que brota em cada pensamento.

A que ramo pertence o amor perfeito?
Às obsessões que são tubérculos?
À submissão que são plantas aéreas?
Ao desejo que é flor que se abre ao toque?
o ramo dos exuberantes como os girassóis?

O amor perfeito é planta de laboratório,
rato vegetal,
cobaia pouco humana,
experiência empírica dos sentidos
ou especulação científica das frustrações?

O amor perfeito não existe em flora alguma.
Viceja apenas na botânica humana,
no húmus das delicadezas da alma,
na suprema aspiração das raízes do ser
que brota a flor mais díspare, metafísica,
desarmoniosa e triste.

O amor perfeito é uma abstração
no jardim secreto dos homens crédulos
na serenidade e no círculo da vida.

Dizem que Ronaldo Costa Fernandes renega seu primeiro livro de poemas, quase um folheto, Urbe, onde Antonio Carlos Secchin já identifica uma “tensa e hostil relação do poeta com o espaço-metrópole”. Não tive acesso a essa preciosidade. Mas essa tensão com o espaço-metrópole se manifesta em vários momentos da poesia reunida nas obras seguintes, como este O Túnel, recheado dos medos e das perplexidades da vida nas cidades, tudo convertido numa enorme metáfora:

O pão nosso de cada dia:
a fôrma dos pânicos,
o forno das inquietudes.

Viver assim com a displicência
do passarinho no fio de alta tensão.

Sou místico de tantas certezas
e lúcido de torvelinhos.

O dia é preciso
e uniforme
como um pão.
Necessário
mas estufado
com seu fermento das horas.

Ando emperrado
como uma dobradiça:
ranjo e me dobro
à passagem por mim
subterrâneo que sou
dos pavores noturnos
– os túneis por onde transgrido.

Tenho medo das ruas escuras
e espessas
onde não há calçadas,
os transeuntes são vitrines espelhadas,
e os veículos nada transportam.

Em algum lugar estou parado na esquina
à espera de mim, ansioso e torto,
os papéis voam seu voo de vento
e
os guardas de trânsito apitam
humanamente
contra a máquina de piscar
olhos do semáforo

Alguém que não assina a orelha de seu primeiro livro escreveu acertadamente que a poesia de Ronaldo é “vária, angustiada, difusa, de individualidade plural. Poeta contido, cronista das emoções alteradas, vigilante da percepção da cotidianidade, não ‘querendo ser estrangeiro na mesma língua’, o autor vai buscar sua poética no pasmo e na inversão: uma forma de estar no mundo e uma forma de conhecer o mundo”. Como está contido nessa espécie de confissão de não-fé, do poema Estrangeiro, que dá título e fecha seu primeiro volume de poesias:

Não quero mais
ser ateu
de um mesmo Deus.
Abandonarei o apego
às coisas desgarradas.

Cansei das curas
que adoecem
e da liberdade
de estar preso às mesmas ideias.

Não quero ser semelhante
entre os desiguais
e recuso a unanimidade
da discórdia.

Não confio nas ordens
da revolta
nem nos escaninhos
da paisagem aberta.

Não quero mais
viver estrangeiro
na mesma língua.

Em 98, Ronaldo Costa Fernandes edita Terratreme, que recebeu o Prêmio Bolsa de Literatura da Fundação Cultural do DF. Ledo Ivo saudou o autor de Terratreme dizendo que “Quem canta os frangos da granja tem direito de reivindicar o seu espaço nítido no território da modernidade poética”.

Frangos de granja

Todos amarelinhos de plástico,
sob o sol artificial da lâmpada,
piando eletricamente
e engordando no pasto de arame
o milho exato e vitamínico de uma cápsula.
Estamos aquecidos neste inverno
que dura uma vida.
E, sob o sol morto do universo,
nos converteremos
em nada ou série
que é uma forma de existir
sem existência.
Enfileirados no ritmo comum e igual
de verões artificiais,
ligados ao fio umbilical das tomadas,
os pintos de granja
reproduzem o gigantesco espanto
de Garcia Lorca com dois milhões de cabritos mortos em Nova York.

Durante nove anos Ronaldo Costa Fernandes dirigiu o Centro de Estudos Brasileiros da Embaixada do Brasil em Caracas. De volta ao Brasil, em 1995, foi Coordenador da Funarte de Brasília até o início de 2003. É Doutor em Literatura pela UnB. É autor de mais três livros de poesia: Andarilho (2000), Eterno Passageiro (2004) e A máquina das mãos (2009), obras em que se atestam a maturidade, a novidade e o frescor de seu artesanato poético. Como nesta Lição de anatomia:

Sou coisa
Algo assemelhado a
lápis ou vela
que para existir se consome
esgrimindo garatujas ou se queimando
no fulgor das palavras ou na luz suicida
que ilumina enquanto se imola.

O bumbo dos solitários é o mesmo dos eufóricos
geme a mesma voz surda
no compasso do tempo das matrizes.

A tarde
com seu invólucro de nuvens
conspira com vozes na liturgia dos alvoroços.

A vida é um erro:
alguns chegam a ser sentenciados
a oitenta anos de vida.

Ronaldo é mestre no descobrir antíteses nas atitudes cotidianas. Para qualquer um de nós, fazer a barba é um sinal de civilidade. Mas o poeta encontra no gesto a raiz da animalidade humana, como neste formidável O animal barbado:

Este animal que se rasura
como quem raspa a orelha do porco
para a feijoada de fim de semana,
este animal feroz e matutino,
como um auto-retrato,
com seus olhos 3 x 4 ,
observa a paisagem da janela
e do outro lado do vidro
está ele mesmo,
é ele a paisagem que envelhece
cada vez que a freqüenta.
Este homem ao espelho,
gilete de martírios e angústias violáceas,
barbeia seu minuto e sua morte,
exasperada e afiada servidão,
a consciência espumosa da pequena guilhotina.

No mesmo estilo, destaco o poema Churrasco, cujo título remete a um hábito que nós, os de Brasília, cultivamos tão amiúde que já se incorporou ao nosso cotidiano. Mas onde o poeta aponta rumores de elevada carga dramática:

Da minha janela, vejo fornos crematórios.
As pequenas chaminés se sucedem como um i sem pingo.
Da fumaça que lhe escapa
há humor de tédio, carne e sal grosso.
Durante a semana os campos de concentração,
que são quintais,
se mantêm vazios e sem prisioneiros
além das árvores inúteis
que parem sem que ninguém as olhe.
Nos fins de semana,
começa o sacrifício de bois e rins
e a fumaça se evola, em suas cólicas
cinzas, a passagem das horas,
o riso grotesco dos feriados,
o ritual de queima e álcool,
a embriaguez da vida
cuja ressaca é a morte.

E agora, um breve passeio pela poesia do cotidiano, “poemas de isopor”, como os classifiquei, de tão leves e ao mesmo tempo, como direi?, tão úteis. Versos em que o poeta se debruça, ora irônico, muitas vezes apenas surpreso, para examinar o por-trás das coisas e das gentes, e assim surpreender um traço de tragédia, de encanto ou de ridículo. Alguns exemplos:

Poema sobre pás

As pás do ventilador nunca se alcançam:
eternamente perseguindo a pá que segue
e fugindo da pá que lhe persegue.
Estou no mundo entre duas pás:
a pá de espírito que não alcanço
e fugindo da pá de cal
que me quer dar descanso.


Mecanicismo.

Oh, as lavouras mecânicas,
fábricas de trigos,
usinas de legumes,
máquinas de frutas,
a lavoura artificial
dos que plantam
como quem rega
um lírio de plástico.


Cemitério dos vivos

O cemitério é o lixo
dos homens
e a morte a prova
de que valemos
menos do que um copo
de plástico
que dura duzentos anos ou mais.


A mesa

A mesa, silente,
ignorada e múltipla como um garçom,
não pode gemer seu intestino de cupins.
Art-nouveau, barroca, inglesa, manuelina,
a mesa, com sua prisão de ventre de madeira,
vara o tempo.

A mesa pasta, por fim, o homem,
principal alimento,
enquanto o homem pensa
que nela se alimenta.


La invención de Morel

Para onde irão as coisas acontecidas?
Por certo não devem estar só na memória
– que é gelatinosa e tende à movediça régua,
que, em vez de precisão,
encurta o que é longo –
por certo devem estar paralisadas
– é curvo o metro da razão –
em algum espaço que não acumula o que recolhe
nem apaga quando se desfaz,
nem se destrói ao morrer,
deve haver um cemitério de fatos,
lá, onde todas as coisas – esquecidas ou não –
perduram e se repetem.


Às putas

E Deus disse e ganharás a vida
com o suor do teu rosto.
Depois ficou pensativo e concluiu:
não bem com o suor do rosto,
mas com outros suores que mais tarde entenderás.
Suores e gemidos de tal sorte
excretados não do fundo da vagina
mas dos grandes lábios que nada pronunciam
lá onde nada se ouve
como o eco do vazio
ou a cascata de um rio seco.



Balanço

A minha vida vai assim se organizando
levar o cachorro ao veterinário
colocar as prestações em dia
tirar saldos, conferir extrato
controlar o nível do óleo do carro
frequentar as reuniões de pais
e mestres no colégio
o passeio dominical com as crianças
pipocas no chão, o assento lambuzado
o rádio a cada curva uma estação
ao fim do dia enforcar-me na árvore do jardim
que este ano só dará um fruto.

Já vai longa esta apresentação. Quero agradecer a participação preciosa dos meus bravos e dedicados recitadores, que embelezaram ainda mais a beleza dos versos do nosso homenageado de hoje. Obrigado aos queridos Luiz Turiba, Guilherme Reis e Ariosto Teixeira.
Como afirmei no início, logo-logo estarei de retorno ao restaurante do poeta Ronaldo Costa Fernandes, onde poderei degustar, devagar e novamente, cada um de seus versos. Versos como os de A garça II, na minha pobre opinião, um dos mais delicados poemas do pouco que conheço da poesia em língua portuguesa. Uma dessas peças que consagram um autor. Diz assim:

A garça II

Eis que a garça
pára e, assim,
fixa, é flor do cerrado.
Tomada de susto,
abre asas,
é flor que voa
assim como a flor
é a garça fixa
no chão.

Vem, me diz,
não és garça e flor?
Assim, fixa,
no cerrado dos meus olhos,
não expandes
a fixidez do teu olhar
- infinito e horizonte –
e quando teus cabelos voam,
qual asa de garça - graciosa –
não és flor que voa?

Já nos encaminhamos para o final. Quero agradecer ao Diretor da Biblioteca Nacional, o poeta Antonio Miranda, e à poeta Angélica Torres Lima, coordenadora do projeto Tributo ao poeta, por me confiarem a apresentação de um poeta da importância de Ronaldo Costa Fernandes. Também me queixo de ter sido picado pelo inseto da poesia, mas não esqueço que também sou jornalista, e gosto de revelar detalhes que alguns personagens preferem esconder. Por isso vou fazer uma inconfidência. Cheguem um pouquinho mais perto que não posso falar muito alto. Em toda a sua poesia, Ronaldo Costa Fernandes, como um João Cabral de Melo Neto ou um H. Dobal, bem que gostaria de não ser - nem parecer - romântico. Faz questão de ser seco, duro, imune a qualquer traço de sentimentalidade. Não sei como estará se comportando ao acompanhar as comemorações dos 50 anos de carreira do Rei Roberto Carlos... Identifiquei sinais de romantismo em Garça II, esse que acabamos de apresentar. Mas até aqui não tinha provas materiais, um vídeo, um documento com que pudesse provar o delito. Isto até conseguir fotografar o poeta em estado de escancarado romantismo. Aproveito o momento e a presença de todos, que agradeço desde logo, para publicar tal fato em primeira mão e na primeira página. Claro que foi uma foto feita meio às escondidas, por isso saiu um tanto tremida, mas dá perfeitamente para comprovar o lado romântico de Ronaldo, não apenas um dos melhores poetas de nossa cidade, mas uma das vozes poéticas mais interessantes no panorama da moderna poesia brasileira.
Antes, algumas observações sobre a poesia de Ronaldo:
Na orelha de Andarilho, Ledo Ivo escreveu, como já vimos:
“Quem canta os frangos de granja tem direito a reivindicar o seu espaço nítido no território da modernidade poética”. E acrescentou: “Um poeta que sabe ver – e, numa visão ao mesmo tempo devastadora e irônica, e pelo caminho da distorção e da transfiguração, planta a sua diferença e singularidade. É uma pena que a poesia seja hoje uma atividade secreta e clandestina. Eu gostaria que o Terratreme chegasse a incontáveis ouvidos, e olhos, e lugares, com seus tatus, suas bananeiras obscenas e seus caminhões empoeirados”.
Carlos Tavares, do Jornal de Brasília, escreveu:
“Ronaldo Costa Fernandes revela antes de tudo um elevado grau de sintonia da palavra com a visibilidade das imagens que cria, denunciando intimidade com a língua e suas possibilidades de metamorfosear com a realidade”.
Foed Castro Chamma observou:
“A sensibilidade aflora em seus versos plenos de interrogação sobre a realidade múltipla que quase asfixia, engole o expectador e se impõe como linguagem e signos que são hieróglifos e ferramentas do discurso poético. O bicho homem é um belo poema! A loucura invade o território da linguagem e questiona o mecanicismo. O ovo, A granja, a paisagem, A terra marítima, Os garimpeiros. Existe humour em tais questionamentos que tornam mais denso o real, que não existe, pois o que existe na verdade é a linguagem. Humour mineiro. A pergunta de Santo Agostinho (p.76) é um soco epistemiológico”.
Rogério Lima escreveu:
“Ronaldo Costa Fernandes corre todos os riscos de ser ‘estrangeiro’ na poesia brasileira. A sua história, a desconstrução do ser estrangeiro, se constrói a partir do seu verso, referência recorrente que ajuda a moldar a sua identidade – ponto fundamental da sua poesia”.
Ronaldo Cagiano:
“Estrangeiro tem nervura, coluna dorsal, arquitetura, fluência e ritmo. A palavra é tratada em sua plenitude, o poema atinge a expressão máxima de sua comunicação lírica, conceitual”.
E as observações publicadas na orelha de A Máquina das Mãos:
“Um poeta forte, disse Vico, é aquele capaz de adivinhar-se e ousar o impossível: dar origem a si mesmo. Em Eterno Passageiro, Ronaldo Costa Fernandes, escritor de carreira sólida, dialoga com a tradição, mas consegue afastar-se dela para falar em língua própria” – Lígia Cademartori, Correio Braziliense.
“Ronaldo Costa Fernandes tem uma maneira especialíssima de tecer sua construção artística, uma fórmula original de construir sua obra de arte” – Ubiratan Teixeira, O Estado do Maranhão.
“Sem dúvida, um os melhores da safra atual”. Rita Moutinho
“A modernidade de Costa Fernandes nos assalta com pletora de surpresas.(...) Outra marca muito interessante na poética de Costa Fernandes: ser ao mesmo tempo agudamente crítica e alucinatória. (...) Raro humor, humor dúplice, de agudezas críticas, doublé de fantasia fantasmagórica, o humor de R. C. Fernandes – tantas vezes negro apesar de esfuziante em imagens – ri-se das trivialidades tragicômicas da doméstica rotina do dia-a-dia, tanto quanto das fúteis fúrias e facécias mortíferas do mundo exterior. Trata-se de ‘cortesia do desespero’ na definição de Houllebeck para o humor”. Fernando Mendes Viana, nosso querido Fernando Mendes Viana, na Revista da Academia Brasiliense de Letras.
Eis o flagrante. Ele está contido nos primeiros versos do poema “Fotografia”, do livro A Máquina das mãos. Aposto que Ronaldo não se recusará a entregá-lo a nós para participar do projeto “Ímãs com Rimas”, que são pequenos poemas ou apenas um ou dois versos que, depois de ilustrados, se transformam em ímãs de geladeira. É um projeto que aguarda lançamento, para o qual já deixo o convite a todos. Vamos marcar data e local, e vocês serão devidamente avisados.
E agora, tchan-tchan-tchan! O flagrante de romantismo de Ronaldo Costa Fernandes. Atenção, porque são apenas três versos.
Dizem assim:

“Ando torto
porque meu coração pesa mais
meu lado esquerdo” (...)

Muito obrigado a todos. Uma boa noite.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

A prisão de Homero, conto RCF


Botero



Foi inesperadamente, num dia de semana ordinário, que Homero pediu para ser preso. Como não havia cometido nenhum crime, passou por louco dentro da delegacia. E foi motivo de chacotas entre os policiais, ainda que acostumados a malucos e, principalmente, a certos elementos que, sabe-se lá a razão, gostavam de assumir a culpa por um delito que não cometeram.
Mas a história de Homero era diferente. Os doidos que se apresentavam culpando-se eram exibicionistas ou tinham outro tipo de deformação mental. Logo caíam em contradição e o delegado os ameaçava com falso testemunho e aí, diante de uma transgressão verdadeira, como num passe de mágica, os falsos culpados assumiam a mentira.
Homero sempre foi um homem pacato, dono de armarinho, morando em subúrbio, vida reta, nenhuma amante. Nunca cometera deslize: devolvia dinheiro encontrado na rua, se oferecia a depor quando assistia a um acidente de trânsito, enfim, era a virtude em pessoa. De tão virtuoso é que não pôde aceitar o crime que cometera.
O sócio de Homero, companheiro de muitos anos, morrera repentinamente. A viúva não se interessou pelo negócio, pediu sua parte. Homero fez as contas, comprou a parte do amigo morto. Aí é que começaram as angústias de Homero, que enrolou a viúva nas contas. O que mais o incomodava era a viúva, amiga da família, continuar a freqüentar a casa dele. A cada visita a viúva representava a prova viva – e falante – do crime que cometera. Ficara com pouca coisa, reclamava que o marido durante a vida fora unha-de-fome e, morto, lhe deixara sem pensão.
Meses se passaram e Homero imaginou que devolvendo o dinheiro para a viúva conseguiria aliviar a culpa. Inventou uma história intricada.
Que taxa? perguntou a viúva do sócio.
Ora, o importante é que o dinheiro eu vou depositar na sua conta. É melhor nem entender essas coisas financeiras do governo: taxas, multas, cobranças indevidas, ressarcimento. O governo também erra e às vezes corrige o erro. Não está feliz com o dinheiro que vai receber?
A surpresa de Homero foi ver que a devolução do dinheiro não aplacava a consciência pesada. Afinal cometera o delito, o dinheiro que por direito dava à viúva não o inocentava do crime. Tinha que pagar pelo crime que cometera.
Foi tudo isso que Homero contou na delegacia e o delegado não dera bola. Sem tribunal ou juiz que o condenasse, Homero decidiu dar pena para si mesmo.
Confessou-se à esposa que não acreditou no que ouvia.
Bobagem, disse.
E como Homero insistisse, ela reprovou.
Deixa de ser idiota. E, além do mais, reparaste o erro. A viuvinha não está feliz? Então pára de maluquice que temos três filhos pra criar.
A pena que Homero se deu foi fazer de seu quarto uma cela. Mandou construir grade, tirou todos os móveis, colocou um catre e, quando achou que o quarto tinha cara de cadeia, trancou-se nele. Além da televisão, desfez-se de qualquer luxo. E mesmo a televisão, Homero a justificava: tinha direito a prisão especial por ter grau universitário. Estava na lei.
O cotidiano de Homero era desesperador. Comia frugalmente, recusando qualquer tentativa da mulher em oferecer a ele pratos suculentos ou guloseimas. Acordava cedo, fazia ginástica, via um pouco de televisão, lia e quando olhava o relógio eram apenas dez horas da manhã. Como o tempo rendia! Depois ficava olhando para as paredes nuas onde num canto fazia as marcas dos dias – como qualquer prisioneiro – que faltavam para sua liberdade.
Nada o demovia. Nem o pedido dos filhos, dos amigos, dos parentes. Era um preso exemplar. Tinha em mente que assim disciplinado podia ter a pena reduzida como faziam com os presos de bom comportamento. Assim ia vivendo, encarcerado, em paz com a consciência para desespero da esposa que teve que assumir o armarinho em lugar do marido.
Daqui só saio em sete anos, dizia anunciando o tempo da condenação.
Homero já cumprira seis meses de pena, quando teve uma idéia. Hesitou muito antes de definir-se. Afinal de contas, a idéia, embora contraditória, era uma idéia de prisioneiro – ele se justificava. Depois de tanto vacilar, por fim se convenceu. Iria cavar um túnel.
É só cavar com a colher todo dia um pouco, esconder a terra e, mais três meses, consigo chegar do outro lado da rua, arquitetava. E, pronto, liberdade!

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

Matadouro de Vozes, crítica de José Neres





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José Neres
(Membro da Academia Maranhense de Letras e da Sobrames)

Não sinto a pulsação dos muros,

A umidade das horas
Ronaldo Costa Fernandes é um daqueles intelectuais que conseguem trilhar com desenvoltura por diversos caminhos das letras. É muito respeitado como ensaísta, diversas vezes premiado por seus textos em prosa (romances, novelas e contos) e, nas últimas duas décadas, vem produzindo poemas de excelente qualidade, como pode ser visto nos livros: Estrangeiro (1997), Terratreme (1998), Andarilho (2000), Eterno Passageiro (2004), A máquina das mãos (2009), Memória dos porcos (2012) e O difícil exercício das cinzas (2014). Página2

Bastante seletivo em suas leituras, na elaboração de seus textos e na organização de suas obras, o escritor maranhense trouxe à luz no final de 2018 mais um livro: Matadouro de Vozes, um conjunto de poemas mesclando um tom filosófico com quase imperceptíveis à primeira vista apelos políticos e sociais incrustados nas entrelinhas de versos harmoniosos entre si.

Matadouro de Vozes é um livro extremamente metafórico com versos que, quando são isolados e tirados do contexto do poema, podem passar ao leitor uma ideia de facilidade e/ou de superficialidade, mas que, quando lidos em sua integralidade despertam a sensação de um incômodo existencial e social que permeia experiências compartilhadas por todos os seres humanos, dito por poucos e transformado em palavras escritas por raros artífices dos versos. De alguma forma, em seu novo livro, Ronaldo Costa Fernandes consegue tramar e explicitar uma nem sempre possível imbricação entre o que é aparente para as pessoas e o que se esconde dentro de cada um de nós, seres humanos limitados quase sempre pelas próprias limitações impostas e aceitas como verdades incontestáveis.

Logo no primeiro poema do livro, o leitor se depara com uma afirmação que pode parecer pessimista: "a tristeza é sempre mais pesada que o ar", mas que

Em 2010, O Livro A Máquina das Mãos, de Ronaldo Costa Fernandes, recebeu o Prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras Página3

serve como portal de entrada para os demais textos do livro. Cada estrofe do livro causa a mesma incômoda sensação de "uma fruta que cai / e não alcança o chão", que aparece como desfecho do poema intitulado "O egoísmo da carne". O peso dessa tristeza existencial que permeia os versos do livro de Ronaldo Costa Fernandes leva o leitor a percorrer caminhos poéticos perturbadores e conturbados, pelos quais algumas vezes a "mesa tem cavernas / onde o labirinto das teclas / penumbram becos sem saída".


MURO DAS LAMENTAÇÕES

Pendurei um século

na parede do escritório.

As paredes

transformaram tudo em açude.

Minha mesa tem cavernas

onde o labirinto das teclas

penumbram becos sem saída

e indóceis diques

mergulham a mente naufragada
Pouco depois da metade do livro, aparece o poema "Criadouro de vozes", que serve como contraponto do título da obra, mas que, ao contrário dos demais textos, abre caminho para esperança de dias melhores, com o lançar das "sementes do caminho" e o "abrir de estradas". Ao utilizar essa paradoxal metáfora de colocar um criadouro de vozes quase no centro de um universo preparado para abafar, silenciar e matar as vozes que ousam se levantar, o poeta acaba revelando um pouco de sua intenção. Assim como Drummond fez uma flor furar o asfalto e desafiar os sombrios momentos pelos quais passava o mundo, Ronaldo Costa Fernandes faz com que murmúrios que deveriam ser silenciosos alcancem a dimensão de palavras, falas, gritos e berros. De alguma forma, o poeta pode até morrer, mas jamais silenciar. Eis uma das mensagens subliminares do livro. Página4

Matadouro de Vozes é um livro de protesto quase inaudível para quem se acomoda com as aparências das coisas sem buscar a essência escondida em algum ponto às vezes quase indevassável da esfera do SER humano. E, ao mesmo tempo, um alerta para quem se incomoda com a apatia colorida dos chamados tempos de pós ou ultramodernidade. Os poemas do livro devassam o presente sem a necessidade de negação do passado e deixam a lição de que "o futuro é um bicho hospedeiro do homem".