sábado, 12 de janeiro de 2019

Cálculo das dores, RCF


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Alguém dirá que dor é dor
e não se pode medir,
pesar e estudar sua matéria:
ferro, madeira, plástico ou chumbo.
Certo que existem dores finas:
e não importa se são agudas,
mais científico seria entender
sua duração transversa,
seu sofrimento em minutos
ou horas ou dias ou meses,
ou ainda, que fundura
de matéria da alma – por que aqui se fala
da dor que não é fratura exposta –
atingiu o instrumento agudo
na carne do espírito. Outros creem
que a dor rombuda, robusta
já no nome, forte mesmo em sua
constituição, perverte os sentidos.

Enfim, a espessura nada mensura
e só quem a sofre pode afirmar
se dói fino ou rude. Só quem sofre
pode denunciar: não importa se aguda
ou nodosa
antes que espessura
mais vale investigar se a dor perdura,
se permanece raiz,
se nasce mas não morre,
se gruda na alma como queimadura
que, mesmo amainada,
a cicatriz não deixa que se esqueça
que um dia o fogo alcançou
a fina pele da ausência.


(O difícil exercício das cinzas, 2014)

The Cathedral

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Sepulchral, splayed,
                 reiterativeas a rosary,
                 the cathedral is permanently fickle:
                 furtive,
                 confessional,
                                     peerless and pious.

The light flooding Brasilia' Cathedral
                 is no mystic effulgence.
                 Here are boilers:
                 fiery furnaces,
                 the private purgatories
                 of pretty sinners
                                      that light up each church.

Callow and crisp
                 on the dissident rim
                 of the horizon
                 the Cathedral is no monument,
                 not a temple
                                        nor a house of prayer.

The Cathedral is the Ministerial Thoroughfare
                 is simply a section,
                 a bureaucratic building
                                         See os 9-to5 souls.


(tradução Mark Ridd)



A catedral.


Muda, espalmada,
                  reiterava como um terço,
                  em cada hora, a Catedral é outra:
                  furtiva,
                  confessionária,
                                     passante e pia.


A luz da Catedral de Brasília
                   não é luz mística.
                   São caldeiras:
                   as fornalhas das máquinas,
                   o pequeno inferno
                  dos pecadores
                                      que ilumina cada igreja.


Assim, crua,
                na linha dissidente
               do horizonte,
               a Catedral não é obra de arquitetura
               nem templo
                                      nem casa de oração.


A Catedral, na Esplanada dos Ministérios,
                é apenas repartição pública,
               prédio burocrático,
                                   Sé das almas expedientes.

(do livro Estrangeiro, 1997)


sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

Nasci na mesopotâmia de São Luís, inédito

 

Nasci na mesopotâmia de São Luís, lá onde o Bacanga
e o Anil fertilizam a civilização dos ilhéus.
Nesta ilha assombrada pela pobreza e pela História,
Viera ainda dá sermões para um século que não mais existe.
Serpentes gigantes, reis desaparecidos em Alcácer-Quibires,
Mães d’água que amamentam meu terror noturno,
anas -jansens que se reduzem ao fogo da memória,
nossas sés e igrejas e paróquias desprovidas,
as inconfidências percorrem as ruas do medo,
o largo do desterro, a ladeira dos sonhos,
os sobrados da fanfarronice e endlessness,
as tripas da discórdia, o boqueirão das vontades
reprimidas, o beco das dores íntimas,
sem saída, a morbidez encurralada
pelo devaneio das cantarias.
(do livro inédito Delito das vozes mortas)

quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

Um homem é muito pouco, Depoimento

(Publicado na Revista Brasileira, fase VII, Julho-Agosto-Setembro 2011, nº 68, da Academia Brasileira de Letras, pgs. 105-110)

O escritor procura os temas ou os temas buscam o autor? O mais certo é pensar que os temas nos procuram, o que não quer dizer que somos passivos ou apenas recipiente onde se acumulam guardados. Embora seja mais provável que os temas nasçam ainda em forma embrionária e se revelem remanescentes de experiências passadas – e não diria reprimidas, ao jugo freudiano, mas quando ocorreram não tinham a dimensão que passarão a ter no futuro – e que mais tarde retornem e nos forcem a colocá-las no papel. Nunca quis escrever sobre a ditadura militar. Penso, desde jovem, que o realismo pertencia ao século XIX e que lá estava bem posto como proposta estética de vanguarda em sua época.

O realismo do século XIX foi uma reação à literatura e arte anterior e fruto sempre do meio sócio-cultural: no plano das ideias até o marxismo pode ser inserido no positivismo, concepção de progresso e a visão de um futuro racional, duradouro e saneador. Dentro desta perspectiva, cabia também ao romance ser tão “científico” quanto às ideias progressistas e, contraditoriamente, messiânicas. Contudo, à parte a historicidade de existir um estilo em uma época – segunda metade do século XIX – que se apresentava como vanguarda, o realismo, já foi dito, sempre existiu na literatura – do mesmo modo que o fantástico – e não desaparecerá.

Certo de que não queria fazer um romance de denúncia, mais apropriado para os anos setenta do século passado, em plena luta e dura repressão, também não queria que meus personagens vagassem numa repressão mais perversa: a da estética, ou seja, que se expressassem de maneira absolutamente realista. Escrevo absolutamente porque o romance Um homem é muito pouco é realista. Realista à sua maneira.

Um homem é muito pouco está dividido em quatro grandes partes. Cada parte traz um protagonista e um personagem os une. Duas partes são narradas em primeira pessoa e as outras duas em terceira pessoa. O número quatro já me fascinara antes. Num romance anterior, de 1997, Concerto para flauta e martelo já usara as mesmas quatro vozes, mas numa dinâmica e disposição até mesmo tipográfica diferentes. O romance tem preponderantemente como cenário também quatro espaços urbanos: Praça XI, Copacabana, Grajaú e Ipanema. A época: os anos 70.

Moveu-me também a ideia de que deveria criar um grande painel. Se logrei, não sei. Ambicionei personagens de várias gerações, em conflitos constantes e deambulando em meio a uma psicologia adensada, mas sem que fosse o foco primordial. O embate entre a individualidade e a amplitude do social agindo sobre comportamentos e atitudes de pessoas que não estavam engajadas em movimento político também me atraía. Havia uma atmosfera de medo e apreensão, de silêncio e reserva, mesmo entre aqueles que não queriam “envolver-se em política”. Mesmo entre os chamados alienados, tinha-se a certeza que a atividade política só deveria ser inócua se fosse a favor do governo e que a participação em algum movimento social representava risco de morte.

É desconcertante ver que, como num processo de desvelamento, algumas ideias emergiram de um recanto obscuro que insidiosamente insistem em metamoforsear-se em personagem, cena, psicologia ou até mesmo trama que antes desconhecíamos albergar dentro de nós. Há personagens que se desenvolvem mais porque nós os conhecemos e eles se oferecem à narrativa como já estivessem prontos para serem usados e outros que a racionalidade preparou para agir e atuar às vezes até com certo protagonismo e se abastardam, diminuem, aos poucos ficam pelos cantos e mais à frente esfumam-se. Agrada-me ser traído pela minha razão e deixar que outro tipo de “razão” se faça presente e assuma seu papel na narrativa.

No caso de Um homem é muito pouco, na terceira parte, por exemplo, eu não sabia nada sobre a família dos Arlindos. A história toda foi se construindo aos poucos, jorrando fácil, a cada dia exigindo de mim que desse continuidade à saga familiar dos joalheiros e homens de alma simples que vivem uma intrincada trama familiar e que, ao mesmo tempo, serve de explicação para várias ações e diversos comportamentos de personagens das outras partes.

No livro de Freud sobre Gradiva, de Jensen, o austríaco analisa os personagens como se fossem seres de carne e osso e seus sonhos e delírios manifestações do inconsciente. Sem tomar partido da chamada crítica psicanalítica, nem também condenar psicanalisar personagem de papel, o que me chamou atenção é que os mecanismos de interpretação dos sonhos, de condensação e de entendimento dos traumas reprimidos, mostram que Freud pode não ser bom crítico literário ou que sua prática analítica enfraquece ao estudar personagens e não seres reais, mas que alguns procedimentos de aproximação ao texto são comuns à psicanálise e à crítica literária. Condensação e deslocamento, conceitos que ele usou em seu livro O chiste e a relação com o inconsciente, revelam como se elabora o mecanismo, diria eu, até do processo criativo.

Grosso modo, haveria dois tipos de escritores. Os que, como Autran Dourado e García Márquez, que relatam que só se sentam para escrever quando têm a história pronta e aqueles que são guiados pelo instinto linguístico e fabulatório como Clarice Lispector e Córtazar, este último depondo que desconhecia completamente a história de O jogo da amarelinha. Como explicar então que aqueles que já têm a história pronta antes de escrever o livro possam ser tomados pelo inconsciente e pelo deslocamento interpretativo? Diria que mesmo esses, se escolheram determinados temas, é porque aqueles temas, tramas e personagens lhe atraíram pelo mesmo processo dos instintivos. Ora, se García Marquez observa que Cem anos de solidão é a história dos pais e que O amor no tempo do cólera é a história de amor dos avós, nada se modifica, pois se foi seduzido pelo tema é porque significativamente ele aponta para mecanismos psíquicos que operam no processo ficcional vindo de desvios, vícios, ansiedades, traumas, angústias e outras sensações e sintomas psicológicos que foram reprimidos ou deslocados.

O personagem do Capitão Vaz, embora presente em todos os episódios, é um personagem secundaríssimo. Fascina-me mais a distorcida realidade do cozinheiro de marinha Clemente que descobre estar embarcado num barco bem maior que os navios em que se enfurnou: o barco da vida. Ou me atraiu a mania persecutória do personagem Pedro, da segunda parte, que não se sabe se realmente é perseguido ou é apenas fruto de sua paranoia, sua relação com o angolano dono de bar que assassinou em Luanda sua mucama e seu relacionamento conflituoso e existencial com a poeta Alice. Seduziu-me também criar uma família de relojoeiros, desde o avô até o neto, já não exercendo a profissão, mais vivendo o mundo moderno do rock. E por fim a vizinhança traumatizada, o casal que recebe as starlets do cinema novo, o jornalista que vê no restaurante o seu algoz, o síndico que se imola em nome de um amor desastroso e o primo do narrador que vive numa doce prisão na casa de dois solteirões que o acolhem como quem exercita um hobby.

O deambular dos personagens também pode ser citado como uma característica buscada no romance. Nisso me perseguia a frase de Shakespeare que Faulkner usou de epígrafe para O som e a fúria: “Life is a story told by a clown, full of sound and fury, means nothing.” Esta frase sempre me impressionou. Como era possível que a vida não tivesse sentido? Talvez o ato de escrever viesse justamente para dar sentido à minha vida. Lembro que no colégio fiz uma peça de teatro, fui ator apagado, mas aquela era primeira manifestação de que algo na vida me desagradava e poder suportá-la representava buscar uma maneira de mostrar meu incômodo estar no mundo. Os personagens de Um homem é muito pouco parecem também buscar, em sua ânsia ambulatória, um sentido no romance.

Epopéia de um mundo moderno, o romance está pronto para exprimir o inconsciente político coletivo, no dizer de Fredric Jameson. O herói em conflito com a sociedade e, acrescentaria, consigo. O grande drama da pós-modernidade não é apenas a angústia de uma sociedade pragmática que exclui aqueles que não se adaptam a ela ou não se deixam subjugar a uma existência passiva num ambiente de pressão e confronto. O grande drama parece ser a incompatibilidade do sujeito fragmentado e múltiplo, em confronto consigo mesmo, sendo ele o algoz e a vítima. Deste ponto de vista, Um homem é muito pouco é uma tentativa de retratar o refúgio último do homem não mais como refúgio da individualidade, mas como a individualidade cindida.

Há determinados temas que me perseguem e outros aos quais persigo. O ambiente dos anos 70 do século passado era um desses temas que eu procurava escrever sobre eles e não conseguia. Houve necessidade de um distanciamento temporal – e penso até que espacial – a fim de que pudesse retornar a ele de forma que não afetasse o ficcional. Vivi nove anos na Venezuela, dirigindo o Centro de Estudos Brasileiros, ligado à Embaixada do Brasil. Tentei várias vezes ambientar histórias e tramas em Caracas e tudo me soou falso. Escreverei um dia algo que tenha como cenário a cidade de Caracas? Todos nós sabemos que uma ambiência é mais que um cenário. Ele também compõe a trama e, em certos momentos, até mesmo protagoniza a história. Por fim pude voltar aos anos 70 e escrever sobre ele, colocar meus personagens em espaços conhecidos e vivenciados.

Certa vez numa entrevista a poeta Angélica Torres observou que meus personagens muitas vezes são pessoas que sofrem certa marginalidade em nome de valores éticos. Ela se referia ao meu livro de contos Manual de tortura, em que a maioria dos personagens é posta à margem da sociedade sem necessariamente serem marginais, transgressores ou bandidos. Eram personagens de vida pequena, refugos humanos, como chamou o crítico José Neres, sofredores da discriminação ou isolados por opção embora na maioria dos casos o que ocorria era sucumbir à pressão social. Tentei transladar essas opiniões sobre meu único livrinho de contos, depois de concluído o romance, para os personagens de Um homem é muito pouco e percebo que reproduzi alguns comportamentos que já lá estavam latentes no livro de narrativas curtas. Estaria eu procedendo a um comportamento de composição do personagem sem haver me dado conta?

Escrevi Um homem é muito pouco entre exatamente 31 de maio de 2008 a 14 de abril de 2009, incluindo aí quinze agoniados dias que a família decidiu viajar para Nova York. Eu tinha medo de perder o ritmo e não conseguir mais escrever da mesma maneira que vinha escrevendo. Uma página e meia por dia, em espaço um, que terminava virando uma só página. A parte escrita fora foi justamente do convívio dos primos Adriano e Sérgio e a morte deste na terceira parte do romance. Escrevi loucamente no voo de ida, com parada em Maiquetia, na Venezuela, para pegar outro voo e a viagem sair mais em conta. Era justamente a passagem de ano. Escrevi no voo para a Venezuela, escrevi em Maiquetia e escrevi no voo para Nova York. Eu precisava mostrar a mim mesmo que tudo estava bem e que não tinha perdido o pulso da história nem o ritmo do romance.


imagem retirada da internet: francis bacon, foto josé varella

Vermeer, poema de RCF





Em Vermeer há de se encontrar o sábio e a balança,
a virgem e a viola, a tocadora de cravo
as tentações do vinho ou as mazelas da preguiça.
        Há de se encontrar os pátios e as tabernas
         e nelas habitar a luz que tudo inventa
         e tudo cria realidade, espessura e saturação
         – a luz que faz existir todos os corpos
         que dá a Vermeer a felonia
         de criar o mundo à cruel semelhança
         do seu pincel, anjo decaído,
         dos morcegos de suas janelas
         dos olhares das tintas e
         da insensibilidade das perspectivas que mentem
         inventando um mundo que se nomeia real.

É preciso revistar em Vermeer
o germe da intimidade
o outro lado da paisagem
que não se vislumbra
ou nem ao menos a paisagem
que da janela se vê
mas a paisagem do ciúme
no cozimento dos gêneros
marulhantes mesquinharias ( domésticas )
como o suor dos lençóis
as cólicas menstruais das donzelas
a janela indivisa
que dá para dentro
e não mostra e tudo revela
a janela voraz da paz burguesa
o outro sendo contado na penumbra
do dissídio
as palavras negadas como pão adormecido
ou comida que se dá aos porcos.

Em Vermeer há de se encontrar
o mercador de almas
o apascentamento da subserviência
das mulheres que são naturezas mortas

Em Vermeer há de se descobrir o homem
que vive nos cômodos mais escuros
– esses onde escondemos os loucos
ou os nossos desejos ensandecidos.

Tu, e teu puritanismo que esconde a nudez
mas não podes esconder a cor
da verdadeira arte que não é rubra nem azul
– teu demônio singular e severo
            em vez de condenar elege o féretro de Delft,
            o olhar de quem viu o que os outros homens
não viram:
                que nada vale a pena, nem mesmo a arte.



(do livro Andarilho, Rio:7Letras, 2000)


imagem retirada da internet: vermeer

terça-feira, 8 de janeiro de 2019

Serial killer, poema RCF



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Ainda não nasceu de todo.
O pior é andar pela rua,
deserto, morto e tolo.
O que ainda não nasceu
corre o risco de sobreviver.
Só o homem é capaz
de inventar o mundo
e o fez à sua palavra
e dessemelhança.
Não se escapa
quando se persegue.
Serial killer, mata a cada manhã
o mesmo homem
que se preparou para ser.





(Memória dos porcos. Rio: 7Letras, 2012)







segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

Mágoa subalterna, poema RCF





Faith is taking the First Step;  Even when you can't see the whole staircase.    ~ martin Luther King














































Minha mágoa boia
sobre a superfície
como uma gota de gordura
que, irresoluta, não se mistura
e nem se dissolve.
Minha mágoa é roda de moinho
como o sangue que não se cansa
de sair e voltar para o mesmo lugar.
Minha mágoa, que picota
a pele engelhada do ressentimento,
é insular
mas faz parte de outros arrependimentos:
ardiloso arquipélago:
as ilhas são barcos de remorso.
Não há iodo ou unguento
que cicatrize o que a mágoa abriu.


(do livro Memória dos Porcos. Rio: 7Letras, 2012)


Cláudio Manuel da Costa e Abgar Renault

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Estrangeiro foi Cláudio Manuel da Costa. Formado em Portugal, publicou lá seus primeiros livros. Não era sua terra natal. O estilo barroco, no qual se iniciou na literatura, dava sinais de cansaço. Era um cidadão entre dois mundos. De volta ao Brasil, vai enfurnar-se próximo a Vila Rica, hoje Ouro Preto. Cidadão cosmopolita, não encontra interlocutores para sua vasta cultura. O pequeno grupo com quem dialoga é o dos poucos magistrados que também estudaram fora ou fora nasceram como o poeta Tomás Antonio Gonzaga, do qual Cláudio foi uma espécie de mestre. Estrangeiro na Europa, porque brasileiro, estrangeiro no Brasil Colonial porque o meio, embora rico, era tacanho em matéria de cultura. Dirão que ali estavam pululando as ideias libertárias da Revolução Francesa. Nenhum momento da História do Brasil homens que escreveram a História escreveram também a melhor poesia da época. Cláudio Manuel da Costa é herói de dois mundos: o mundo da literatura e o mundo da História.

Cláudio escreveu, para mim, o que de melhor podia se escrever naquele momento no Brasil. Misturou o barroquismo que bebeu na Europa e trouxe ao Brasil. Ingressou na nova escola literária, o neoclassicismo, ainda com herança e restos da angústia barroca. A luta entre a forma límpida e tranquila e o tema desassossegado do amor criam um estranhamento que o difere do barroco de onde vinha e do neoclassicismo puro para onde caminhava. É dele versos de dilaceramento como o amor a duas mulheres e o desejo de romper o peito e lá encontrar dois corações. Do amante que de tanto esperar à beira do rio sua amada se transforma em pedra.

Cláudio foi dos inconfidentes o que mais se abateu. Tinha mais idade, envergonhou-se de participar de uma conjura. Nos Autos da Devassa, há relato de Tomás Antonio Gonzaga sair assoviando após dar declaração. Lembremos que boa parte de Marília de Dirceu foi escrito na prisão. Cláudio, não. Suicidou-se ou suicidaram-no. É estranho que três irmandades mandassem rezar missa pela alma de um suicida. Deixemos o século dezoito, o genial Cláudio Manuel da Costa e aterrizemos no século XX.

Abgar Renault não era estrangeiro. Sempre viveu à sombra da família mineira, árvore de copa frondosa. Aqui se ressalve que não há demérito, no caso da poesia, da vida do poeta ser revolucionária ou burocrática e apascentada.

Abgar Renault, antes de ser poeta édito, foi poeta silencioso e solipsista. Zeloso, como poucos, só irá publicar quando muitos estão em declínio. Abgar faz parte de outra família: a dos que começaram a publicar depois dos sessenta. É da família de Saramago, que, embora tenha publicado antes, apenas após os sessenta anos passará a produzir sua obra que o levará ao prêmio Nobel. É da família de Lampedusa, que produziu além de narrativas curtas, o genial O Leopardo, também sexagenário. Sua obra de iniciante édito, datada de 1958, é quando o poeta já se aproximava dos setenta anos.

É certo que Abgar foi poeta desde sempre. Conviveu e respirou poesia com o grupo modernista de Minas Gerais. Grupo histórico de Carlos Drummond de Andrade, Pedro Nava, Murilo Mendes e tantos outros mais. E foi poeta ao recriar em suas traduções impecáveis dos poetas ingleses, norte-americanos, franceses, espanhóis e alemães uma visão da poesia tão própria e particular que o fez mais que tradutor, fez-se criador de poesia alheia. As traduções que fez dos poemas shakespearianos é digna de nota.

Embora tenha publicado tardiamente, Abgar, como se pode observar em sua Obra poética, reunida pela editora Record, escrevia no silêncio, no ineditismo do livro, mas na segura rota dos poetas que sabem que constroem uma obra permanente. Talvez seja por isso que tanto demorou a aparecer em livro. Ainda que seu primeiro livro, A lápide sob a lua, seja de 1968, podem-se observar vários poemas dos anos quarenta e cinqüenta. O próprio poema de abertura do livro de que falo é datado de 1950. O poema chama-se Prefácio de desculpas e é uma espécie de confissão e profissão de fé. Nele explica porque se transformou em poeta, o que é ser poeta e pede licença para os companheiros a fim de que ingresse no universo privilegiado da poesia. Começa com um “Perdoai-me a soberba de haver-me sonhado vosso irmão” e termina de maneira melancólica e desesperançada, a poesia lhe dói e não encontra eco nem amanhã. Sabe-se que em 1923, já tinha um livro intitulado Poemas antigos, que são poemas ao molde das cantigas de amor medieval, com seu português antigo, a forma cortês e temas obviamente amorosos. Livro que parece permanecer inédito até ser recolhido no já citado Obra Poética, de 1990.

Por sua poesia ter demorado a aparecer em livro é que Abgar Renault pode já surgir maduro e podar ainda no nascedouro aquelas poesias que a pressa em editar muitas vezes faz os poetas, ao reunir suas obras, retirar um ou outro poema ou simplesmente renegar as obras iniciais.

Poeta da busca, de imagens surreais, de construções inusitadas na formação do par substantivo/adjetivo, utilizando-se de imagens recorrentes de sombra e ecos simbolistas atualizados, Abgar Renault se aproxima de Cláudio Manuel da Costa em sua busca existencial e na difícil arte de viver, conciliando uma percepção sensível e aguda da realidade com a exaustiva cotidianidade que o retira da reflexão e do fazer poético. Seus temas não são prosaicos. Abgar Renault, antes de publicar seu primeiro livro, em 1968, opta por temas nobres e eternos como a solidão, o amor, a inquietação metafísica e o mal-estar no mundo. Neste seu primeiro livro, A lápide sob a lua, Renault utiliza o prosaico e se aproxima do modernismo inicial.

Há em Abgar Renault uma sombria configuração de si mesmo. O curioso é que homem tão devotado às causas públicas, tenha se mostrado um poeta intimista, atormentado e “transeunte do fim” como se classifica. Mais curioso é ver como coloca o Outro em sua poesia, principalmente a mulher, vista de forma luminosa, distante, solar e quase incompreensível. Falei em causas públicas e tenho que fazer um breve itinerário do poeta pela vida da burocracia. Abgar Renault teve altos cargos públicos e foi objeto de inúmeras honrarias. Resumirei, buscarei talvez as mais importantes: foi Ministro do Tribunal de Contas da União e Ministro de Educação e Cultura, representante do Brasil na Unesco em diversos momentos na área de Educação, membro de várias Academias, entre elas, a Brasileira de Letras e esta que nos acolhe. As honrarias foram muitas, entre outras, a Legião de Honra da França, Grande Oficial da Ordem de Rio Branco e a inglesa Commander of British Empire.

A obra de Abgar Renault, logo, é uma obra de antologia. De uma estranha antologia, da qual não conhecemos os outros poemas, os excluídos, porque nunca estiveram publicados. O poeta, escrevendo desde cedo, foi selecionando sua antologia pessoal sem que viesse a lume qualquer dos poemas que porventura negou. É uma estratégia estética, diriam uns; é uma idiossincrasia, modo pessoal de encarar a vida e a arte, diriam outros. O resultado, contudo, é essa bela e compacta reunião de poemas, densamente povoada pelos anos e pelo silêncio.

Por tanta convivência e enorme presença de Drummond na poesia brasileira, Abgar Renault, em A outra face da lua, de 1983, traz a influência do poeta de Itabira. Do mesmo humanismo, da dicção do homem em perplexidade, desamparado, do mesmo homem frente ao enigma e ao claro e escuro que Mário Chamie apontou numa análise que coloca Abgar Renault entre Gregório de Matos e Drummond. Mas, apesar da influência, observa-se um poeta singular e ímpar, capaz de reinventar a poesia e criar belezas com simplicidade como em “No alto da montanha”. Diz Abgar Renault, “Já não sinto saudade de mais nada, a não ser do começo da escalada, quando o azul era azul de azul sem fim e Deus criava de novo o mundo em mim.” Ali estão o tempo que passa, a ruína, o homem comum sem amparo, o cidadão perdido no labirinto da grande cidade e, no caso de Abgar Renault, homem que viajou o mundo ao contrário do poeta de A rosa do povo, o homem não só perdido na metrópole mas urbe et orbi.

Já em 1971, publica Sofotulafai, um poema só. O tema do poema é a linguagem, o ato de escrever e a literatura. É um poema longo, com pequenas inserções em inglês e francês, onde revela amor à escrita. “Se a palavra acabasse, um dia, a vida seria despojada de existência”, diz Abgar Renault. Um poema original, com experiências verbais próprias, como, por exemplo, o dos jogos de palavras de Álvaro de Campos ou do cubo-futurismo russo.

É nos sonetos que Abgar Renault consegue melhor resultado a meu ver. Não percebo influência e a construção verbal cresce com inusitadas e encantadoras imagens. A fôrma exata do soneto poderia diluir o vigor do verso, cegar o corte da faca, mas o que encontramos é um poeta que consegue, na concisão de catorze versos, eleger temas de angústia, a passagem do tempo, o efêmero da vida, o abatimento frente à vida difícil, a permanente solidão, o Outro distante, o impossível diálogo, o cansaço da busca. No livro Cristal refratário, mantido inédito por Abgar e só publicado na já citada Poesia Reunida, esta afirmação toma maior vulto. Não que antes não aparecera, apenas aqui se reacende e se afirma.

Em Íntimo Poço, Abgar Renault investe na interlocução, procura em vão o Outro, o aqui há o deslumbramento e medo da descoberta de um ser além dele mesmo – obscuro e recôndito como Abgar Renault buscou ser em sua vida de poeta. As imagens desconcertantes e surreais, a desilusão com o homem e a vida, as metáforas de dor e desamparo criam um clima de desesperança e de grandeza do ser humano perdido num mundo de aparências. A recorrência à palavra poço, que dá título ao livro, não contraria a assertiva. Neste e em outros livros, há de se perguntar se esse tu que o poeta indica e persegue não será ele mesmo, o poeta, e não o Outro, ou seja, aqui teríamos uma interlocução entre o poeta que se dirige a si mesmo como se fosse um outro.

Poeta em surdina, o próprio Abgar Renault define o ato de escrever e sua maneira de encarar a literatura. Diz ele num poema:

“Para que escrever, se eu jamais acontecerei num verso?
Para que escrever, se a verde luz infinita
jamais se reverá no espelho de nenhuma das minhas palavras?
Para que escrever, se meus olhos orvalham, neste preciso momento, esta clara tinta cheia de tantas caladas cousas?
Para que escrever tantas sílabas de sal e terra,
se nenhum grão de terra e sal responderá?”

No livro Thanatos, como o nome mesmo indica, Abgar se rende à temática da morte, que ele, observa-se nos poemas, acredita próxima e só virá aos 90 anos. Drummond viu em Abgar Renault um incurável pessimista. Mas reconhece que, diz Drummond, “o pessimismo, não há dúvida, é um grande gerador de poesia”.

domingo, 6 de janeiro de 2019

Um homem é muito pouco 26

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     Vicentino tinha outros dolores. Ele havia matado, em Luanda, mucama que lhe servia, de noite e de dia. Mais de noite que de dia. Enterrou a bichinha no solo da casa, azulejou e a sala passou a ser sala e cova. A família veio em busca da irmã, filha e prima deles. Havia guerra. Vicentino já mexia com dolores e com armas. As armas defendiam a propriedade dele, mas não podia defender Vicentino dele mesmo. Depois da morte, delirou. Dormia no chão de mausoléu da sala. Arrependido. A mulher falava lá de dentro da terra, como os vulcões. Deixa eu sair, branco ximubento, faço feitiço e você não dorme mais nunca de dormir. Vicentino atirava nas latas, nos gatos, nas folhas das árvores que se mexiam com o vento. Era a negra Altiva que mexia as folhas, cheia de feitiço que virava gato.

     A família molhou o chão de sal. O sal vinha das lágrimas.

     Onde está o pequenina, onde está meu Altiva?, perguntava com dificuldade de falar língua de branco português.

     Sei de coisa nada, família de Altiva.

     Mas ele ouvia Altiva falar dentro da terra como terremoto que ruge.

     Mente família Altiva não, branco ao léu, Altiva não deixa sono mais entrar, quando sono vier fico na porta e não abro porta pra sono.

      A guerra furava as paredes de bala. As paredes bexiguentas de bala. O sono bexiguento de Vicentino que não conseguia agarrar o sono. O sono andava no alto do quarto, feito mosca ou mosquito. Ele deitava a cabeça no travesseiro, ia dormir e aí vinha o sonomosquito ou o mosquitossonho e zumbia no ouvido dele. Vicentino sabia que o mosquito era o gosto de Altiva.


(do livro Um homem é muito pouco. São Paulo: Nankin, 2010)