quinta-feira, 11 de junho de 2015

A ficção da ficção de Eça em Campos Matos



                  Adelto Gonçalves (*)
                                                           I
 
Depois de quase uma vida inteira dedicada ao estudo da obra eciana, com mais de trinta títulos publicados, o pesquisador A. Campos Matos (1928) decidiu se lançar àquele que considera o maior desafio de sua carreira literária, ao assumir-se também como ficcionista, mas sem deixar de lado o seu culto a Eça de Queiroz (1845-1900). E assim produziu este Diário íntimo de Carlos da Maia (1890-1930), que acaba de sair à luz pelas Edições Colibri, de Lisboa, em edição restrita de 450 exemplares, dos quais 200 foram numerados e rubricados pelo autor.
Quem conhece a obra de Eça de Queiroz bem sabe que Carlos da Maia é personagem do célebre romance Os Maias (1888), protagonista do drama de incesto involuntário com Maria Eduarda, sua irmã dois anos mais velha. Inspirado nessa vida tumultuada, Campos Matos escreveu o que seria não a continuação de Os Maias, mas o imaginário percurso de seu protagonista durante o período de 40 anos (1890-1930) registrado por ele mesmo, depois do insólito caso familiar.
Nascido em Lisboa em 1855, Carlos da Maia teria sido assassinado em 1930, aos 75 anos de idade, a tiro de zagalote (bala de espingarda) por um vizinho inconformado com a perda de um terreno baldio de 350 hectares que lhe dizia pertencer, mas que um juiz da Régua acabara de atribuir ao patrimônio da quinta de Santa Olávia, propriedade da família Maia à beira do rio Douro, em frente à estação de Aregos, local em que se passa boa parte do romance de Eça de Queiroz.
Estas informações constam de um intróito que o filho de Carlos da Maia, Carlos Afonso, teria escrito para um hipotético terceiro volume de Os Maias, empreitada da qual teria desistido ao descobrir a existência do diário deixado pelo pai e preservado por sua mãe, Rosália, a filha do caseiro de Santa Olávia com quem seu progenitor casaria depois do conturbado caso de incesto com Maria Eduarda.
Obviamente, trata-se de um exercício de ficção da ficção a que Campos Matos se devotou, seguindo as pegadas de outros autores que também se inspiraram em personagens alheias. Campos Matos no posfácio que escreveu para este livro cita, entre outros, os casos do filósofo espanhol Ortega y Gasset (1883-1955), que escreveu Meditações do Quixote (1914), uma das principais obras de filosofia do século XX, do poeta e ensaísta Vasco Graça Moura (1942-2014), autor de Os Lusíadas para gente nova (2012), um diálogo com o texto de Luís de Camões (1524-1580), e o próprio Eça de Queiroz que produziu Correspondência de Carlos Fradique Mendes (1900), com base no primeiro Fradique, que é uma criação coletiva.
Sem contar a ficção inspirada em Eça de Queiroz artisticamente mais bem sucedida até aqui que é A bela angevina (2005), de José-Augusto França (1922), que não se baseia em personagem eciana, mas em quatro fotografias de uma desconhecida de Angers que foram localizadas em 1989 no espólio do escritor pela professora Beatriz Berrini. Vista ao lado de Eça numa das fotos, a desconhecida possivelmente teria vivido um enlace amoroso com o escritor durante o período em que este morou na França.
                                              
                                               II
É de se lembrar que a narrativa de Eça de Queiroz em Os Maias tem início com Pedro da Maia, filho de Afonso da Maia, personagem educado de acordo com padrões românticos, que se casa com Maria Monforte, filha de um traficante de escravos e, por isso, também conhecida como “a negreira”. Dessa união, nascem dois filhos: Maria Eduarda e Carlos. O casal se separa logo depois. A menina fica com a mãe e o menino com o pai, que se suicida, depois que a mulher foge com um napolitano.
Descendente de uma família nobre da Beira, educado pelo avô, segundo padrões britânicos, Carlos da Maia forma-se em Medicina, mas nunca exerceria a profissão a sério. É um desocupado que está sempre acompanhado de João da Ega, ex-estudante de Direito em Coimbra, um tipo espirituoso e adepto do Naturalismo em Literatura.
Após alguns encontros amorosos com a condessa Gouvarinho, Carlos conhece, por intermédio de Dâmaso Salcede, um tipo medíocre e balofo, a mulher de Castro Gomes, um brasileiro rico, e apaixona-se por ela. A amada rompe com Castro Gomes, com quem não era casada legalmente, e vai viver com Carlos da Maia, acompanhada de uma filha, criança ainda. É quando Joaquim Guimarães, um velho jornalista, entrega a João da Ega uma caixa de documentos a ele confiada por Maria Monforte em Paris, para que ele a encaminhasse a Carlos. Este julgava que a irmã, como a mãe, estivesse morta há muito tempo.
Ega lê os documentos e, aterrorizado, vai mostrá-los a Carlos: ele e sua amada, Maria Eduarda, a antiga madame Castro Gomes, eram irmãos. Desnorteado, Carlos volta a encontrar-se com a irmã, numa atitude de incesto consciente, de que, mais tarde, arrepende-se. Surpreendido com o reaparecimento da neta, que surgia como amante do irmão, o austero Afonso da Maia falece. A situação entre os irmãos só é solucionada após o funeral: Maria Eduarda, com a identidade esclarecida e seus direitos reconhecidos, volta para Paris, refaz sua vida e lá se casa. Já Carlos da Maia viaja para a América e o Japão, em companhia de Ega. Só dez anos mais tarde retornaria a Lisboa, fixando depois residência também em Paris, onde alia a falta do que fazer ao diletantismo.
           
                                               III
Na ficção de Campos Matos, no começo de 1890, Carlos da Maia encontra-se a viver sozinho já havia dois anos num apartamento dos Champs Elysées, quando decide começar a registrar acontecimentos e reflexões que lhe “turbilhonam a mente”. É a época do ultimato inglês, uma advertência em forma de telegrama enviado ao governo português pelas autoridades inglesas, em que era exigida a retirada imediata das forças militares portuguesas dos territórios entre Angola e Moçambique, que correspondem aos atuais Zimbabwe e Malawi.
Caso a exigência não fosse aceita por Portugal, a Inglaterra avançaria com uma intervenção militar. Diante da humilhante capitulação, Carlos da Maia faz uma reflexão que espelha boa parte do pensamento da elite lusa ilustrada ainda hoje em relação aos seus antepassados: “(...) Tão miseráveis, sem recursos na metrópole, mas sonhamos ainda com um grande império, para nos estiolar e enfraquecer. Absurda coisa! Não temos capacidade para progredir e trabalhar nesta nesga de terra que definha a olhos vistos, mas pretendemos tomar conta de quase um continente!...”.
O desalento de Carlos da Maia com a própria elite portuguesa da qual descende é visível na anotação que faz em 1914, à época da deflagração da Primeira Guerra Mundial: “Os nossos soldados, analfabetos quase todos, e pessimamente preparados, vão ser trucidados por alemães bem armados e bem treinados”, prevê, citando em seguida palavras de Eça n´As Farpas: “(...) A Europa pensará que imensos territórios, pelo facto lamentável de pertencerem a Portugal, não devem ficar perpetuamente sequestrados do movimento da civilização”.
O diário registra acontecimentos de que Carlos da Maia participa como médico estagiário num hospital de Paris e, depois de uma viagem a Londres e uma passagem pelo Porto, o seu refúgio na quinta de Santa Olávia, onde continua o seu trabalho de espectador do mundo. Por todo o diário, não faltam reflexões sobre os acontecimentos que envolvem Portugal e o mundo nem alusões musicais ou referências à grande pintura e a religiões (em que ridiculariza o fenômeno do aparecimento de Nossa Senhora de Fátima a três pastorinhos analfabetos) e muito menos a autores franceses, como Honoré de Balzac (1799-1850), Guy de Maupassant (1850-1893), Marcel Proust (1871-1922) e Gustave Flaubert (1821-1880), e portugueses, como Antero de Quental (1842-1891), Camilo Castelo Branco (1825-1890), António Feliciano de Castilho (1800-1875), António Nobre (1867-1900), António Feijó (1859-1917), Pinheiro Chagas (1842-1895), Oliveira Martins (1845-1894), Raul Brandão (1867-1930), Aquilino Ribeiro (1885-1963), José Régio (1901-1969), Fernando Pessoa (1888-1935) e Mário de Sá-Carneiro (1890-1916), ou ainda a Machado de Assis (1839-1908) e, naturalmente, a Eça de Queiroz, seu criador. De fato, Carlos da Maia não só se refere várias vezes ao seu criador como conta sobre as ocasiões em que esteve bem próximo dele sem se atrever a lhe dirigir a palavra.
A tal ponto chega a recriação que Campos Matos faz de personagens e ambientes ecianos que, às vezes, tem-se a nítida impressão que se lê o próprio Eça de Queiroz. É como se Campos Matos quisesse escrever o livro (ou o terceiro volume de Os Maias) que Eça escreveria se a vida não lhe tivesse sido breve, ao lhe reproduzir com perfeição o sarcasmo e a ironia, como o faz neste trecho em que Carlos da Maia analisa a própria atividade de ficcionista: “(...) Devo dizer a este propósito que é necessário ter cuidado com a veracidade do que escrevem os escritores, sobretudo os ficcionistas. Estão sempre prontos a sacrificar a verdade dos factos se entenderem que esse sacrifício lhes traz vantagens de forma e efeitos de estilo, ou satisfações à sua vaidade”.
É claro que isso só foi possível porque Campos Matos, à força do seu ofício de investigador, criou tamanha intimidade com Eça de Queiroz e sua obra que só mesmo de sua pena poder-se-ia esperar tal resultado. Um excepcional e feliz resultado.
 
                               IV
O arquiteto e historiador da literatura portuguesa Alfredo Campos Matos, nascido na Povoa do Varzim, como Eça de Queiroz, tem vasto currículo queiroziano, que começou com Imagens do Portugal Queirosiano (1976). É autor em grande parte do Dicionário de Eça de Queiroz, publicado em 1988, que deu lugar a uma edição aumentada em 1993 e, em 2000, ao Suplemento ao Dicionário de Eça de Queiroz. Aliás, do Dicionário de Eça de Queiroz está para sair uma terceira edição pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda, de Lisboa, que conta com numerosos colaboradores portugueses e estrangeiros.
Em 2014, Campos Matos publicou pela Editora Unicamp e Ateliê Editorial a edição brasileira (revista e aumentada) de Eça de Queiroz. Uma biografia, considerada desde que lançada em 2009 por Edições Afrontamento, do Porto, como a mais completa e mais rica biografia do romancista português. Ao final de 2014, publicou Eça de Queiroz – Correspondência (Adenda II), do qual é responsável pela introdução, organização e anotações. Publicado por Colares Editora, de Lisboa, o livro reúne duas cartas inéditas de Eça de Queiroz a Guerra Junqueiro (1850-1923), datada de 1878, e ao seu amigo Eduardo Prado (1860-1901), milionário brasileiro de quem se tornou amigo em Paris e um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras.
Publicou ainda Eça de Queiroz-Emília de Castro, Correspondência Epistolar (1995) e, posteriormente, Cartas de Amor de Anna Conover e Mollie Bidwell para José Maria Eça de Queiroz, cônsul de Portugal em Havana: 1873-1874 (1999). É também autor de Diálogo com Eça de Queiroz (1999), A Casa de Tormes, Inventário de um Patrimônio (2000), Viagem no Portugal de Eça de Queiroz (2000), A Igreja Românica de S. Pedro de Rates: Guia para Visitantes (2000), Eça de Queiroz, Marcos Bibliográficos e Literários (1845-1900), catálogo da exposição do Instituto Camões (2000), Ilustrações e Ilustradores na Obra de Eça de Queiroz (2001), O Mistério da Estrada de Ponte de Lima: António Feijó, Eça de Queiroz (2001), Sobre Eça de Queiroz (2002), Sete Biografias de Eça de Queiroz (2004), Dicionário de Citações de Eça de Queiroz (2005), Eça de Queirós, Postais Ilustrados (2006), A Guerrilha Literária Eça de Queiroz-Camilo Castelo Branco (2008), Eça de Queiroz. Correspondência (2008), Eça de Queiroz-Ramalho Ortigão, Retrato da “Ramalhal Figura” (2009), Silêncios, Sombra e Ocultações em Eça de Queiroz (2011) e Sexo e Sensualidade em Eça de Queiroz (2012), entre outros. No total, já publicou 36 livros, incluindo obras sobre arquitetura.
 
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Diário íntimo de Carlos da Maia (1890-1930), de A. Campos Matos. Lisboa: Edições Colibri, 421 págs., 20 euros, 2014. Site: www.edi-colibri.pt E-mail: colibri@edi-colibri.pt
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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Os vira-latas da madrugada (Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1981), Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o perfil perdido (Lisboa, Caminho, 2003) e Tomás Antônio Gonzaga (Academia Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2012), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br


                                                                    

terça-feira, 9 de junho de 2015

Herberto Helder, Maria Estela Guedes







                Na morte de Herberto Helder

                                                      Adelto Gonçalves (*)

 

                                                           I

 

            Se Fernando Pessoa (1888-1935) foi a figura de proa da poesia portuguesa na primeira metade do século XX, na segunda esse espaço foi ocupado por Herberto Helder (1930-2015), um poeta fascinado pelo poder encantatório da linguagem, decorrente do uso ritual da palavra, como observou Maria Estela Guedes num dos dois livros que escreveu sobre essa personagem mítica, Herberto Helder, o poeta obscuro (Lisboa, Moraes Editores, 1979).

            De fato, como observa a autora no segundo livro que dedicou à produção do poeta, A obra ao rubro de Herberto Helder, publicado em 2010 pela Escrituras Editora, dentro da Coleção Ponte Velha, em edição apoiada pelo Ministério da Cultura de Portugal e pela Direção-Geral do Livro e das Bibliotecas (DGLB/Portugal), em todos os seus poemas, está presente um tipo de magia fundada no trabalho poético sobre as palavras. E que, especialmente, procura imagens na Natureza. Esse trabalho pode ser sintetizado nestas palavras de Herberto Helder, que estão no prefácio de seu livro As magias (1987): (...) Mas as palavras não são apenas palavras. Tem longas raízes tenazes mergulhadas na carne, mergulhadas no sangue, e é doloroso arrancá-las.

            Arrancar palavras da alma parece ter sido a obsessão desse poeta que, a exemplo de José Saramago (1922-2010), único Prêmio Nobel da Literatura Portuguesa, não colocou na parede diploma de nenhuma universidade. Se Saramago, que também foi bom poeta, além de excepcional romancista, não freqüentou os bancos de nenhuma faculdade, Herberto Helder chegou a matricular-se na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, mas não concluiu nenhum curso. Formou-se, isso sim, na universidade da vida. Sem contar que sempre foi um ávido leitor, não só de poetas e romancistas europeus, como de poetas latino-americanos como o mexicano Octavio Paz (1914-1998), o argentino Jorge Luís Borges (1899-1986) e o chileno Vicente Huidobro (1893-1948).

            Como se lê na biografia Herberto Helder, a obra e o homem (Lisboa, Arcádia, 1982), que escreveu a professora Maria de Fátima Marinho, vice-reitora da Universidade do Porto, o poeta, nascido no Funchal, sempre esteve na contramão da sociedade bem comportada. Por isso, sua figura, a partir da notoriedade de seus versos, passou a ganhar uma aura mítica, que só aumentou nos últimos anos, depois que se refugiou num pretenso anonimato, recusando-se a receber prêmios literários, como o Fernando Pessoa, na década de 90, e a conceder entrevistas e até a deixar-se fotografar.

            Em linhas gerais, viveu uma vida em construção, sem muito apego a valores burgueses: foi propagandista de produtos farmacêuticos, redator de publicidade e outros ofícios. Sabe-se também que viveu precariamente como imigrante em países como França, Holanda e Bélgica, onde igualmente desempenhou trabalhos que os naturais do lugar se recusam a fazer. Em Antuérpia, teria sido guia de marinheiros e turistas nos meandros da zona do meretrício. E até cantor de tangos.

Só em 1960, depois de voltar a Lisboa, conseguiu um emprego mais estável como encarregado das bibliotecas itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian que viajavam pelas vilas e freguesias.  Foi ainda repórter e redator por dois anos de uma revista em Angola, às vésperas da derrubada do regime colonial. Em Lisboa, atuou também em TV e Rádio.

            Morto o poeta, naturalmente, agora abundam os elogios das fontes oficiais, mas a verdade é que Herberto Helder, ainda que tenha publicado uma vasta obra, foi um poeta marginal e desconhecido nos meios criadores de arte em Portugal por muito tempo – e mais ainda pelo público e até mesmo pelos acadêmicos brasileiros. Só nos últimos tempos passou a ser mais reverenciado e seus livros procurados – um ou outro chegou a alcançar tiragem de cinco mil exemplares, o que é surpreendente em se tratando de poesia. Se sua poesia transcendeu a de Fernando Pessoa, ainda não se pode dizer. Se não chegou a tanto, passou perto.

                                                          

                                                           II

            Em A obra ao rubro de Herberto Helder, Maria Estela Guedes, além do fascínio do poeta pelo misticismo, destaca a sua atração pelos aromas. E cita um verso de seu primeiro livro, O amor em visita (1958), em que ele põe no papel uma de suas mais espantosas imagens: Dai-me uma mulher tão nova como a resina / e o cheiro da terra. E destaca outro do mesmo poema em que vai buscar na Natureza e nos aromas a matéria-prima de seu fazer-poético: E as aves morrem para nós, os luminosos cálices / das nuvens florescem, a resina tinge / a estrela, o aroma distancia o barro vermelho da manhã.

            Maria Estela ressalta a liberdade de expressão de Herberto Helder que, em A faca não corta o fogo (2008), ultrapassa os limites do bom gosto burguês, com imagens insólitas, experimentalismo contínuo, mundo mágico, que o aproxima da poesia surrealista. E lembra de um poema constante desse livro em que o poeta pede que, quando de sua morte, antes de alguém se preocupar com cerimônias fúnebres, “deve certificar-se de que está realmente morto, matando-o”.

            O livro de Maria Estela Guedes analisa também os textos que o jornalista Herberto Helder escreveu para o Notícia, de Luanda, assim chamado no masculino, embora fosse uma revista semanal, até então nunca estudados nem inventariados. Sob a rubrica Mesa da Redacção, o autor publicou notas e comentários de livros, exposições, filmes e outros temas, em que se destacam a leveza e informalidade dos textos. Há textos também em que se assina com pseudônimo porque aquela era uma época em que todas as edições só saíam a público depois de visadas pela Comissão de Censura do regime salazarista.

            Não se pode deixar ainda de citar a afinidade que Maria Estela assinala em Herberto Helder com a geração beat, especialmente no livro de ficção Os passos em volta (1963), em que, aparentemente, o autor valeu-se de sua experiência como viajante ao léu por países da Europa, bem ao estilo da contracultura das décadas de 60 e 70.

Como se vê, para quem no Brasil ainda pouco conhece da obra de Herberto Helder ou o descobriu agora, quando a sua morte ofereceu a oportunidade aos jornais e à mídia digital de reverenciar o seu nome, uma boa partida é ler este livro de Maria Estela Guedes, que desde a década de 70 dedicou-se em boa parte a estudar a sua produção. Aliás, o texto deste livro e de outros trabalhos de Maria Estela sobre o poeta podem ser acessados no site www.triplov.com.

                                               III

Maria Estela Guedes (1947) nasceu em Britiande, Lamego, onde mora hoje, mas viveu na Guiné Bissau de 1956 a 1966, ao tempo do colonialismo que coincidiu também com o de sua formação pessoal. Reuniu seus poemas evocativos dessa época e de uma Guiné-Bissau que já não existe no livro Chão de Papel (Lisboa, apenas Livros, 2009). Diretora do site Triplov, um dos mais significativos de divulgação das literaturas de expressão portuguesa, faz parte da Associação Portuguesa de Escritores, da Sociedade Portuguesa de Autores, do Centro Interdisciplinar da Universidade de Lisboa e do Instituto São Tomás de Aquino.

Entre seus livros, estão também SO2 (Lisboa, Guimarães Editores, 1980); Eco, Pedras Rolantes (Lisboa, Ler Editora, 1983); Crime no Museu de Philosophia Natural (Lisboa, Guimarães Editores, 1984); Mário de Sá Carneiro (Lisboa, Editorial Presença, 1985); O Lagarto do Âmbar (Lisboa, Rolim Editora, 1987); Ernesto de Sousa – Itinerário dos Itinerários (Lisboa, Galeria Almada Negreiros, 1987); À Sombra de Orpheu (Lisboa, Guimarães Editores, 1990); Prof. G. F. Sacarrão (Lisboa, Museu Nacional de História Natural-Museu Bocage, 1990); Tríptico a solo (São Paulo, Editora Escrituras, 2007); A poesia na Óptica da Óptica (Lisboa, Apenas Livros, 2008); Quem, às portas de Tebas? – Três artistas modernos em Portugal (São Paulo, Editora Arte-Livros, 2010); Tango Sebastião (Lisboa, Apenas Livros Editora, 2010); Arboreto (São Paulo, Arte-Livros, 2011); Risco da terra (Lisboa, Apenas Livros, 2011); Brasil (São Paulo, Arte-Livros, 2012); e Um bilhete para o Teatro do Céu (Lisboa, Apenas Livros, 2013), entre outros.

Como teatróloga, escreveu O Lagarto do Âmbar, levado à cena em 1987, no Acarte, na Fundação Calouste Gulbenkian, com direção de Alberto Lopes e interpretação de João Grosso, Ângela Pinto e Maria José Camecelha, e cenografia de Xana; A Boba, levado à cena em 2008 no Teatro Experimental de Cascais, com encenação de Carlos Avilez, cenografia de Fernando Alvarez e interpretação de Maria Vieira.

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A obra ao rubro de Herberto Helder, de Maria Estela Guedes. Organização e prólogo de Floriano Martins. São Paulo: Escrituras Editora, 190 págs., 2010, R$ 20,00. Site: www.escrituras.com.br

E-mail: escrituras@escrituras.com.br

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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Os vira-latas da madrugada (Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1981), Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o perfil perdido (Lisboa, Caminho, 2003) e Tomás Antônio Gonzaga (Academia Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2012), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br

domingo, 7 de junho de 2015

'Hoje, a cultura consiste em ofertas', diz Bauman





Há dois séculos, a cultura era vista como um agente de mudança, sua missão era educar, esclarecer e permitir novos pensamentos e criações. Segundo o sociólogo Zygmunt Bauman, a cultura se transformou em um objeto de moda, uma loja com prateleiras superlotadas.
"O 'projeto iluminista' conferiu à cultura o status de ferramenta básica para a construção de uma nação, de um Estado e de um Estado-nação", escreve Bauman em "A Cultura no Mundo Líquido Moderno". "Hoje, a cultura consiste em ofertas, e não em proibições; em proposições, não em normas".

Zygmunt Bauman rememora os deslocamentos históricos do conceito de cultura .

O que foi separado em "alta cultura", gosto médio ou "filisteu", característico da classe média, e "vulgar" não tem mais suas fronteiras tão delimitadas como era décadas atrás.
Para Richard A. Peterson, professor do departamento de sociologia da Universidade de Vanderbilt (Nashville, nos EUA), nos tornamos "onívoros" no que diz respeito ao consumo cultural.
"O princípio de elitismo cultural é onívoro --está à vontade em qualquer ambiente cultural, sem considerar nenhum deles seu lar, muito menos o único lar", conta Bauman.
"A Cultura no Mundo Líquido Moderno" traz uma reflexão sobre a dissolução das hierarquias num mundo marcado pela globalização e pelo imediatismo. Em uma cultura líquida, nenhuma tendência dura mais do que uma piscadela.
"Em suma", diz o autor, "a cultura da modernidade líquida não tem um 'populacho' a ser esclarecido e dignificado; tem, contudo, clientes a seduzir".
Entre outros títulos, Bauman, professor emérito das universidades de Varsóvia e de Leeds, é autor de "Danos Colaterais: Desigualdades Sociais numa Era Global", "Modernidade Líquida", "Amor Líquido", "O Mal-Estar da Pós-Modernidade", "Isto Não É um Diário", "Confiança e Medo na Cidade" e "Capitalismo Parasitário".


(fonte: Livraria da Folha)