sábado, 18 de agosto de 2018

A imaginação dos bastardos, RCF













Como serão os anjos na velhice?
Aqui onde a queda é ascensão
não duvido da existência
do hálito de Deus.
Somos as raízes mortas
cheirando a ferro,
respirando o incenso do monóxido de carbono.
As putas recolhem entre as pernas
a espécie sutil de réptil
seco da Johntex:
o pânico feito de elástico, músculo e noite.


(do livro Eterno passageiro, Ed. Varanda, 2004)

imagem retirada da internet: ascensão e queda

quinta-feira, 16 de agosto de 2018

O rosto-poema RCF





Na sombra, os rostos têm todas as feições
porque nela cabe a imaginação cuja cara é uma deusa sem rosto.

Por isso te vejo em todas as sombras –
                                    sombras do quarto ou da noite.

Por isso estás também
                                   em minha mente
                                   que vive em permanente sombra.



(do livro Estrangeiro, 7Letras, 1997)
imagem retirada da internet

quarta-feira, 15 de agosto de 2018

Os canhões do silêncio, José Chagas





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Aqui eu sou um pastor de luas
acompanho o crescer e o minguar de todas
sei as que a noite escolhe
para o seu alimento de poesia
e as que fornecem o mais puro leite de sonho

O que bebo de lua todas as vezes
dá para minha embriaguez mensal

Aqui o silêncio é história visível
porque o luar se faz memória branca
sobre o quanto de vida cabemos nós
em meses

                As luas contam meus dias
                medem meu tempo
                marcam todas as fases
                de minha solidão

O silêncio é maior quando elas o banham
e ele parece entrar limpo pelos olhos
como uma verdade posta no ar
para explicar a noite

               As luas são muitas porque
               nenhuma lua é a mesma lua
               quando volta a sua face
               para as coisas do mundo









(trecho interrompido do longo poema - todo um livro - com uma só temática em que o pano de fundo é a cidade de São Luís. José Chagas é um dos grandes poetas brasileiros e seu livro Os Canhões do Silêncio, uma obra-prima da literatura brasileira.)

Retratos londrinos, Charles Dickens

A delícia de ler Londres


O livro Retratos Londrinos ( Ed. Record, 306 páginas, R$ 35,00 ), de Charles Dickens, é fruto da experiência do jovem Dickens como jornalista. São 32 relatos, cujo tema é Londres. Mas a cidade ultrapassa sua condição de cenário. Ela pulsa, regurgita, polemiza, entristece, ri, revolta-se, chora, canta, esperneia, bufa, cansa-se, espraia-se e desdenha. As cidades vivem por intermédio de sua gente. A Londres de Dickens está dentro das pessoas tanto quanto as pessoas estão em Londres.

Nunca antes traduzido no Brasil, Retratos londrinos ( Sketches by Boz em inglês; o Boz do título é como Dickens assinava suas crônicas ) cria a contemporaneidade das obras feitas com a pena da qualidade. Não importa se essa Londres não existe mais. Importa a maneira singular de um autor vê-la, antes como “repórter” ficcional para depois se tornar um ficcionista repórter de seu tempo.

Neste livro de estréia de Dickens, o que chama atenção é a visão romanesca do autor. O romance é a arte da palavra que mais se aproxima da amplitude épica ( Lukács ). O escritor inglês aqui quis dar uma amplíssima visão da sociedade londrina. Uma visão majestosa, superior, de um semi-deus narrativo, cujos olhos tudo alcança e cuja percepção tudo comenta.

Uma leitura deliciosa, porque os relatos são fragmentos de um romance nunca escrito. São experimentações de um jovem narrador que se prepara para a empreitada de narrar o romance que viria com David Copperfield e Oliver Twist. É antes o narrador treinando a voz romanesca que a voz de um cronista medíocre. Por isso o livro encanta como um romance – o romance de Londres. Sem personagem principal e sem trama, mas recheado por personagens secundários, cenas cotidianas, observações da alma londrina.

Dickens discorre sobre viagens de carruagem, “ônibus” puxado a cavalo, a disputa oratória entre clérigos ou entre mocinhas que promovem obras beneficentes. O autor não quer pegar apenas os tipos londrinos, mas quer entender a alma da cidade: o lado ritualístico e caricatural do Parlamento, a classe média, os confrontos sociais, o amanhecer e o anoitecer da cidade, logradouros, pontes, lugares que se transformam, uma Londres que não existe mais. Aqui e ali, o jovem Dickens deixa escapar, ao lado de uma ironia feroz e um delicioso humor, a tristeza dos brechós. É reincidente, três ou quatro retratos tratam de casa de penhores ou de sebos. É o passado que insiste em permanecer no presente.

No universo dos sebos está o magistral texto “Reflexões em Monmouth Street”, onde as roupas, sapatos e outros artigos de vestuário são preenchidos por gente e tomam vida. É de um colorido tão moderno, animação vibrátil e forte concepção visual que nos leva a crer que, invertendo a equação, o cinema, embora arte dramática, deve sobejamente à literatura.

Sempre advoguei que a cidade merece ser tratada na ficção como um personagem, ou seja, é um elemento estético dentro da narrativa. Logo, segue as regras da verossimilhança que ocorre dentro das estruturas da obra e não em correspondência com a realidade exterior. Aqui gostaria de diferenciar o que parece ser uno: verossimilhança e verossimilitude. O que ocorre aqui em Retratos londrinos, de Dickens, é a “verossimilitude”, ou seja, um manejo não-ficcional da narrativa. São a crônica, o ensaio, a prosa jornalística. A verossimilhança tem o papel de criar o efeito do real. A “verossimilitude”, para mim, afasta-se um pouco da verossimilhança e passa a ser, numa linguagem não romanesca, mas científica, uma apreensão “verdadeira” do real. Mas esta apreensão do “real”, mesmo que não seja ficcionalizável, também implica uma transcodificação da realidade, já que passamos do código do empírico para o código da palavra.

Enfim, estamos diante de uma obra fascinante, que se pode ler modernamente como um romance fragmentado, um grande painel ou jogo de espelhos urbanos. No prefácio à primeira edição da obra, Dickens compara seu livro a um aeronauta que empreende seu primeiro vôo de balão. Fique seguro o leitor que, embora o veículo seja um misto de aventura e perigo, nada há a temer aqui, a não ser a altura vertiginosa da prosa do próprio Dickens.



imagem retirada da internet:

terça-feira, 14 de agosto de 2018

Verso e anverso, poema de Alberto Bresciani


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Sobre o penhasco
o cão hirto
fixa o barco
no traço do mar
Lamenta? Celebra?
Ele o homem
vira-se e vê
um cão igual
no barco
mira o outro
Foge? Escolhe?
Não há tempo
ou resposta
Ele
o homem
é o cão no penhasco
é também
o cão
no barco


À meia-noite, Angélica Torres

 
 
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À MEIA-NOITE
 
Sobrevive-se só
ao mito do ano novo
que reparte o vazio
no brinde ao tempo
antiquíssimo e idêntico.
Sobrevive-se à euforia
dos fogos e dos corpos
nos artifícios noturnos:
a teatralidade da esperança
que já não há   não é
a do século atual.
Sobrevive-se só
ao enterro da hora morta
ante o passo inflamado
desta que chega em andor
e ardor santificada.
Vive-se ao ponteiro bêbado
em seu giro à meia noite:
o retorno à substância da rotina
essa matéria do estorvo habitual.

segunda-feira, 13 de agosto de 2018

O cavalo, poema RCF

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O cavalo,
            com seus músculos
                                      de corda,
                                      relincha
                                      ao pardo couro
                                      do pasto queimado.

A melhor cocheira
                                       é o prado
                                       onde a imensidão
                                       limita
                                                com o horizonte.
                                       O cavalo
                                       se apoia nas patas
                                       e
                                       na hipótese
                                       – o olhar gordo do cavalo
                                       averigua o relógio do tempo:
                                                       lento é o riacho
                                                       rápido o vento.

Eis que volto à fazenda
e em vez de cavalo
encontro um guindaste:
as patas de lagarta e o corpo de ferro.
O animal guindaste suspende
de uma vala o animal cavalo
que nela – vala – caiu.
Suspenso assim
é um bicho fora do seu habitat
não pertence ao gênero da terra
não é marinho,
mínimo,
mas aéreo, cavalo Mobil Oil
como nos letreiros da Texaco Company.

De cabo a raso,
o cavalo é um soldado
na infantaria do seu dono.
Nada comanda,
nem mesmo seu corpo.
Aprendeu na caserna da fazenda
a disciplina, o mando e a marcha.
O freio repuxa o instinto.
O relincho é um guincho
e essa diferença de sentinela
é apenas tristeza do bicho na tropa humana.

O cavalo – matutino – escova suas crinas no pente do vento.
Quem inventou o cavalo – besta de carga –
não foi a natureza e seu lombo
nem mesmo o furor utilitário
a essência nervosa da alma que prova
mas o gosto humano de servir-se do outro.



(do livro Estrangeiro. Rio: SetteLetras, 1997)















            

domingo, 12 de agosto de 2018

Ecologia do corpo, poema RCF



 


 


 

Nesta terra devastada mais devastado é meu coração.
As aves que aqui gorjeiam são corvos de Poe.
Meu espanto é um cacto
e, ao desflorestamento dos meus desejos,
nada tenho de mim além da minha secura.
Aos poucos serei catástrofe e ninguém me plantará.

(do livro Memória dos porcos. 2012)






(foto:rdney smith)