terça-feira, 18 de março de 2014

Semíramis, Ana Miranda


 

 

                                                                             

 A GRANDE ARTE




 
                                                         Fabio Coutinho
 

Boca do Inferno, o premiado romance em que a cearense Ana Miranda contou a vida de Gregório de Matos Guerra, data de 1989. De lá para cá, foram cinco outros, todos de qualidade superlativa, com especial destaque para A última quimera (1995), em que o personagem principal é o vate paraibano Augusto dos Anjos, e Dias & Dias (2002), retrato em tom ficcional do formidável bardo maranhense Antonio Gonçalves Dias.

Agora, em 2014, com Semíramis, Ana Miranda narra a trajetória de seu conterrâneo José de Alencar, amplamente reconhecido e respeitado como o fundador do romance brasileiro, tal qual foi desenvolvido e aperfeiçoado ao longo de nossa história literária.

Filho de um padre e neto de uma heroína republicana, a vida do genial autor de Iracema é traçada com base em diálogo epistolar de duas irmãs, Iriana e Semíramis. Esta, a autora das cartas em que Alencar é revelado àquela, dá título ao livro, despontando como a figura central da narrativa.

Tendo vivido apenas quarenta e oito anos, José de Alencar (1829-1877) fez-se ícone do romantismo brasileiro e protótipo do homem de letras do século XIX. Ao biografá-lo em fluência romanceada, Ana Miranda transporta os leitores para os tempos do Segundo Império, nos quais Alencar frequentou e inspirou a nata da intelectualidade nacional.

Companheiro de Machado de Assis, José de Alencar a ele apresentou, no Rio de Janeiro dos anos de 1860, o jovem poeta baiano Antonio de Castro Alves. Em pouquíssimas ocasiões, na história da inteligência pátria, juntaram-se, no mesmo ambiente cultural, personagens tão grandiosos quanto Alencar, Machado e Castro Alves. Ao fundar a Academia Brasileira de Letras (ABL), em 1897, exatos vinte anos após a morte precoce de José de Alencar, Machado de Assis o escolheu para seu patrono na Cadeira nº 23 da Casa, a mesma que depois foi honrada, entre outros, pelos prosadores baianos Jorge Amado e Antônio Torres, o atual ocupante.

No livro originalíssimo de Ana Miranda, que lemos através das inspiradas cartas de Semíramis, Alencar também nos é mostrado como o polemista construtivo, que sustentou embate de ideias com ninguém menos do que Joaquim Nabuco. E é aí que José de Alencar se agiganta como homem público, tornando-se, ainda, desafeto do Imperador Dom Pedro II, o que, de resto, já nos havia revelado outro escritor cearense, Lira Neto, autor da impecável biografia O inimigo do rei.

Poeta e cronista, a par e passo com sua estupenda vocação de romancista, Ana Miranda produziu, com Semíramis, mais um poema em prosa, além de brindar seus leitores com uma nova e irretocável crônica dos costumes e principais acontecimentos da época em que José de Alencar foi protagonista, como literato de escol e político de coragem singular.

Semíramis é livro de consagração artística, produto do rigor da pesquisa e da energia poética de uma escritora que se alçou, por tantos méritos e virtudes tantas, ao topo da pirâmide da literatura de língua portuguesa. Iniciada por Rachel de Queiroz, em 1977, a linhagem das ficcionistas na ABL prosseguiu com Dinah Silveira de Queiroz, Lygia Fagundes Telles, Nélida Piñon e Ana Maria Machado. Por força de uma rara e luminosa obra romanesca, aproxima-se a hora de mais uma cearense vestir o fardão que simboliza a glória inaugurada pelo maior de nossos escritores.

Ana Miranda na Academia Brasileira é uma questão de justiça literária, de reconhecimento à mais alta e bela voz feminina da ficção contemporânea entre nós, ao trabalho incansável, culto e erudito que Ana cria e entrega, visando à afirmação da grande arte do romance no Brasil.