sábado, 12 de março de 2011

O mal de Montano, de Enrique Vila-Matas


                                                                                  Ronaldo Costa Fernandes

            Se você está lendo estas linhas, é bem capaz de ter o mal de Montano. A explicação da doença e a sintomatologia encontram-se no romance O mal de Montano, de Enrique Vila-Matas (Cosac Naify, 2005), misto de ensaio, autobiografia, ficção e diário. O mal de Montano é o leitor condenado a ver o mundo através do prisma da literatura. A partir da descoberta em si do mal de Montano, o narrador do romance passa a divagar sobre a condição do escritor, o fim da literatura, a oposição vida x literatura. Construído em forma de ficção pura, na primeira parte, onde identifica o mal a partir de seu filho, dono de uma livraria em Nantes, o narrador, nas quatro partes seguintes, desfaz a idéia de construção ficcional e passa a escrever um estranho diário que se mescla com não menos insólito dicionário de autores que não suportam o peso da condenação de viver por intermédio da literatura.
Vila-Matas, sem rumo definido nem trama concreta, sedimenta a narrativa na pujança da frase e da construção em novelo, onde cada fio leva a outro emaranhado e assim sucessivamente. Desta forma, ao ousar enfrentar a literatura dita convencional, Vila-Matas, por via das dúvidas, ancora no porto seguro do já conhecido. O leitor culto e freqüentador das páginas da literatura contemporânea se sente à vontade e o que supostamente existe de inovador na literatura de Vila-Matas não perturba a leitura do leitor (como até hoje perturbam as experiências joycianas) e não sofre a angústia do desconhecido ou o desconcerto do novo.
            O livro é exuberante de citações: Sergio Pitol, Gide, Renard, Musil, Kafka e Gombrowicz, entre outros. Abundam comentários sobre diários e escritores. Em outro autor, poderiam aparecer de forma cerebral ou pesada. Mas Vila-Matas consegue transformar temas eruditos em comentários que fazem contraponto às citações de forma amena e em tom também ficcional. O que dá o matiz humano é o desespero do narrador que se torna desabafo contra a sufocante ansiedade de quem vive lendo e escrevendo, logo o drama incorpora-se à tragédia íntima que poderia ser de outra origem, mas aqui se realiza no anátema do literato.
            Se a trama é escassa, os personagens são restritos: Tongoy, um ator com a feiúra de um draculino (o outro do narrador, um apaixonado pela vida que execra a literatura) e Rosa, sua companheira. O romance se passa num espaço vago e difuso, em Barcelona, Chile, aldeias e ilhas portuguesas e até a Suíça. Ao desprezar a convenção, Vila-Matas cairia no relato solipsista, o que não deixa de acontecer, embora ele contorne com leveza, humor e uma construção aliciadora que, mesmo nada acontecendo, o leitor sente-se levado pelo clima de tensão que a própria discussão e linguagem do autor provocam.
            Há momentos em que o leitor mais avisado pensa que o romance pode perder o prumo. A maioria das discussões que Vila-Matas traz para seu romance já foi explorada. Nos anos 60 do século passado, discutiam-se fervorosamente o fim da literatura, o esgotamento de formas e de tema e foi quando, depois das vanguardas dos anos 20 no mundo inteiro, a literatura mostrou maior inventividade. Os momentos inférteis também já foram temas. A utilização do diário já é explorada há séculos. A questão do duplo tem exemplo magistral no conto “William Wilson”, de Poe. Perpassa também a narrativa o fantasma de Borges, várias vezes citado, pois o argentino, antes de Vila-Matas, criou toda essa ambiência, quando livros e autores passam a ser personagens de ficção. A cada temática proposta ou desvio de rumo da narrativa de Vila-Matas tememos que repita procedimentos anteriores. Vila-Matas intui o fenômeno e, antes que caia na armadilha, cita com desconcerto um autor, comenta o fragmento e parte para outra experiência de narração.
            Mesmo a crítica que faz ao vampirismo dos profissionais do mundo editorial e a acomodação dos escritores comprometidos com a indústria cultural não dá crédito a Vila-Matas de excluir-se deste universo nem de ficar fora dos “vendáveis”, na categoria dos eruditos e com ares de literatura de transformação. Saem todos satisfeitos: os leitores que lêem bom romance (porque é bom romance) e o autor que se crê renovando a literatura (porque é um ato que tem alvo e mira, mas a bala é de festim). Um bom romance; principalmente se você sofre do mal de Montano.
           

imagem retirada da internet

quinta-feira, 10 de março de 2011

Moacyr Scliar por Edmílson Caminha

O DERRADEIRO GALOPE DO CENTAURO



Em Moacyr Scliar, tão notável quanto o escritor ilustre era o ser humano digno, a pessoa ética, o cidadão exemplar que mereceu, ao longo da vida que lhe foi dada viver, o afeto dos amigos e o reconhecimento dos leitores. Entrevistei-o no ano de 1987, em Porto Alegre, quando me recebeu na Secretaria da Saúde, onde trabalhava como médico sanitarista. Publicada primeiramente no Diário do Nordeste, de Fortaleza, a conversa também se acha no meu livrinho Palavra de escritor (Brasília : Thesaurus, 1995). Em carta que gentilmente me enviou, o entrevistado faz elogios ao texto, e diz que providenciou cópias para entregá-las aos jornalistas e estudantes que o procuram.
À pergunta sobre como a condição de judeu se revelava em sua obra, Scliar respondeu, com a inteligência e o saber que todos admirávamos:
— Os povos da antiguidade legaram ao mundo grandes monumentos, como as pirâmides, os templos, importantes obras de arte; o povo judeu nada deixou a não ser um livro, mas um livro que condicionou o destino de milhões de criaturas neste nosso mundo. Essa veneração pela palavra escrita, pelo livro de maneira geral, na minha família era muito acentuada: embora pobres, nunca nos faltou, a mim e aos meus irmãos, dinheiro para comprar livros. Desde cedo fomos induzidos ao hábito de escrever, tanto mais que a minha mãe era professora primária, do próprio colégio onde eu estudava, e me estimulou muito a escrever. Além disso, no contato com os imigrantes ouvi muitas e muitas histórias interessantes.
Uma delas foi, certamente, a que lhe contou o pai José, imigrante russo chegado ao Brasil na década de 1920. Ouvi-a narrada por Moacyr no ano passado, quando juntos participamos da Feira do Livro de Guarulhos:
— A viagem de navio, longa e desconfortável, foi um pesadelo. Ao desembarcar com a família, a aparência daquele menino de oito anos devia ser péssima, pela pobreza dos trajes, pela fome estampada no rosto e pelo medo que lhe dava o país estranho em que punha os olhos pela primeira vez. Sensibilizado pela expressão de sofrimento, um homem se aproxima e lhe entrega... uma banana. Era o que podia oferecer, antes que o pequeno desfalecesse e fosse de encontro às pedras do cais. Ocorre que a generosidade trouxera um problema para a criança: que diabo de fruta era aquela? Como comê-la? Se fosse maçã, uva, pera, cultivadas nos campos da Rússia... Mas aquela coisa amarela, meio curva, que jamais vira nem desenhada em livros? José olhou, examinou e, afinal, decidiu: começou a descascá-la, jogou fora o que lhe pareceu um caroço meio mole... e comeu a casca!
Muitos anos depois, Scliar ouviria do pai a conclusão que lhe soava como a moral da história:
— Sabe que comer casca de banana não é assim tão ruim como a gente pensa? Até que dá pra engolir, principalmente quando se está com fome...
Essa, a experiência de vida e a sabedoria humana que o escritor converteu em ficção da melhor qualidade, a exemplo do romance O centauro no jardim. Em 27 de fevereiro, aos 73 anos, Moacyr Scliar, com a discrição e a elegância que lhe eram próprias, cavalgou pela derradeira vez o centauro, mito que tanto o fascinava, pois, metade homem e metade cavalo, é a um só tempo realidade e fantasia, as duas grandes matérias de que se faz a literatura. Partiu a galope rumo à eternidade, onde campeará para sempre nas coxilhas celestes, um suave e luminoso pampa que não tem começo nem fim...