quarta-feira, 6 de março de 2013

Francisco Carvalho, por Hildeberto Barbosa Filho




Morre, aos 86 anos, o poeta Francisco Carvalho, cearense de Russas. Autor de vasta obra e ganhador do Prêmio Bienal Nestlé, com o livro Quadrante solar (1982), deixa uma herança lírica de altitude incomum, na poesia brasileira contemporânea, mesmo que desconhecido pelos dispositivos midiáticos e pela indiferença do circuito editorial dos grandes centros econômicos do país.

A grande maioria de seus livros, cerca de 30 títulos, todos de poemas, foram publicados pela Imprensa Universitária da Universidade Federal do Ceará, em tiragens pequenas e de precária distribuição. Radicado em Fortaleza e pertencente ao quadro de funcionários da Universidade, viveu vida recolhida, distante dos movimentos literários e apenas dedicada, de corpo e alma, ao silencioso e solitário trabalho da criação poética. Nele, quantidade e qualidade convivem em perfeito equilíbrio, sobretudo se levarmos em conta o edifício estético que constrói a partir dos materiais que a tradição lhe confere e que a modernidade lhe põe à disposição. Se há, em Francisco Carvalho, o refinado cultor das formas fixas, sobretudo o soneto, e do verso metrificado, em especial o decassílabo, além de outros paradigmas poéticos sedimentados no tempo, há, também, o ousado e inventivo tecedor de imagens radicais e visionárias, responsável pela flexibilidade e pela irradiação semânticas de seus poemas.


Coexistem em sua dicção lírica, por exemplo, a vertente órfica e celebratória por onde perpassa uma intensa empatia para com os elementos naturais e, noutra clave, o toque epitalâmico, sensual e erótico em torno do corpo da mulher amada; o percurso mítico, quer centrado na cartografia dos deuses e eventos clássicos, gregos e latinos, quer na farândola multifária dos motivos bíblicos; a nota social e participante a descortinar uma consciência crítica e inconformada perante o modelo econômico capitalista, com suas intrínsecas distorções e o insuperável esvaziamento dos fundamentos éticos na relação do capital com o trabalho, e toda uma linhagem, diria mágica e delirante, onírica e fantasmática, translógica e surreal, atenta às imperceptíveis virtualidades das coisas e dos fenômenos, como se fora o sinal atômico que imprime unidade, coesão e coerência a sua poesia singular.

 

A esta última componente de sua performance poética associa-se o traço lúdico e exploratório, não somente em face do tecido espesso das metáforas, sinestesias, oxímoros e anáforas, paralelismos e personificações de que é pródiga a mobilidade de seu estilo e da sua linguagem, mas, ainda, para atender, em função das correspondências entre som e sentido, como pensa Valéry; entre fundo e forma, entre expressão e conteúdo, as exigências rítmicas da musicalidade sem a qual um verdadeiro poema não se põe de pé.

 

Veja-se, a título de exemplo, a estrofe VIII, de “Canção do pote”, texto emblemático, que abre a coletânea O tecedor e sua trama: “O pote parece um pêssego / parece um pântano primordial / parece o primeiro poema do povo primitivo / parece um pícaro pronto para o palco / parece um pensamento pré-histórico / parece um pêndulo parado no portal de pedra do paraíso”. Se o ludismo comparece a construções como esta, não se descola, não obstante, do investimento de sentido e de significação curiais ao discurso poético, na medida em que atiça e provoca a sensibilidade e a imaginação do leitor na captação do objeto descrito. Na verdade, não apenas descrito a partir de um recorte naturalista, porém, sobremaneira, sugerido e exposto, assim, à fantasia criadora, que é do poeta e que também é do leitor.


O ludismo, em momentos como este, e são tantos e tantos no poemário de Francisco Carvalho, não se esgota tão somente no mero jogo de palavras, no artificialismo dos trocadilhos lexicais ou no simples processo de palavra-puxa-palavra, tão cultivados por certas tendências da poesia moderna. Talvez mais modernista que moderna! Aqui, nesta única estrofe, como que correm as águas atávicas do rio “primordial” da poesia enquanto linguagem encantatória das coisas, linguagem primeva que se confunde, em sua plenitude semântica e coralidade auditiva, com o gesto fundador.


Esta “Canção do pote”, no seu ato de reativação perceptiva, parece reinventar o objeto artesanal em suas sugestões mágicas e alquímicas, trazendo à tona – todo o subterrâneo vocabular do texto como que se abre à invasão aquática das imagens míticas – a figura paterna, isto é, a origem do patrimônio e da identidade que, no corpo do poema, transmuta o singular e o particular da vivência poética em símbolo universal, cristalizado na linguagem e emoldurado no poema.


A estrofe X, todo um soneto, como que fecha a esfera absolutamente aberta desta viagem verbal que faz de um pote, de um anônimo e humilde pote, todo um oceano de visões mágicas e de sugestões indecodificáveis. Leiamos o soneto: “Este pote de argila vem da infância / porejando ilusões pelo caminho. / Mas o pote é uma esfera que balança / no espaço. Uma parábola de vinho. // Um dia olhei o espelho tenebroso / e vi apenas o mistério insólito. / Um jardim de utopias e esse rosto / que era o meu rosto imberbe de fantoche. // Vi o amor se extinguir numa fogueira. / As constelações grandes e as pequenas / e os cavalos dos elfos a galope. // Ao contemplar a água prisioneira / vi o perfil de um deus. Mas era apenas / o rosto de meu pai dentro do pote”.


A morte deste poeta, que nos deixa títulos como Barca dos sentidos, Artefatos de areia, Girassóis de barro, A concha e o rumor, O silêncio é uma figura geométrica, Centauros urbanos, Mortos não jogam xadrez e O sonho é nossa chama, entre tantos outros, reativa a verdade do lugar comum: é uma perda irreparável. A compensação, no entanto, reside em outra perspectiva, obviamente contrária à razão instrumental que rege as forças do mundo e do mercado.


Quero crer que os poetas são seres que não morrem. Os símbolos que eles criam, no palco da linguagem, constituem bens infungíveis, dotados de valor de uso, intangíveis, universais, transtemporais. De outra parte, ao compor sua obra, assegura Edmund Wilson, lendo Edna St. Vincent Millay, o poeta tenta “examinar a si mesmo e ao mundo onde se move, não o animal que foge e sofre”. “O nome do poeta”, diz o crítico norte-americano, “passa a indicar não mais um mero indivíduo com um local de nascimento e um domicílio legal, mas um dos pseudônimos assumido pelo próprio espírito”. Isto é, o poeta que morre, paradoxalmente, começa a habitar e a viver, através de sua cartografia de imagens, o espírito de todos que amamos a poesia. Francisco Carvalho é prova disto.