Com
os anos, a mesa foi diminuindo. Tinha admiração exemplar pelas mesas. Não há
objeto mais perfeito na humanidade do que a mesa. Seu porte horizontal, o talhe
duro e austero, a capacidade infinda de servir sem humilhar-se. A princípio –
somente no começo –, aprendi mais com as mesas do que elas comigo. Havia uma
cumplicidade muda, tolerância de madeira, silêncio de madeira, sabedoria de
madeira.
Pois bem, dizia eu, por onde mesmo
andava? oh bem, minha mesa, a mesmíssima mesa em que sempre trabalhei foi
diminuindo. Não aconteceu de modo abrupto, perceptível, inclusive penso que o
processo levou anos, lento, maior, mas sem cupim ou bicho destruidor, sem ação
externa como o tempo – a não ser que você não considere outro tempo como fato
externo, não o tempo das temperaturas, sol e chuva, umidade e calor, mas o
tempo cronológico que tem outra forma de nos devorar, sem bicho que o faça,
pois ele mesmo, o tempo, já é o bicho bastante e interior.
Quase não posso sentar-me à mesa. Ela
se parece a uma mesa de colegial. Meus joelhos alcançam a tampa. Tenho de
curvar-me para escrever ou ler os relatórios. São sempre os mesmos relatórios.
Carimbo-os, dou vista, o processo segue e retorna um mês depois. Já não posso
trazer muitas coisas em cima da mesa. As gavetas não suportam nem mesmo um
papel normal. A cadeira também tomou dimensões minúsculas. O que me intriga é
que não riem de mim. Sou um homem digno. Não podem rir de mim. O problema é
anatômico, ando tão curvado para chegar ao tampo da mesa que minha coluna é
pura interrogação.
Carrego os carimbos no bolso do paletó.
Do mesmo jeito trago o grampeador, a borracha, os lápis e outros objetos de
trabalho. O paletó já se deformou: duas abas laterais, cheias, polpudas, caem
em desalinho e fazem barulho quando ando. As pessoas identificam o barulho de
longe.
As mesas são traiçoeiras, covardes,
inermes – aparentemente inermes, porque têm a inteligência, a pose desafiadora,
o cálculo de cedro, a petulância do mogno, hum, é porque você não tem
intimidade com o mogno para saber o quanto pode ter de intromissão desabrida na
vida das pessoas.
Eis
que a surpresa me toma um dia, sim, a surpresa, de ver minha mesa, ou melhor,
de não ver minha mesa. Levaram-na. No lugar, apenas a marca de sujeira que ela
deixou encardida no chão. Olho apatetado, com desconcerto, onde trabalharei? As
mesas são fundamentais para o trabalho, ninguém ainda se deu – oh, desculpe a
brincadeira com as palavras – ninguém ainda se deu ao trabalho de escrever um
livro sobre a importância da mesa no trabalho, na vida das pessoas, na
sociedade e para o capitalismo internacional.
Começo a trabalhar em pé, os processos
chegam, dou vistas, tiro o carimbo do bolso, encosto na parede e lá vai mais um
documento com minha assinatura. Estou há mais de uma semana em pé, oito horas
em pé, finjo que não acontece nada comigo, não reclamo da mesa. Os companheiros
de trabalho há muito me ignoram, talvez fosse melhor dizer que há muito eles
fingem que me ignoram. Riem de mim, falam baixinho, fazem troça. Mas eu os olho
e ninguém é capaz de um comentário. Falam comigo como se nada tivesse
acontecido.
Oh Deus, em que mundo estamos, desnudam
um homem e todos fingem que nada aconteceu. O contínuo encena uma mesura,
abaixa-se e faz o gesto de quem deposita o processo na mesa. O faxineiro, homem
por certo rude, mas já comprometido, vem e limpa o tampo da mesa imaginária. Se
ao menos tivessem deixado a cadeira, não passaria horas e mais horas em pé, as
pernas inchadas.
De tanto me virem sem mesa, passam a
acreditar que nunca tive mesa. Que miserável é a mente humana, os olhos delatam
e renunciam, os olhos são o principal culpado dos erros da mente. Aos poucos eu
percebo que não é apenas minha mesa que desapareceu. O desaparecimento de uma
mesa deveria ser um escândalo, um descaminho, desvario, desbordo. Os homens se
acostumam a tudo, até mesmo ao que não é humano. Tive ânsias de mesa, de
imobilidade, tânatos.
Não há saída, aliás, para um homem como
eu, que vivo como vivo, a saída não é um labirinto, a saída é uma vaga entrada
no neutro, um vazio especial, uma maneira morta de viver. Dirijo-me à sala do
diretor. Bato na porta. Ele manda entrar.
– Sente – ele diz.
Então me horrorizo, jamais poderia
imaginar que o velho Dantas, nosso diretor, trabalhava atrás de uma mesa tão
pequena. Não se ver é um descaminho, essa coisa exterior, e dentro nos come a
vontade de estar onde nossos olhos se põem. Aqui dentro é uma caixa que fala,
mas a caixa fala e não deixa que a gente se veja. É meio esquizofrênico. Agora
eu tinha diante dos meus olhos a verdadeira cena, era ridículo, então era assim
que me viam, sentado diante da mesa de um menino de colégio, as pernas juntas,
os joelhos acima do tampo da mesa, ele curvado, ai, Deus, misturava-se a pena
que eu tinha do Dantas – e Dantas era para ter pena! – e a visão de mim mesmo,
a pena retroativa de mim.
Não
reclamo nada com o Dantas. Não consigo atinar com a diminuição das mesas. Volto
ao trabalho, em pé, semanas após semanas. Até que um dia uma revolta dura e
concreta, revolta escura e maciça, me faz invadir a sala do Dantas e
reivindicar minha mesa. Sou um homem digno e honrado, cumpridor dos horários e
frequentador – principalmente isso –, frequentador das missas rarefeitas que às
sextas-feiras o Dantas promove para os funcionários cristãos da empresa.
Invado a
sala do Dantas, mas sou tomado por uma surpresa absoluta que espanca meu
espanto como uma porta fechada de madeira de lei: o Dantas está em pé, abre os
braços, olha atônito em volta. Veja só, lamenta-se, agora tenho que trabalhar
de pé, a mesa sumiu, ele me sussurra como se alguém pudesse nos ouvir, a mesa
sumiu, repete, abandonado, os olhos de madeira estupefata como olhos de boneco.
Por que as mesas, ao longo dos anos, nos maltratam tanto, que lhes fizemos, que
lhes infligimos, por que essa revolta absurda e despropositada de encolhimento
e desaparecimento, por quê?
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