Não era bem o que Yolanda
queria para sua vida. Agora que passaram as grandes dores como a perda do pai,
a perda do marido e a perda da filha com Clemente, ela olhava para o
companheiro e via nele traços que antes não vira. Na casa de Juliana, ela
conheceu Toninho Marcos, que era pintor e amigo de Horário. Os irmãos todos de
Toninho eram metidos com negócios, ações da Bolsa, construção imobiliária e
fábrica de materiais de limpeza. Dr. Macedo e o pai de Toninho Marcos tinham
sido amigos e parceiros em várias associações de classe. Yolanda já conhecera
Toninho Marcos numa visita que fizera à casa da família dele lá pelos fins dos
anos 50, salvo engano, e Toninho Marcos era um menino que falava inglês, tinha
projetor de filmes e máquina de filmar – ele mostrara a ela, tantos anos
depois, fita com os dois correndo no jardim, mergulhando na piscina, subindo em
árvore. Toninho Marcos também morou pelo mundo, mas ao contrário de Clemente
não conhecia apenas os portos.
Também andou em hospital psiquiátrico, foi
internado e tratado pela dra. Nise da Silveira. Contudo, nunca esteve em
sanatório de Bremen, largado lá como carga irregular que o navio não podia
carregar e só voltaria ao navio da Mercante quando pusesse o raciocínio no
lugar e pudesse ser considerado carga com a documentação em dia. Toninho Marcos
pintava como Roy Liechtenstein que conheceu nos EUA e vivia como os beatniks, a quem assistira a leitura de
poemas numa universidade do Novo México.
Mas ninguém levava a sério
a pintura de Toninho Marcos. A família pensava que ele era degenerado,
consumidor de ácido e cogumelo, amante de blues, enquanto os outros artistas
não davam crédito a ele justamente porque Toninho Marcos era filho de filho da
puta como era o pai dele que financiava a repressão como o pai de Yolanda e
achavam que filho de socialite e empresário filho da puta não podia ser artista
aqui nem nos EUA, conhecendo ou não conhecendo Roy Liechtenstein, ouvindo ou
não ouvindo poesia beatnik na universidade do Novo México.
O que levou Toninho Marcos
a ser tratado por dra. Nise é que, ao contrário do que todos pensavam que para
ser drogado deveria o sujeito ter crise familiar, Toninho Marcos gostava do
pai, admirava o pai, embora sabendo que o pai tinha sua face negra e ele não
podia admitir que o pai tivesse face negra porque ele, Toninho Marcos, admirava
o pai e o pai era carinhoso com ele e ele sabia que o pai pagava para que um
monte de sujeitos violentos e reacionários não fossem carinhosos com os estudantes,
os comunistas e outros rebeldes que caíam nas mãos dos homens poucos carinhosos
da repressão. Toninho Marcos não gostava é da mãe.
Ele mamava em Helena Maria
Isabel Teresa de Andrada Bonifácio Souza Campos, que era o nome de solteira da
mãe dele, porque socialite tem que ter o nome longo como os príncipes que
tinham nome longo e Helena Souza Campos eram apenas os nomes que ela escolhera
entre os vários nomes dela para se apresentar em sociedade e quando Toninho
Marcos olhava não era a mãe que o amamentava mas o pai que ganhara seios e o
amamentava. O pai não tinha formas femininas, nem cabelo grande, era o mesmo
pai, o peito cabeludo e a voz grave e serena, mas tinha seios e o alimentava. O
pai era homem culto e conversava sobre arte com Toninho.
Várias vezes falaram de
política e o pai discordava do filho, mas não se explicava e evitava o assunto
e quando Toninho via estavam falando de arte abstrata, de cubismo e dos quadros
que o pai queria comprar, dos leilões que frequentava e coisas desse tipo.
Toninho Marques tinha então dois pais, Dr. Jekyll e Mr. Hide, o que o
alimentava de leite materno e falava de artes e o outro que também fora
visitado pelo intermediário do grupo Ultragás
para contribuir com o delegado Fleury.
Toninho desenhava homens
femininos com aparelhos de tortura na mão e dra. Nise queria apresentar as
pinturas de Toninho como surrealistas, mas Toninho não queria aparecer nas
exposições dos quadros dos loucos da dra. Nise da Silveira, porque sabia que em
vez de surrealismo ele estava fazendo era realismo socialista e ele não
considerava os quadros coisa que prestasse, mas acerto de contas entre emoção e
razão. Toninho Marcos se chamava Pedro Augusto. Era nome de imperador da casa
dos Bragança e augusto é coisa real. O nome mesmo, de artista, que ele queria
era outro, mas no grupo de dra. Nise, uns o chamavam de Toninho, sabe-se lá por
que cargas d’água, e outros malucos o chamavam de Marcos. Dra. Nise é quem o
batizou de Toninho Marcos para acabar com aquela esquizofrenia de um ser dois.
Dra. Nise da Silveira tinha a casa cheia de gatos e um bando de nomes que ela
distribuía como quem distribui doce às crianças e pílulas aos loucos.
(Um homem é muito pouco. São Paulo: Nankin, dez. 2010)