Sei que, no dia seguinte, a cegueira será ver em demasia. A luz do sol vai ferir os olhos. Tudo brilhar demasiado: os carros no estacionamento, o chão cinza de cimento, as paredes marrons, as árvores excessivamente verdes. A claridade é o diabo de uma agulha e os ruídos, por mínimos que sejam, entrarão pelos tímpanos fodendo meus nervos. Preciso trabalhar. Eu atrapalho? O que você acha? Há mofo por tudo quanto é canto. A empregada está aí pra isso. D. Benedita, ela ainda está contigo?
– Não era teu desejo?
– Tenho frio.
A casa não consegue dormir. Quando está com insônia, os olhos inchados e vermelhos ficam de pálpebras baixas, mas não se fecham. Todo um torpor, dores, músculos cansados tomam a casa. Os livros sussurram indistintamente. Não querem dizer nada, são balbuceios, murmúrios, apenas sons sem sentido. Querem se fazer presentes, me solicitam, mas não posso atendê-los. De que adianta o diálogo mudo com eles? Não consigo ler. Por que não dorme? Ora, não vê, a casa não deixa. As teclas estão dentro de mim, não posso escrever, oh, não, não posso escrever com teclas que estão dentro de mim.
– Os alunos?
– Continuam lá.
– Você está infeliz.
– Estou é inquieto.
Ando pelos corredores, o perigo de Lídia me acusar. Por que isso, por que aquilo, a lengalenga de sempre. Lídia não pode entender de solidão. É difícil para uma mulher como ela perceber porque o homem tem menos facilidade de viver só. A casa bufa. A agitação das narinas, o gosto do olfato, os odores da casa em funcionamento. Meu pai era um homem de cabelos fartos negros o que lhe faltava era argila o que dizes? os mortos somos nós somos nós somos nós a noite tem seus motivos, ora se tem. Se eu estivesse contigo, iríamos pra cama. Uma boa foda é o melhor calmante. Você acha que não tenho lembrança de gozar?
– Não quero discutir orgasmo com os mortos.
– Grosseiro.
Agora as cortinas balançavam ao vento. Fechei a janela. Ela ficou lá fora, bateu no vidro, mas como o soco dos mortos é silencioso, não ouvi nada, apenas vi o vento movendo as plantas da jardineira.
(do romance
O viúvo. Brasília, LGE, 20015)