Em Vermeer há de se encontrar o sábio e a balança,
a virgem e a viola, a tocadora de cravo
as tentações do vinho ou as mazelas da preguiça.
Há de se encontrar os pátios e as tabernas
e nelas habitar a luz que tudo inventa
e tudo cria realidade, espessura e saturação
– a luz que faz existir todos os corpos
que dá a Vermeer a felonia
de criar o mundo à cruel semelhança
do seu pincel, anjo decaído,
dos morcegos de suas janelas
dos olhares das tintas e
da insensibilidade das perspectivas que mentem
inventando um mundo que se nomeia real.
É preciso revistar em Vermeer
o germe da intimidade
o outro lado da paisagem
que não se vislumbra
ou nem ao menos a paisagem
que da janela se vê
mas a paisagem do ciúme
no cozimento dos gêneros
marulhantes mesquinharias ( domésticas )
como o suor dos lençóis
as cólicas menstruais das donzelas
a janela indivisa
que dá para dentro
e não mostra e tudo revela
a janela voraz da paz burguesa
o outro sendo contado na penumbra
do dissídio
as palavras negadas como pão adormecido
ou comida que se dá aos porcos.
Em Vermeer há de se encontrar
o mercador de almas
o apascentamento da subserviência
das mulheres que são naturezas mortas
Em Vermeer há de se descobrir o homem
que vive nos cômodos mais escuros
– esses onde escondemos os loucos
ou os nossos desejos ensandecidos.
Tu, e teu puritanismo que esconde a nudez
mas não podes esconder a cor
da verdadeira arte que não é rubra nem azul
– teu demônio singular e severo
em vez de condenar elege o féretro de Delft,
o olhar de quem viu o que os outros homens
não viram:
que nada vale a pena, nem mesmo a arte.
(do livro Andarilho, Rio:7Letras, 2000)
imagem retirada da internet: vermeer
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