sexta-feira, 2 de agosto de 2024

Um homem é muito pouco 13



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            Não era bem o que Yolanda queria para sua vida. Agora que passaram as grandes dores como a perda do pai, a perda do marido e a perda da filha com Clemente, ela olhava para o companheiro e via nele traços que antes não vira. Na casa de Juliana, ela conheceu Toninho Marcos, que era pintor e amigo de Horário. Os irmãos todos de Toninho eram metidos com negócios, ações da Bolsa, construção imobiliária e fábrica de materiais de limpeza. Dr. Macedo e o pai de Toninho Marcos tinham sido amigos e parceiros em várias associações de classe. Yolanda já conhecera Toninho Marcos numa visita que fizera à casa da família dele lá pelos fins dos anos 50, salvo engano, e Toninho Marcos era um menino que falava inglês, tinha projetor de filmes e máquina de filmar – ele mostrara a ela, tantos anos depois, fita com os dois correndo no jardim, mergulhando na piscina, subindo em árvore. Toninho Marcos também morou pelo mundo, mas ao contrário de Clemente não conhecia apenas os portos.

             Também andou em hospital psiquiátrico, foi internado e tratado pela dra. Nise da Silveira. Contudo, nunca esteve em sanatório de Bremen, largado lá como carga irregular que o navio não podia carregar e só voltaria ao navio da Mercante quando pusesse o raciocínio no lugar e pudesse ser considerado carga com a documentação em dia. Toninho Marcos pintava como Roy Liechtenstein que conheceu nos EUA e vivia como os beatniks, a quem assistira a leitura de poemas numa universidade do Novo México.

            Mas ninguém levava a sério a pintura de Toninho Marcos. A família pensava que ele era degenerado, consumidor de ácido e cogumelo, amante de blues, enquanto os outros artistas não davam crédito a ele justamente porque Toninho Marcos era filho de filho da puta como era o pai dele que financiava a repressão como o pai de Yolanda e achavam que filho de socialite e empresário filho da puta não podia ser artista aqui nem nos EUA, conhecendo ou não conhecendo Roy Liechtenstein, ouvindo ou não ouvindo poesia beatnik na universidade do Novo México.

                O que levou Toninho Marcos a ser tratado por dra. Nise é que, ao contrário do que todos pensavam que para ser drogado deveria o sujeito ter crise familiar, Toninho Marcos gostava do pai, admirava o pai, embora sabendo que o pai tinha sua face negra e ele não podia admitir que o pai tivesse face negra porque ele, Toninho Marcos, admirava o pai e o pai era carinhoso com ele e ele sabia que o pai pagava para que um monte de sujeitos violentos e reacionários não fossem carinhosos com os estudantes, os comunistas e outros rebeldes que caíam nas mãos dos homens poucos carinhosos da repressão. Toninho Marcos não gostava é da mãe.

                Ele mamava em Helena Maria Isabel Teresa de Andrada Bonifácio Souza Campos, que era o nome de solteira da mãe dele, porque socialite tem que ter o nome longo como os príncipes que tinham nome longo e Helena Souza Campos eram apenas os nomes que ela escolhera entre os vários nomes dela para se apresentar em sociedade e quando Toninho Marcos olhava não era a mãe que o amamentava mas o pai que ganhara seios e o amamentava. O pai não tinha formas femininas, nem cabelo grande, era o mesmo pai, o peito cabeludo e a voz grave e serena, mas tinha seios e o alimentava. O pai era homem culto e conversava sobre arte com Toninho.

             Várias vezes falaram de política e o pai discordava do filho, mas não se explicava e evitava o assunto e quando Toninho via estavam falando de arte abstrata, de cubismo e dos quadros que o pai queria comprar, dos leilões que frequentava e coisas desse tipo. Toninho Marques tinha então dois pais, Dr. Jekyll e Mr. Hide, o que o alimentava de leite materno e falava de artes e o outro que também fora visitado pelo intermediário do grupo Ultragás para contribuir com o delegado Fleury.

                    Toninho desenhava homens femininos com aparelhos de tortura na mão e dra. Nise queria apresentar as pinturas de Toninho como surrealistas, mas Toninho não queria aparecer nas exposições dos quadros dos loucos da dra. Nise da Silveira, porque sabia que em vez de surrealismo ele estava fazendo era realismo socialista e ele não considerava os quadros coisa que prestasse, mas acerto de contas entre emoção e razão. Toninho Marcos se chamava Pedro Augusto. Era nome de imperador da casa dos Bragança e augusto é coisa real. O nome mesmo, de artista, que ele queria era outro, mas no grupo de dra. Nise, uns o chamavam de Toninho, sabe-se lá por que cargas d’água, e outros malucos o chamavam de Marcos. Dra. Nise é quem o batizou de Toninho Marcos para acabar com aquela esquizofrenia de um ser dois. Dra. Nise da Silveira tinha a casa cheia de gatos e um bando de nomes que ela distribuía como quem distribui doce às crianças e pílulas aos loucos.





(Um homem é muito pouco. São Paulo: Nankin, dez. 2010)

terça-feira, 30 de julho de 2024

O padre Vieira no Maranhão/ Antonio Carlos Lima













        Hoje, 322 anos depois de sua morte, Vieira  mantém o prestígio e a fama que, nos últimos três séculos,  granjeou, com toda justiça,  como maior orador sacro da língua portuguesa e uma das vozes mais contundentes, ao lado do espanhol Bartolomeu de las Casas, a erguer-se contra a escravidão do gentio nas colônias da América. Mas, submetido ao juízo severo da história, o “Imperador da Língua Portuguesa” torna-se, nos tempos atuais, uma figura no mínimo contraditória, como previu Lisboa.

        É esse homem de carne e osso, que enfrentou os poderosos contra a escravidão indígena, mas justificou o cativeiro dos africanos; que afrontou a Inquisição portuguesa, defendeu os judeus, mas quis entregar Pernambuco aos holandeses; que foi amigo e conselheiro de reis, porém conheceu a frugalidade e a pobreza; é esse homem o personagem central, a figura solar de Vieira na ilha do Maranhão (7 Letras), romance fabuloso que o escritor maranhense Ronaldo Costa Fernandes acaba de publicar.

        Ao concentrar sua narrativa no período em que Vieira viveu em São Luís, entre 1653 e 1661, Fernandes tenta recriar a sociedade são-luisense dos seus inícios, formada por autoridades inescrupulosas, lavradores desassistidos, mercadores, representantes de várias ordens religiosas, índios cativos convertidos ao Cristianismo e uma multidão de pobres faltos de qualquer assistência, acossados pela fome e pestes devastadoras.

        Ficcionista aplaudido desde sua estreia, em 1979, com o romance picaresco João Rama (Editora Codecri), recomendado por Antonio Houaiss como um livro “que ninguém deve deixar de ler” por ser “grande, grande, grande!”, Fernandes conta, com mestria,  não uma, mas várias histórias que se entrelaçam, compondo um rico e desconcertante painel  dos primeiros tempos coloniais.

        António Vieira desembarcou no Maranhão em janeiro de 1653, apenas nove anos  após a expulsão dos holandeses do Estado, onde se encontravam desde a invasão, saque e parcial destruição de São Luís, em 1641. Nessa terra arrasada, o jesuíta logo se impõe pelo carisma, a  oratória de fogo e a ação destemida contra as injustiças dos poderosos e em defesa dos pobres e dos índios.

        Em torno de Vieira, o romancista faz circular uma galeria de personagens exóticos, bizarros, que remetem ao realismo fantástico latino-americano e dão colorido e humor à narrativa. Embora seja figura onipresente, como conselheiro, censor dos poderosos e homem de ação, o jesuíta serve de pretexto para a reconstrução da barbárie em que transcorria  a vida nessa parte obscura do Novo Mundo.

        Em seu novo livro, Ronaldo Costa Fernandes não se ocupa, como o severo João Lisboa, em julgar a figura de Vieira. Apenas reconstitui, com liberdade e rica imaginação, a saga do pregador numa cidade destroçada, dominada por vícios de toda sorte, sem preocupar-se com a falta de estima e admiração que a ele possa ter reservado a posteridade. O resultado é um grande romance.

        (Publicado no jornal O ESTADO DO MARANHÃO, em 9 de outubro de 2019).