(Publicado na Revista Brasileira, fase VII, Julho-Agosto-Setembro 2011, nº 68, da Academia Brasileira de Letras, pgs. 105-110)
O escritor procura os temas ou os temas buscam o autor? O mais certo é pensar que os temas nos procuram, o que não quer dizer que somos passivos ou apenas recipiente onde se acumulam guardados. Embora seja mais provável que os temas nasçam ainda em forma embrionária e se revelem remanescentes de experiências passadas – e não diria reprimidas, ao jugo freudiano, mas quando ocorreram não tinham a dimensão que passarão a ter no futuro – e que mais tarde retornem e nos forcem a colocá-las no papel. Nunca quis escrever sobre a ditadura militar. Penso, desde jovem, que o realismo pertencia ao século XIX e que lá estava bem posto como proposta estética de vanguarda em sua época.
O realismo do século XIX foi uma reação à literatura e arte anterior e fruto sempre do meio sócio-cultural: no plano das ideias até o marxismo pode ser inserido no positivismo, concepção de progresso e a visão de um futuro racional, duradouro e saneador. Dentro desta perspectiva, cabia também ao romance ser tão “científico” quanto às ideias progressistas e, contraditoriamente, messiânicas. Contudo, à parte a historicidade de existir um estilo em uma época – segunda metade do século XIX – que se apresentava como vanguarda, o realismo, já foi dito, sempre existiu na literatura – do mesmo modo que o fantástico – e não desaparecerá.
Certo de que não queria fazer um romance de denúncia, mais apropriado para os anos setenta do século passado, em plena luta e dura repressão, também não queria que meus personagens vagassem numa repressão mais perversa: a da estética, ou seja, que se expressassem de maneira absolutamente realista. Escrevo absolutamente porque o romance Um homem é muito pouco é realista. Realista à sua maneira.
Um homem é muito pouco está dividido em quatro grandes partes. Cada parte traz um protagonista e um personagem os une. Duas partes são narradas em primeira pessoa e as outras duas em terceira pessoa. O número quatro já me fascinara antes. Num romance anterior, de 1997, Concerto para flauta e martelo já usara as mesmas quatro vozes, mas numa dinâmica e disposição até mesmo tipográfica diferentes. O romance tem preponderantemente como cenário também quatro espaços urbanos: Praça XI, Copacabana, Grajaú e Ipanema. A época: os anos 70.
Moveu-me também a ideia de que deveria criar um grande painel. Se logrei, não sei. Ambicionei personagens de várias gerações, em conflitos constantes e deambulando em meio a uma psicologia adensada, mas sem que fosse o foco primordial. O embate entre a individualidade e a amplitude do social agindo sobre comportamentos e atitudes de pessoas que não estavam engajadas em movimento político também me atraía. Havia uma atmosfera de medo e apreensão, de silêncio e reserva, mesmo entre aqueles que não queriam “envolver-se em política”. Mesmo entre os chamados alienados, tinha-se a certeza que a atividade política só deveria ser inócua se fosse a favor do governo e que a participação em algum movimento social representava risco de morte.
É desconcertante ver que, como num processo de desvelamento, algumas ideias emergiram de um recanto obscuro que insidiosamente insistem em metamoforsear-se em personagem, cena, psicologia ou até mesmo trama que antes desconhecíamos albergar dentro de nós. Há personagens que se desenvolvem mais porque nós os conhecemos e eles se oferecem à narrativa como já estivessem prontos para serem usados e outros que a racionalidade preparou para agir e atuar às vezes até com certo protagonismo e se abastardam, diminuem, aos poucos ficam pelos cantos e mais à frente esfumam-se. Agrada-me ser traído pela minha razão e deixar que outro tipo de “razão” se faça presente e assuma seu papel na narrativa.
No caso de Um homem é muito pouco, na terceira parte, por exemplo, eu não sabia nada sobre a família dos Arlindos. A história toda foi se construindo aos poucos, jorrando fácil, a cada dia exigindo de mim que desse continuidade à saga familiar dos joalheiros e homens de alma simples que vivem uma intrincada trama familiar e que, ao mesmo tempo, serve de explicação para várias ações e diversos comportamentos de personagens das outras partes.
No livro de Freud sobre Gradiva, de Jensen, o austríaco analisa os personagens como se fossem seres de carne e osso e seus sonhos e delírios manifestações do inconsciente. Sem tomar partido da chamada crítica psicanalítica, nem também condenar psicanalisar personagem de papel, o que me chamou atenção é que os mecanismos de interpretação dos sonhos, de condensação e de entendimento dos traumas reprimidos, mostram que Freud pode não ser bom crítico literário ou que sua prática analítica enfraquece ao estudar personagens e não seres reais, mas que alguns procedimentos de aproximação ao texto são comuns à psicanálise e à crítica literária. Condensação e deslocamento, conceitos que ele usou em seu livro O chiste e a relação com o inconsciente, revelam como se elabora o mecanismo, diria eu, até do processo criativo.
Grosso modo, haveria dois tipos de escritores. Os que, como Autran Dourado e García Márquez, que relatam que só se sentam para escrever quando têm a história pronta e aqueles que são guiados pelo instinto linguístico e fabulatório como Clarice Lispector e Córtazar, este último depondo que desconhecia completamente a história de O jogo da amarelinha. Como explicar então que aqueles que já têm a história pronta antes de escrever o livro possam ser tomados pelo inconsciente e pelo deslocamento interpretativo? Diria que mesmo esses, se escolheram determinados temas, é porque aqueles temas, tramas e personagens lhe atraíram pelo mesmo processo dos instintivos. Ora, se García Marquez observa que Cem anos de solidão é a história dos pais e que O amor no tempo do cólera é a história de amor dos avós, nada se modifica, pois se foi seduzido pelo tema é porque significativamente ele aponta para mecanismos psíquicos que operam no processo ficcional vindo de desvios, vícios, ansiedades, traumas, angústias e outras sensações e sintomas psicológicos que foram reprimidos ou deslocados.
O personagem do Capitão Vaz, embora presente em todos os episódios, é um personagem secundaríssimo. Fascina-me mais a distorcida realidade do cozinheiro de marinha Clemente que descobre estar embarcado num barco bem maior que os navios em que se enfurnou: o barco da vida. Ou me atraiu a mania persecutória do personagem Pedro, da segunda parte, que não se sabe se realmente é perseguido ou é apenas fruto de sua paranoia, sua relação com o angolano dono de bar que assassinou em Luanda sua mucama e seu relacionamento conflituoso e existencial com a poeta Alice. Seduziu-me também criar uma família de relojoeiros, desde o avô até o neto, já não exercendo a profissão, mais vivendo o mundo moderno do rock. E por fim a vizinhança traumatizada, o casal que recebe as starlets do cinema novo, o jornalista que vê no restaurante o seu algoz, o síndico que se imola em nome de um amor desastroso e o primo do narrador que vive numa doce prisão na casa de dois solteirões que o acolhem como quem exercita um hobby.
O deambular dos personagens também pode ser citado como uma característica buscada no romance. Nisso me perseguia a frase de Shakespeare que Faulkner usou de epígrafe para O som e a fúria: “Life is a story told by a clown, full of sound and fury, means nothing.” Esta frase sempre me impressionou. Como era possível que a vida não tivesse sentido? Talvez o ato de escrever viesse justamente para dar sentido à minha vida. Lembro que no colégio fiz uma peça de teatro, fui ator apagado, mas aquela era primeira manifestação de que algo na vida me desagradava e poder suportá-la representava buscar uma maneira de mostrar meu incômodo estar no mundo. Os personagens de Um homem é muito pouco parecem também buscar, em sua ânsia ambulatória, um sentido no romance.
Epopéia de um mundo moderno, o romance está pronto para exprimir o inconsciente político coletivo, no dizer de Fredric Jameson. O herói em conflito com a sociedade e, acrescentaria, consigo. O grande drama da pós-modernidade não é apenas a angústia de uma sociedade pragmática que exclui aqueles que não se adaptam a ela ou não se deixam subjugar a uma existência passiva num ambiente de pressão e confronto. O grande drama parece ser a incompatibilidade do sujeito fragmentado e múltiplo, em confronto consigo mesmo, sendo ele o algoz e a vítima. Deste ponto de vista, Um homem é muito pouco é uma tentativa de retratar o refúgio último do homem não mais como refúgio da individualidade, mas como a individualidade cindida.
Há determinados temas que me perseguem e outros aos quais persigo. O ambiente dos anos 70 do século passado era um desses temas que eu procurava escrever sobre eles e não conseguia. Houve necessidade de um distanciamento temporal – e penso até que espacial – a fim de que pudesse retornar a ele de forma que não afetasse o ficcional. Vivi nove anos na Venezuela, dirigindo o Centro de Estudos Brasileiros, ligado à Embaixada do Brasil. Tentei várias vezes ambientar histórias e tramas em Caracas e tudo me soou falso. Escreverei um dia algo que tenha como cenário a cidade de Caracas? Todos nós sabemos que uma ambiência é mais que um cenário. Ele também compõe a trama e, em certos momentos, até mesmo protagoniza a história. Por fim pude voltar aos anos 70 e escrever sobre ele, colocar meus personagens em espaços conhecidos e vivenciados.
Certa vez numa entrevista a poeta Angélica Torres observou que meus personagens muitas vezes são pessoas que sofrem certa marginalidade em nome de valores éticos. Ela se referia ao meu livro de contos Manual de tortura, em que a maioria dos personagens é posta à margem da sociedade sem necessariamente serem marginais, transgressores ou bandidos. Eram personagens de vida pequena, refugos humanos, como chamou o crítico José Neres, sofredores da discriminação ou isolados por opção embora na maioria dos casos o que ocorria era sucumbir à pressão social. Tentei transladar essas opiniões sobre meu único livrinho de contos, depois de concluído o romance, para os personagens de Um homem é muito pouco e percebo que reproduzi alguns comportamentos que já lá estavam latentes no livro de narrativas curtas. Estaria eu procedendo a um comportamento de composição do personagem sem haver me dado conta?
Escrevi Um homem é muito pouco entre exatamente 31 de maio de 2008 a 14 de abril de 2009, incluindo aí quinze agoniados dias que a família decidiu viajar para Nova York. Eu tinha medo de perder o ritmo e não conseguir mais escrever da mesma maneira que vinha escrevendo. Uma página e meia por dia, em espaço um, que terminava virando uma só página. A parte escrita fora foi justamente do convívio dos primos Adriano e Sérgio e a morte deste na terceira parte do romance. Escrevi loucamente no voo de ida, com parada em Maiquetia, na Venezuela, para pegar outro voo e a viagem sair mais em conta. Era justamente a passagem de ano. Escrevi no voo para a Venezuela, escrevi em Maiquetia e escrevi no voo para Nova York. Eu precisava mostrar a mim mesmo que tudo estava bem e que não tinha perdido o pulso da história nem o ritmo do romance.
imagem retirada da internet: francis bacon, foto josé varella
O escritor procura os temas ou os temas buscam o autor? O mais certo é pensar que os temas nos procuram, o que não quer dizer que somos passivos ou apenas recipiente onde se acumulam guardados. Embora seja mais provável que os temas nasçam ainda em forma embrionária e se revelem remanescentes de experiências passadas – e não diria reprimidas, ao jugo freudiano, mas quando ocorreram não tinham a dimensão que passarão a ter no futuro – e que mais tarde retornem e nos forcem a colocá-las no papel. Nunca quis escrever sobre a ditadura militar. Penso, desde jovem, que o realismo pertencia ao século XIX e que lá estava bem posto como proposta estética de vanguarda em sua época.
O realismo do século XIX foi uma reação à literatura e arte anterior e fruto sempre do meio sócio-cultural: no plano das ideias até o marxismo pode ser inserido no positivismo, concepção de progresso e a visão de um futuro racional, duradouro e saneador. Dentro desta perspectiva, cabia também ao romance ser tão “científico” quanto às ideias progressistas e, contraditoriamente, messiânicas. Contudo, à parte a historicidade de existir um estilo em uma época – segunda metade do século XIX – que se apresentava como vanguarda, o realismo, já foi dito, sempre existiu na literatura – do mesmo modo que o fantástico – e não desaparecerá.
Certo de que não queria fazer um romance de denúncia, mais apropriado para os anos setenta do século passado, em plena luta e dura repressão, também não queria que meus personagens vagassem numa repressão mais perversa: a da estética, ou seja, que se expressassem de maneira absolutamente realista. Escrevo absolutamente porque o romance Um homem é muito pouco é realista. Realista à sua maneira.
Um homem é muito pouco está dividido em quatro grandes partes. Cada parte traz um protagonista e um personagem os une. Duas partes são narradas em primeira pessoa e as outras duas em terceira pessoa. O número quatro já me fascinara antes. Num romance anterior, de 1997, Concerto para flauta e martelo já usara as mesmas quatro vozes, mas numa dinâmica e disposição até mesmo tipográfica diferentes. O romance tem preponderantemente como cenário também quatro espaços urbanos: Praça XI, Copacabana, Grajaú e Ipanema. A época: os anos 70.
Moveu-me também a ideia de que deveria criar um grande painel. Se logrei, não sei. Ambicionei personagens de várias gerações, em conflitos constantes e deambulando em meio a uma psicologia adensada, mas sem que fosse o foco primordial. O embate entre a individualidade e a amplitude do social agindo sobre comportamentos e atitudes de pessoas que não estavam engajadas em movimento político também me atraía. Havia uma atmosfera de medo e apreensão, de silêncio e reserva, mesmo entre aqueles que não queriam “envolver-se em política”. Mesmo entre os chamados alienados, tinha-se a certeza que a atividade política só deveria ser inócua se fosse a favor do governo e que a participação em algum movimento social representava risco de morte.
É desconcertante ver que, como num processo de desvelamento, algumas ideias emergiram de um recanto obscuro que insidiosamente insistem em metamoforsear-se em personagem, cena, psicologia ou até mesmo trama que antes desconhecíamos albergar dentro de nós. Há personagens que se desenvolvem mais porque nós os conhecemos e eles se oferecem à narrativa como já estivessem prontos para serem usados e outros que a racionalidade preparou para agir e atuar às vezes até com certo protagonismo e se abastardam, diminuem, aos poucos ficam pelos cantos e mais à frente esfumam-se. Agrada-me ser traído pela minha razão e deixar que outro tipo de “razão” se faça presente e assuma seu papel na narrativa.
No caso de Um homem é muito pouco, na terceira parte, por exemplo, eu não sabia nada sobre a família dos Arlindos. A história toda foi se construindo aos poucos, jorrando fácil, a cada dia exigindo de mim que desse continuidade à saga familiar dos joalheiros e homens de alma simples que vivem uma intrincada trama familiar e que, ao mesmo tempo, serve de explicação para várias ações e diversos comportamentos de personagens das outras partes.
No livro de Freud sobre Gradiva, de Jensen, o austríaco analisa os personagens como se fossem seres de carne e osso e seus sonhos e delírios manifestações do inconsciente. Sem tomar partido da chamada crítica psicanalítica, nem também condenar psicanalisar personagem de papel, o que me chamou atenção é que os mecanismos de interpretação dos sonhos, de condensação e de entendimento dos traumas reprimidos, mostram que Freud pode não ser bom crítico literário ou que sua prática analítica enfraquece ao estudar personagens e não seres reais, mas que alguns procedimentos de aproximação ao texto são comuns à psicanálise e à crítica literária. Condensação e deslocamento, conceitos que ele usou em seu livro O chiste e a relação com o inconsciente, revelam como se elabora o mecanismo, diria eu, até do processo criativo.
Grosso modo, haveria dois tipos de escritores. Os que, como Autran Dourado e García Márquez, que relatam que só se sentam para escrever quando têm a história pronta e aqueles que são guiados pelo instinto linguístico e fabulatório como Clarice Lispector e Córtazar, este último depondo que desconhecia completamente a história de O jogo da amarelinha. Como explicar então que aqueles que já têm a história pronta antes de escrever o livro possam ser tomados pelo inconsciente e pelo deslocamento interpretativo? Diria que mesmo esses, se escolheram determinados temas, é porque aqueles temas, tramas e personagens lhe atraíram pelo mesmo processo dos instintivos. Ora, se García Marquez observa que Cem anos de solidão é a história dos pais e que O amor no tempo do cólera é a história de amor dos avós, nada se modifica, pois se foi seduzido pelo tema é porque significativamente ele aponta para mecanismos psíquicos que operam no processo ficcional vindo de desvios, vícios, ansiedades, traumas, angústias e outras sensações e sintomas psicológicos que foram reprimidos ou deslocados.
O personagem do Capitão Vaz, embora presente em todos os episódios, é um personagem secundaríssimo. Fascina-me mais a distorcida realidade do cozinheiro de marinha Clemente que descobre estar embarcado num barco bem maior que os navios em que se enfurnou: o barco da vida. Ou me atraiu a mania persecutória do personagem Pedro, da segunda parte, que não se sabe se realmente é perseguido ou é apenas fruto de sua paranoia, sua relação com o angolano dono de bar que assassinou em Luanda sua mucama e seu relacionamento conflituoso e existencial com a poeta Alice. Seduziu-me também criar uma família de relojoeiros, desde o avô até o neto, já não exercendo a profissão, mais vivendo o mundo moderno do rock. E por fim a vizinhança traumatizada, o casal que recebe as starlets do cinema novo, o jornalista que vê no restaurante o seu algoz, o síndico que se imola em nome de um amor desastroso e o primo do narrador que vive numa doce prisão na casa de dois solteirões que o acolhem como quem exercita um hobby.
O deambular dos personagens também pode ser citado como uma característica buscada no romance. Nisso me perseguia a frase de Shakespeare que Faulkner usou de epígrafe para O som e a fúria: “Life is a story told by a clown, full of sound and fury, means nothing.” Esta frase sempre me impressionou. Como era possível que a vida não tivesse sentido? Talvez o ato de escrever viesse justamente para dar sentido à minha vida. Lembro que no colégio fiz uma peça de teatro, fui ator apagado, mas aquela era primeira manifestação de que algo na vida me desagradava e poder suportá-la representava buscar uma maneira de mostrar meu incômodo estar no mundo. Os personagens de Um homem é muito pouco parecem também buscar, em sua ânsia ambulatória, um sentido no romance.
Epopéia de um mundo moderno, o romance está pronto para exprimir o inconsciente político coletivo, no dizer de Fredric Jameson. O herói em conflito com a sociedade e, acrescentaria, consigo. O grande drama da pós-modernidade não é apenas a angústia de uma sociedade pragmática que exclui aqueles que não se adaptam a ela ou não se deixam subjugar a uma existência passiva num ambiente de pressão e confronto. O grande drama parece ser a incompatibilidade do sujeito fragmentado e múltiplo, em confronto consigo mesmo, sendo ele o algoz e a vítima. Deste ponto de vista, Um homem é muito pouco é uma tentativa de retratar o refúgio último do homem não mais como refúgio da individualidade, mas como a individualidade cindida.
Há determinados temas que me perseguem e outros aos quais persigo. O ambiente dos anos 70 do século passado era um desses temas que eu procurava escrever sobre eles e não conseguia. Houve necessidade de um distanciamento temporal – e penso até que espacial – a fim de que pudesse retornar a ele de forma que não afetasse o ficcional. Vivi nove anos na Venezuela, dirigindo o Centro de Estudos Brasileiros, ligado à Embaixada do Brasil. Tentei várias vezes ambientar histórias e tramas em Caracas e tudo me soou falso. Escreverei um dia algo que tenha como cenário a cidade de Caracas? Todos nós sabemos que uma ambiência é mais que um cenário. Ele também compõe a trama e, em certos momentos, até mesmo protagoniza a história. Por fim pude voltar aos anos 70 e escrever sobre ele, colocar meus personagens em espaços conhecidos e vivenciados.
Certa vez numa entrevista a poeta Angélica Torres observou que meus personagens muitas vezes são pessoas que sofrem certa marginalidade em nome de valores éticos. Ela se referia ao meu livro de contos Manual de tortura, em que a maioria dos personagens é posta à margem da sociedade sem necessariamente serem marginais, transgressores ou bandidos. Eram personagens de vida pequena, refugos humanos, como chamou o crítico José Neres, sofredores da discriminação ou isolados por opção embora na maioria dos casos o que ocorria era sucumbir à pressão social. Tentei transladar essas opiniões sobre meu único livrinho de contos, depois de concluído o romance, para os personagens de Um homem é muito pouco e percebo que reproduzi alguns comportamentos que já lá estavam latentes no livro de narrativas curtas. Estaria eu procedendo a um comportamento de composição do personagem sem haver me dado conta?
Escrevi Um homem é muito pouco entre exatamente 31 de maio de 2008 a 14 de abril de 2009, incluindo aí quinze agoniados dias que a família decidiu viajar para Nova York. Eu tinha medo de perder o ritmo e não conseguir mais escrever da mesma maneira que vinha escrevendo. Uma página e meia por dia, em espaço um, que terminava virando uma só página. A parte escrita fora foi justamente do convívio dos primos Adriano e Sérgio e a morte deste na terceira parte do romance. Escrevi loucamente no voo de ida, com parada em Maiquetia, na Venezuela, para pegar outro voo e a viagem sair mais em conta. Era justamente a passagem de ano. Escrevi no voo para a Venezuela, escrevi em Maiquetia e escrevi no voo para Nova York. Eu precisava mostrar a mim mesmo que tudo estava bem e que não tinha perdido o pulso da história nem o ritmo do romance.
imagem retirada da internet: francis bacon, foto josé varella
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