quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

Danação, poema RCF


Na sala de jantar da infância,
havia uma parede de tijolos de vidro.
Como – perguntava o menino –
se pode edificar sobre o que nos fere?
Depois, no útero da rede
tarde e túmulo
o caderno egípcio de caligrafia
sob o peito dormido
silêncio túrgido.

À noite, o castigo escuro do quarto
– a vida inteira pergunta qual o erro –
na bolsa de paredes infindas da memória
que não se enche nem esvazia
o pássaro do remorso que bica insistente.

Estou cansado de pisar na minha sombra.
Oh, tanto que pareço ser dela reflexo,
não ela de mim.

O que visto tem costura
de fio sem meada.
Planto um pé de imobilidade no jardim.
Amanhã colherei os frutos da solidão
que já estão mortos ao nascer.
Por isso preciso de jardineiro.
É difícil podar as plantas aquáticas,
pois essas só sobrevivem
na água amniótica da rotina.

(A máquina das mãos, 2009)

imagem retirada da internet: amarras

quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

A ira, poema RCF




é quando o palheiro
cabe na agulha

é quando não apenas
a camisa é de força

mas de força
           são
                a calça
                os sapatos
               ( de chumbo
               ou cimento )
o terno
              inclusive o corpo
              crispado
              imóvel
              inerme
              no suor dos erros
a violência
nômade
do ciclone
furioso
em seu caminho
de si mesmo
arma de grosso
caribe,
levando
por onde passa
              cancelas
              pára-raios
              e a exatidão
              das palmeiras

intestina
rodopiando
nas tripas do desatino
ou circula
rubicunda
              na montanha-russa
              das veias

forno que se incinera
– combustão espontânea –
                            sem precisar de diesel
                            lenha ou razão


(do livro Andarilho, 7Letras, Rio de Janeiro, 2000)


imagem retirada da internet: anacamaarra


segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

Mar traçado a régua, poema RCF






Aqui só existe o mar
e o horizonte traçado a régua.
Sou apenas um homem
em pé na areia dos anos,
com os pés espumando.
O dia se impõe, morno,
e penso no tempo,
onda contínua,
nela entramos como quem pega jacaré,
até a onda nos largar exauridos
e continuar sua reta até uma praia
a que nunca chegará.




(do livro Memória dos porcos. Rio: 7Letras, 2012)



(foto:vivan maier)