sábado, 22 de setembro de 2018

O homem e sua estatura, poema RCF


Que fita medirá meu tamaninho
admirado nas salas de cinema?
O medo se flexiona apenas na primeira
e minha pessoa.

Que métrica medirá meus versos
ou que metro me dirá
a forma, volume e dimensão
do pensamento inexato, da existência imprecisa,
dos sentimentos dúbios e do gosto duvidoso pelas baladas antigas?

O homem tem várias estaturas por dia.
E, na morte, dois pesos e duas medidas.
Medirá o caixão
e os anos da vida.
O peso da vida que se livrou
e o peso da morte que o encarcerou.
Mas a verdadeira medida do homem está em seu bolso:
na medalha de São Jorge, na chave do escritório,
no telefone anotado no guardanapo, no cartão de negócios:
o bolso mede o homem
estatura de miudezas
a culpa, o remorso, a heroicidade anônima
escondida, escura e de pano.

Que diâmetro tenho eu das minhas dúvidas?


(do livro Estrangeiro, Ed. 7Letras, Rio, 1997)

imagem retirada da internet: igorkmarques

sexta-feira, 21 de setembro de 2018

Raízes expostas, poema RCF





Matemática sem números,
álgebra sem cálculos,
tormento sem vento,
apenas o lamento
do vento no torno do dia.

Essa paralisia, voz que não escapa,
essa distonia, mão que não aperta,
é o fruto da terra crescendo pra dentro
como um tubérculo que afunda
no mar de terra.

Raízes expostas - são feridas da terra
no tecido seco depois das queimadas.
Secos também são os olhos camponeses
onde nada viceja.

Um dia o homem
é o gafanhoto e sua praga,
no outro é o semeador
que aplaca a chaga.




(do livro Terratreme, Fundação Cultural de Brasília, 1998)

imagem retirada da internet: diogo rivera






terça-feira, 18 de setembro de 2018

Primeiro dia do ano, O difícil exercício das cinzas


2011 06 01 - 5150 - Sandgeri - Rt 41 (thisisbossi) Tags: streets rural iceland panoramas farms roads plains sland reykjanes panoramics lavafields sandgerdi sandgeri reykjanesskagi sandgerthi
O calor tampa a garrafa do corpo.
Uma freada de ônibus
range o tempo
como uma porta empenada.
Hordas de vento úmido
pintam as paredes amolecidas.
Os minutos, presos nas grades
dos prédios, enferrujam
à lentidão do cozimento.
Ainda nos lembraremos
que nada se renova.
Só os prudentes
insistem em passear a esperança,
lobo preso à coleira,
até que ela morda o próprio dono.


(do livro O difícil exercício das cinzas. Rio: 7Letras, 2014)


foto: sverrir thorolfsson

segunda-feira, 17 de setembro de 2018

O último pio, poema RCF








Um dia meu tio inventou
de morar no sótão
do pensamento lá dele.
E se refugiou menino
na memória cheia de pios
em que vivia na gaiola da infância.
Desce daí da memória,
a gente pedia
e meu tio insistia
em cantar sabiá
entre as grades finas da tristeza.
Até que voou para onde não há canto
ou asa e tudo é gaiola vazia.
Quando ando triste
subo ao galho mais alto
da insensatez
e tento cantar
em linguagem de pássaro.
Rejeito o alpiste da razão
– miúdo e aglomerado –
este que se dá aos melancólicos
engaiolados pela solidão.


(do livro Memória dos porcos. Rio: 7Letras, 2012)


domingo, 16 de setembro de 2018

Queimada, poema RCF



A queimada
coloca a terra de cabeça
para baixo
deixando à mostra as raízes
retorcidas em seu gozo de fogo.

O fogo vai arando
               com sua foice de línguas,
               foice de lâmina mole
               mais cortante que fio da navalha.

O campo todo é plantação
de navalhas.
Estou só, perdidamente só,
olhos incandescidos,
na visão fervente do inferno na terra.

Olha bem, são as chamas sentinelas
que, esgalgadas,
vão se esmiuçando
na tropa vermelha
da terra arada
            pelos bois
           de morte e fúria
           que são a combustão
           do homem desesperado.

Tudo se amiúda
e cobrem a terra
a coivara
e as sementinhas
negras do nada
das cinzas.
Há silêncio
             e o crepitar atrasado
             do borralho
– é a terra que se asfixia
dos restos de si mesma
com a capa de chuva negra
que desveste
               quando deveria cobrir.




(do livro Terratreme, Fundação Cultural de Brasília, 1998)

imagem retirada da internet: frans krajcberg