quinta-feira, 22 de agosto de 2024

Mapa da sensatez, poema

 


 


 

 

 

 

As estradas

me conduzem aonde parti.

Os rios do pensamento,

turbulentos como um solo de jazz,

vão morrer num mar

de recuos e avanços.

A fronteira da minha sensatez

tem a ver com os limites

dos meus estados de sítio.

 

 

 

 

 

 

segunda-feira, 19 de agosto de 2024

Capítulo 11 de O viúvo
















            Meus olhos agora são de papel. Gosto da ideia de pensar em meus olhos como papel. Passei a vida inteira lendo, não tenho nada contra o cristalino, a retina, veias e músculos se transformarem em papel. Há realidade bastante no barco pregado na parede. É um Portugal de papel. O norte de Portugal transmuda-se nas janelas absurdas de Magritte. Fixo meus olhos ali. Meus olhos não navegam, mas enchem-se de maresia. Meu alheamento também tem cheiro – de mim.

            Ali está o porto, precário, diminuto, de pedra, antigo. É um pequeno píer de uma vila. Lá no fundo estão os casarios gregos da vila portuguesa. Não há gente. O barco mesmo posa sua fisionomia de madeira para a foto.

            O casario é branco e sobe encostas. Cada casa é um degrau branco. E as janelinhas, mais parecem escotilhas em terra seca, nos miram abertas ao sol quente e atlântico. Há uma secura ancestral na foto, embora em primeiro plano esteja o mar. Há também enorme doçura, uma doçura tão compacta e palatável que a sinto nos lábios, na língua mesma seca. E não o salgado da água que vejo. Só a maresia cheira; o casario adoça minha boca aberta.

           A mesa é meu cais. Em volta dela, discutem. Por que discutem um processo se pescadores cuidam de separar os peixes, abrir-lhes o bucho, destripá-los, escamá-los? onde o processo cabe neste mundo de guelras, barbatanas e água salgada? O processo não é náutico, mas é salgado. Nele cabem as escamas, nele estão as escamas que devem ser separadas do corpo do bicho de papel. Como o barco da foto, que parece balançar ao sabor das minúsculas ondulações da água, oscilo sob uma onda sonora.

            A foto está um pouco amarelada. Eu mesmo também perco a cor. Queria um espelho. Meu rosto decomposto e azul como o rosto do meu pai. Logo, contudo uma paz vilareja volta a me invadir. Receio que a paz, como a luz fugitiva, também escape de mim. Não terei mãos, nada que possa conter, segurar, prender, colocar em caixa, a paz que se escama.

            Uma inexistente onda, saída da foto, me balança. Agora não tenho dúvida: estou no porto de pedra e não em volta da mesa. Chego a sentir enjoo, a sensação ondulatória, o piso mole das águas ou o piso desequilibrado das embarcações.

            Aquele Portugal de papel me saca da mesa de modo arrebatador. O único elemento agora da foto de casarios brancos e do cais antigo sou eu. O que se fixa na minha mente não é a foto, mas a reunião que passa a ser apenas uma fotografia. Estão todos imobilizados. O barulho que ouço não são as vozes deles. É o barulho do mar. O rumor grande e atlântico do mar aberto.

(disponível também em e-book)

O viúvo, Brasília, Lge, 2004.






domingo, 18 de agosto de 2024

Chuvarada e raízes, poema

 


 

 


 

 

 

Chove tanto

que encharco minhas securas.

As ideias inundadas  

de rios sinuosos.

Uma das formas de tortura

é o pingo d’água.

Uma chuva

são vários instrumentos de tortura.

Mas a chuva também é bonançosa

e, casada com o sol,

faz a vida renascer.

Que ironia! Tudo em excesso arruína.

Por isso rego minhas fantasias

e uso a luz da razão

para não estragar

as raízes das minhas imaginações.