Hoje, 322 anos depois de sua morte,
Vieira mantém o prestígio e a fama que,
nos últimos três séculos, granjeou, com
toda justiça, como maior orador sacro da
língua portuguesa e uma das vozes mais contundentes, ao lado do espanhol
Bartolomeu de las Casas, a erguer-se contra a escravidão do gentio nas colônias
da América. Mas, submetido ao juízo severo da história, o “Imperador da Língua
Portuguesa” torna-se, nos tempos atuais, uma figura no mínimo contraditória,
como previu Lisboa.
É esse homem de carne e osso, que
enfrentou os poderosos contra a escravidão indígena, mas justificou o cativeiro
dos africanos; que afrontou a Inquisição portuguesa, defendeu os judeus, mas quis
entregar Pernambuco aos holandeses; que foi amigo e conselheiro de reis, porém conheceu
a frugalidade e a pobreza; é esse homem o personagem central, a figura solar de
Vieira na ilha do Maranhão (7
Letras), romance fabuloso que o escritor maranhense Ronaldo Costa Fernandes
acaba de publicar.
Ao concentrar sua narrativa no período
em que Vieira viveu em São Luís, entre 1653 e 1661, Fernandes tenta recriar a
sociedade são-luisense dos seus inícios, formada por autoridades
inescrupulosas, lavradores desassistidos, mercadores, representantes de várias ordens
religiosas, índios cativos convertidos ao Cristianismo e uma multidão de pobres
faltos de qualquer assistência, acossados pela fome e pestes devastadoras.
Ficcionista aplaudido desde sua estreia,
em 1979, com o romance picaresco João
Rama (Editora Codecri), recomendado por Antonio Houaiss como um livro “que
ninguém deve deixar de ler” por ser “grande, grande, grande!”, Fernandes conta,
com mestria, não uma, mas várias
histórias que se entrelaçam, compondo um rico e desconcertante painel dos primeiros tempos coloniais.
António
Vieira desembarcou no Maranhão em janeiro de 1653, apenas nove anos após a expulsão dos holandeses do Estado, onde
se encontravam desde a invasão, saque e parcial destruição de São Luís, em 1641.
Nessa terra arrasada, o jesuíta logo se impõe pelo carisma, a oratória de fogo e a ação destemida contra as
injustiças dos poderosos e em defesa dos pobres e dos índios.
Em torno de Vieira, o romancista faz
circular uma galeria de personagens exóticos, bizarros, que remetem ao realismo
fantástico latino-americano e dão colorido e humor à narrativa. Embora seja
figura onipresente, como conselheiro, censor dos poderosos e homem de ação, o
jesuíta serve de pretexto para a reconstrução da barbárie em que transcorria a vida nessa parte obscura do Novo Mundo.
Em seu novo livro, Ronaldo Costa
Fernandes não se ocupa, como o severo João Lisboa, em julgar a figura de
Vieira. Apenas reconstitui, com liberdade e rica imaginação, a saga do pregador
numa cidade destroçada, dominada por vícios de toda sorte, sem preocupar-se com
a falta de estima e admiração que a ele possa ter reservado a posteridade. O
resultado é um grande romance.
(Publicado no jornal O ESTADO DO
MARANHÃO, em 9 de outubro de 2019).
Nenhum comentário:
Postar um comentário