Foi inesperadamente, num dia de semana ordinário, que Homero pediu para ser preso. Como não havia cometido nenhum crime, passou por louco dentro da delegacia. E foi motivo de chacotas entre os policiais, ainda que acostumados a malucos e, principalmente, a certos elementos que, sabe-se lá a razão, gostavam de assumir a culpa por um delito que não cometeram.
Mas a história de Homero era diferente. Os doidos que se apresentavam culpando-se eram exibicionistas ou tinham outro tipo de deformação mental. Logo caíam em contradição e o delegado os ameaçava com falso testemunho e aí, diante de uma transgressão verdadeira, como num passe de mágica, os falsos culpados assumiam a mentira.
Homero sempre foi um homem pacato, dono de armarinho, morando em subúrbio, vida reta, nenhuma amante. Nunca cometera deslize: devolvia dinheiro encontrado na rua, se oferecia a depor quando assistia a um acidente de trânsito, enfim, era a virtude em pessoa. De tão virtuoso é que não pôde aceitar o crime que cometera.
O sócio de Homero, companheiro de muitos anos, morrera repentinamente. A viúva não se interessou pelo negócio, pediu sua parte. Homero fez as contas, comprou a parte do amigo morto. Aí é que começaram as angústias de Homero, que enrolou a viúva nas contas. O que mais o incomodava era a viúva, amiga da família, continuar a freqüentar a casa dele. A cada visita a viúva representava a prova viva – e falante – do crime que cometera. Ficara com pouca coisa, reclamava que o marido durante a vida fora unha-de-fome e, morto, lhe deixara sem pensão.
Meses se passaram e Homero imaginou que devolvendo o dinheiro para a viúva conseguiria aliviar a culpa. Inventou uma história intricada.
Que taxa? perguntou a viúva do sócio.
Ora, o importante é que o dinheiro eu vou depositar na sua conta. É melhor nem entender essas coisas financeiras do governo: taxas, multas, cobranças indevidas, ressarcimento. O governo também erra e às vezes corrige o erro. Não está feliz com o dinheiro que vai receber?
A surpresa de Homero foi ver que a devolução do dinheiro não aplacava a consciência pesada. Afinal cometera o delito, o dinheiro que por direito dava à viúva não o inocentava do crime. Tinha que pagar pelo crime que cometera.
Foi tudo isso que Homero contou na delegacia e o delegado não dera bola. Sem tribunal ou juiz que o condenasse, Homero decidiu dar pena para si mesmo.
Confessou-se à esposa que não acreditou no que ouvia.
Bobagem, disse.
E como Homero insistisse, ela reprovou.
Deixa de ser idiota. E, além do mais, reparaste o erro. A viuvinha não está feliz? Então pára de maluquice que temos três filhos pra criar.
A pena que Homero se deu foi fazer de seu quarto uma cela. Mandou construir grade, tirou todos os móveis, colocou um catre e, quando achou que o quarto tinha cara de cadeia, trancou-se nele. Além da televisão, desfez-se de qualquer luxo. E mesmo a televisão, Homero a justificava: tinha direito a prisão especial por ter grau universitário. Estava na lei.
O cotidiano de Homero era desesperador. Comia frugalmente, recusando qualquer tentativa da mulher em oferecer a ele pratos suculentos ou guloseimas. Acordava cedo, fazia ginástica, via um pouco de televisão, lia e quando olhava o relógio eram apenas dez horas da manhã. Como o tempo rendia! Depois ficava olhando para as paredes nuas onde num canto fazia as marcas dos dias – como qualquer prisioneiro – que faltavam para sua liberdade.
Nada o demovia. Nem o pedido dos filhos, dos amigos, dos parentes. Era um preso exemplar. Tinha em mente que assim disciplinado podia ter a pena reduzida como faziam com os presos de bom comportamento. Assim ia vivendo, encarcerado, em paz com a consciência para desespero da esposa que teve que assumir o armarinho em lugar do marido.
Daqui só saio em sete anos, dizia anunciando o tempo da condenação.
Homero já cumprira seis meses de pena, quando teve uma idéia. Hesitou muito antes de definir-se. Afinal de contas, a idéia, embora contraditória, era uma idéia de prisioneiro – ele se justificava. Depois de tanto vacilar, por fim se convenceu. Iria cavar um túnel.
É só cavar com a colher todo dia um pouco, esconder a terra e, mais três meses, consigo chegar do outro lado da rua, arquitetava. E, pronto, liberdade!
Botero |
Foi inesperadamente, num dia de semana ordinário, que Homero pediu para ser preso. Como não havia cometido nenhum crime, passou por louco dentro da delegacia. E foi motivo de chacotas entre os policiais, ainda que acostumados a malucos e, principalmente, a certos elementos que, sabe-se lá a razão, gostavam de assumir a culpa por um delito que não cometeram.
Mas a história de Homero era diferente. Os doidos que se apresentavam culpando-se eram exibicionistas ou tinham outro tipo de deformação mental. Logo caíam em contradição e o delegado os ameaçava com falso testemunho e aí, diante de uma transgressão verdadeira, como num passe de mágica, os falsos culpados assumiam a mentira.
Homero sempre foi um homem pacato, dono de armarinho, morando em subúrbio, vida reta, nenhuma amante. Nunca cometera deslize: devolvia dinheiro encontrado na rua, se oferecia a depor quando assistia a um acidente de trânsito, enfim, era a virtude em pessoa. De tão virtuoso é que não pôde aceitar o crime que cometera.
O sócio de Homero, companheiro de muitos anos, morrera repentinamente. A viúva não se interessou pelo negócio, pediu sua parte. Homero fez as contas, comprou a parte do amigo morto. Aí é que começaram as angústias de Homero, que enrolou a viúva nas contas. O que mais o incomodava era a viúva, amiga da família, continuar a freqüentar a casa dele. A cada visita a viúva representava a prova viva – e falante – do crime que cometera. Ficara com pouca coisa, reclamava que o marido durante a vida fora unha-de-fome e, morto, lhe deixara sem pensão.
Meses se passaram e Homero imaginou que devolvendo o dinheiro para a viúva conseguiria aliviar a culpa. Inventou uma história intricada.
Que taxa? perguntou a viúva do sócio.
Ora, o importante é que o dinheiro eu vou depositar na sua conta. É melhor nem entender essas coisas financeiras do governo: taxas, multas, cobranças indevidas, ressarcimento. O governo também erra e às vezes corrige o erro. Não está feliz com o dinheiro que vai receber?
A surpresa de Homero foi ver que a devolução do dinheiro não aplacava a consciência pesada. Afinal cometera o delito, o dinheiro que por direito dava à viúva não o inocentava do crime. Tinha que pagar pelo crime que cometera.
Foi tudo isso que Homero contou na delegacia e o delegado não dera bola. Sem tribunal ou juiz que o condenasse, Homero decidiu dar pena para si mesmo.
Confessou-se à esposa que não acreditou no que ouvia.
Bobagem, disse.
E como Homero insistisse, ela reprovou.
Deixa de ser idiota. E, além do mais, reparaste o erro. A viuvinha não está feliz? Então pára de maluquice que temos três filhos pra criar.
A pena que Homero se deu foi fazer de seu quarto uma cela. Mandou construir grade, tirou todos os móveis, colocou um catre e, quando achou que o quarto tinha cara de cadeia, trancou-se nele. Além da televisão, desfez-se de qualquer luxo. E mesmo a televisão, Homero a justificava: tinha direito a prisão especial por ter grau universitário. Estava na lei.
O cotidiano de Homero era desesperador. Comia frugalmente, recusando qualquer tentativa da mulher em oferecer a ele pratos suculentos ou guloseimas. Acordava cedo, fazia ginástica, via um pouco de televisão, lia e quando olhava o relógio eram apenas dez horas da manhã. Como o tempo rendia! Depois ficava olhando para as paredes nuas onde num canto fazia as marcas dos dias – como qualquer prisioneiro – que faltavam para sua liberdade.
Nada o demovia. Nem o pedido dos filhos, dos amigos, dos parentes. Era um preso exemplar. Tinha em mente que assim disciplinado podia ter a pena reduzida como faziam com os presos de bom comportamento. Assim ia vivendo, encarcerado, em paz com a consciência para desespero da esposa que teve que assumir o armarinho em lugar do marido.
Daqui só saio em sete anos, dizia anunciando o tempo da condenação.
Homero já cumprira seis meses de pena, quando teve uma idéia. Hesitou muito antes de definir-se. Afinal de contas, a idéia, embora contraditória, era uma idéia de prisioneiro – ele se justificava. Depois de tanto vacilar, por fim se convenceu. Iria cavar um túnel.
É só cavar com a colher todo dia um pouco, esconder a terra e, mais três meses, consigo chegar do outro lado da rua, arquitetava. E, pronto, liberdade!
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