Vicentino tinha outros dolores. Ele havia matado, em Luanda, mucama que lhe servia, de noite e de dia. Mais de noite que de dia. Enterrou a bichinha no solo da casa, azulejou e a sala passou a ser sala e cova. A família veio em busca da irmã, filha e prima deles. Havia guerra. Vicentino já mexia com dolores e com armas. As armas defendiam a propriedade dele, mas não podia defender Vicentino dele mesmo. Depois da morte, delirou. Dormia no chão de mausoléu da sala. Arrependido. A mulher falava lá de dentro da terra, como os vulcões. Deixa eu sair, branco ximubento, faço feitiço e você não dorme mais nunca de dormir. Vicentino atirava nas latas, nos gatos, nas folhas das árvores que se mexiam com o vento. Era a negra Altiva que mexia as folhas, cheia de feitiço que virava gato.
A família molhou o chão de sal. O
sal vinha das lágrimas.
Onde está o pequenina, onde está meu
Altiva?, perguntava com dificuldade de falar língua de branco português.
Sei de coisa nada, família de
Altiva.
Mas ele ouvia Altiva falar dentro da
terra como terremoto que ruge.
Mente família Altiva não, branco ao
léu, Altiva não deixa sono mais entrar, quando sono vier fico na porta e não
abro porta pra sono.
A guerra furava as paredes de bala.
As paredes bexiguentas de bala. O sono bexiguento de Vicentino que não
conseguia agarrar o sono. O sono andava no alto do quarto, feito mosca ou
mosquito. Ele deitava a cabeça no travesseiro, ia dormir e aí vinha o
sonomosquito ou o mosquitossonho e zumbia no ouvido dele. Vicentino sabia que o
mosquito era o gosto de Altiva.
(do livro Um homem é muito pouco. São Paulo: Nankin, 2010)
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