sexta-feira, 6 de agosto de 2021

O beco do corpo, poema RCF




A febre faz mormaço no meu corpo.
As juntas discordam
o bípede que hospedo.
Mínima queda de braço
derruba o dedo levantado da presença.
O que é víscera
se comporta à flor da pele onde nada medra.
Este calafrio responde ao calor
que insiste em tremer
o que se paralisou.
Nenhuma aspirina cura meu quebra-cabeça.



(do livro A máquina das mãos, 7Letras, 2009)



imagem retirada da internet: julianery

quarta-feira, 4 de agosto de 2021

A intimidade das coisas no mundo





Há as intimidades viscerais
como o lápis e o dedo,
o cão e a coleira,
o pente e seu cabelo
e a morte e seus vermes.
Há intimidades que são prolongações
como ainda o lápis e a mão
– o lápis seria um só dedo
que escreve ou o sexto dedo de grafite –,
a bengala e o cego
que enxerga por uma terceira perna;
a pedra e o estilingue
que lança a primeira
num voo mecânico e lembra
que o avião também é uma pedra
lançada por um bodoque
de tecnologia e querosene.


Mas a intimidade maior
está no homem e suas pernas
que o levam aonde quer chegar.
Mais íntimo do homem
é o seu desejo,
que é íntimo do seu corpo
e mais íntimo ainda do espírito,
mas o desejo leva o homem a enxergar,
a desenhar sua profissão,
a arrumar-se ao espelho da modéstia,
a lançar-se no voo livre,
lograr o sonho, íntimo dos destinos desfeitos.        


(O difícil exercício das cinzas. 2014)              

terça-feira, 3 de agosto de 2021

Poema Francisco Costa Fernandes Sobrinho (1914-1960), meu pai





Veritas


Se fosse pura, límpida a amizade
que revelaste um dia com teu beijo;
se te não fora simples leviandade,
porém virtude excelsa que desejo;

se, não da carne vil que em ti rebrade,
mas de peito pudico num lampejo,
partira a furibunda tempestade
dos arroubos de amor que ainda revejo;

não trocarias tão irrefletida
a paz do nosso amor, o ninho quente
pelos prazeres fúteis desta vida;

não furtarias a meu lábio ardente
a morna taça, em parte já bebida,
do amor fingido que teu peito sente.



São Luís, 1935

domingo, 1 de agosto de 2021

Viuvez da humanidade, crítica sobre O viúvo


Não é só pelo texto de correta sintaxe, ou pela impecabilidade do andamento da narrativa, construída em unidades de dominada autonomia, que o romance de Ronaldo Costa Fernandes – cativa, assoberba e embebeda o leitor, mas, sobretudo, pela capacidade de fundir personagem e realidade. No andamento, a realidade vai se fechando com suas falências, nada incentivadoras do investimento afetivo. Várias outras superposições criativas apontam para a oportunidade de se inscrever O viúvo (LGE) entre os grandes clássicos da literatura brasileira, e que o recomendam para estudo nos assentos escolares para que seja identificado o homem que vai se moldando na automatização das relações sociais, somadas aí as muitas perdas a que ele se submete. Primeiramente, o domínio de localização temporal do personagem. Em seguida, os diálogos, que não funcionam com a presença de um interlocutor, mas com a intervenção das próprias neuroses do personagem. Assim, Ronaldo Costa Fernandes, já aclamado por críticos como Franklin de Oliveira e Oswaldino Marques, e detentor de vários prêmios (destaque para o Casa de Las Américas e o Guimarães Rosa), com O viúvo demonstra que, além de conhecer os domínios da narrativa, encontra-se no auge de sua potencialidade criativa.

















Jornal do Brasil - 23/12/2005 - Salomão Sousa