A GRANDE ARTE
Fabio Coutinho
Boca do Inferno, o premiado
romance em que a cearense Ana Miranda contou a vida de Gregório de Matos
Guerra, data de 1989. De lá para cá, foram cinco outros, todos de qualidade
superlativa, com especial destaque para A última quimera (1995), em que o personagem principal é
o vate paraibano Augusto dos Anjos, e Dias
& Dias (2002), retrato em tom ficcional do formidável bardo maranhense
Antonio Gonçalves Dias.
Agora, em
2014, com Semíramis, Ana Miranda
narra a trajetória de seu conterrâneo José de Alencar, amplamente reconhecido e
respeitado como o fundador do romance brasileiro, tal qual foi desenvolvido e
aperfeiçoado ao longo de nossa história literária.
Filho de um
padre e neto de uma heroína republicana, a vida do genial autor de Iracema é
traçada com base em diálogo epistolar de duas irmãs, Iriana e Semíramis. Esta,
a autora das cartas em que Alencar é revelado àquela, dá título ao livro,
despontando como a figura central da narrativa.
Tendo vivido
apenas quarenta e oito anos, José de Alencar (1829-1877) fez-se ícone do
romantismo brasileiro e protótipo do homem de letras do século XIX. Ao
biografá-lo em fluência romanceada, Ana Miranda transporta os leitores para os
tempos do Segundo Império, nos quais Alencar frequentou e inspirou a nata da
intelectualidade nacional.
Companheiro
de Machado de Assis, José de Alencar a ele apresentou, no Rio de Janeiro dos
anos de 1860, o jovem poeta baiano Antonio de Castro Alves. Em
pouquíssimas ocasiões, na história da inteligência pátria, juntaram-se, no
mesmo ambiente cultural, personagens tão grandiosos quanto Alencar, Machado e
Castro Alves. Ao fundar a Academia Brasileira de Letras (ABL), em 1897, exatos
vinte anos após a morte precoce de José de Alencar, Machado de Assis o escolheu
para seu patrono na Cadeira nº 23 da Casa, a mesma que depois foi honrada,
entre outros, pelos prosadores baianos Jorge Amado e Antônio Torres, o
atual ocupante.
No livro
originalíssimo de Ana Miranda, que lemos através das
inspiradas cartas de Semíramis, Alencar também nos é mostrado como o
polemista construtivo, que sustentou embate de ideias com ninguém menos do que
Joaquim Nabuco. E é aí que José de Alencar se agiganta como homem público,
tornando-se, ainda, desafeto do Imperador Dom Pedro II, o que, de resto, já nos
havia revelado outro escritor cearense, Lira Neto, autor da impecável biografia
O inimigo do rei.
Poeta e
cronista, a par e passo com sua estupenda vocação de romancista,
Ana Miranda produziu, com Semíramis,
mais um poema em prosa, além de brindar seus leitores com uma nova e
irretocável crônica dos costumes e principais acontecimentos da época em que
José de Alencar foi protagonista, como literato de escol e político de coragem
singular.
Semíramis é livro de
consagração artística, produto do rigor da pesquisa e da energia poética de uma
escritora que se alçou, por tantos méritos e virtudes tantas, ao topo da
pirâmide da literatura de língua portuguesa. Iniciada por Rachel de Queiroz, em
1977, a linhagem das ficcionistas na ABL prosseguiu com Dinah Silveira de
Queiroz, Lygia Fagundes Telles, Nélida Piñon e Ana Maria Machado. Por força de
uma rara e luminosa obra romanesca, aproxima-se a hora de mais uma cearense
vestir o fardão que simboliza a glória inaugurada pelo maior de nossos
escritores.
Ana Miranda
na Academia Brasileira é uma questão de justiça literária, de reconhecimento à
mais alta e bela voz feminina da ficção contemporânea entre nós, ao
trabalho incansável, culto e erudito que Ana cria e entrega, visando à
afirmação da grande arte do romance no Brasil.